segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

O ódio de classe venceu a esperança


O ódio de classe venceu a esperança


Eis que surge um operário, um homem simples desta coisa que a gente chama de 'povo'. Uma pessoa sem estudo superior como a maioria dos brasileiros, falando com sotaque e comendo os plurais
Sempre me perguntei de onde vinha o ódio visceral contra Lula. Sobretudo em São Paulo, desde a fundação do PT, escuto pessoas destilarem um rancor cujas raízes eu não conseguia definir.
Hoje entendo perfeitamente que se trata de um ódio de classe.
Uma raiva profunda, nascida entre as elites e difundida entre as classes médias graças ao controle e manipulação da mídia a serviço dos interesses das classes dominantes. Porque ao longo da nossa história escravocrata, oligarca e elitista, lugar de pobre sempre foi nas periferias, nas “senzalas” das grandes metrópoles - do negro escravo e seus descendentes, aos calangos que foram construir Brasilia. Estes vieram das zonas castigadas pela seca, descendo em paus de arara em direção ao Sul Maravilha, onde ergueram os principais marcos arquitetônicos e urbanísticos, os prédios luxuosos nos quais jamais teriam a chance de morar.

Mão-de-obra barata, os nordestinos levantaram bairros inteiros, e depois ficaram por ali, realizando serviços menores, em posições subalternas. Onde estivessem, faziam o seu trabalho, para depois refluírem à invisibilidade das cidades satélites, sem correr o risco de manchar a paisagem, muito embora, vez ou outra, atrapalhassem o trânsito. Até então, tudo nos conformes, dentro de uma dinâmica imutável.
Mas eis que surge um operário, um homem simples desta coisa que a gente chama de “povo”. Uma pessoa sem estudo superior como a maioria dos brasileiros, falando com sotaque e comendo os plurais como a maioria dos brasileiros. A quem, ainda, por cima, faltava um dedo na mão. E o pior aconteceu: atestando o preconizado por analistas políticos de ponta como Pelé, de que o brasileiro não estava pronto para votar, o “cabeça chata” terminou eleito presidente.

Foto: Ricardo Stuckert

 
O Nordeste, cuja população atrasada não sabe escolher, identificava-se com aquele que tão bem a representava, ao passo que os sulistas o olhavam com horror. Para os descendentes dos bandeirantes, que desbravaram os sertões colecionando orelhas de índios, São Paulo não nasceu para ser conduzido, e sim para conduzir. O brasão da capital, criado em 1917 por José Wasth Rodrigues e Guilherme de Almeida, atesta o voluntarismo da elite cafeeira e industrial.
Nem em seus mais desvairados pesadelos podiam imaginar que um dos seus empregados galgaria o posto de chefe da nação. Alguém que nunca viajara ao exterior, não sabia a diferença entre a Rive Gauche e a Rive Droite, nunca ouvira falar de existencialismo, de Sartre, do Café Deux Magots e nem tinha curso na Sorbonne. Aliás, sequer cursara faculdade, dando péssimo exemplo ao restante da população. Ele tornava evidente que não era preciso título de “doutor” para governar o país. Ainda mais grave, provava que inteligência e carisma ocorriam mesmo entre os “de baixo”.

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Obrigadas a engolir o sapo barbudo, as elites ficaram revoltadas. Era vexame atrás de vexame. Já na primeira ida ao exterior, precisou dos serviços de um tradutor porque, como a maioria dos brasileiros, só sabia falar português. Daí, embora consolidasse o país no cenário internacional, sendo recebido com tapete vermelho pelas maiores potências mundiais, tirasse o grosso do povo da miséria, criasse programas de fomento à pequena economia e à educação, ele cometia gafes imagináveis.
Uma delas foi a péssima ideia de orquestrar um arraial caipira no Planalto. Em plena era de Halloween, em que não se mediam esforços para imitar a moda super bacaninha importada dos EUA, com as crianças falando em inglês “treat or trick”, ele ofereceu uma festa junina no palácio todo enfeitado de bandeirinhas multicoloridas. E ainda por cima, como a maioria dos brasileiros, ele e a primeira-dama fantasiaram-se de caipiras, obrigando os coitados dos ministros a fazerem o mesmo. Um monte de gente importante, dirigentes da principal nação do continente, de camisas xadrez, calças remendadas, rosto pintado e chapéu de palha, dançando ao som de música folclórica, pulando fogueira e bebendo quentão.
Revirava o estômago, pensem na péssima imagem que passavam lá fora, ao mundo civilizado? Por sorte a ex-colunista Danuza Leão detonou a quadrilha na Folha de S.Paulo. Lavou a alma, não fosse a resposta malcriada, no dia seguinte, de uma esquerdista de plantão, uma daquelas típicas intelectuais que adora pobre e detesta complexo de colonizado.
Mas a vergonha só fazia crescer. Era isso que dava deixar oriundos de regiões atrasadas governar, nunca deveriam ter acabado com a política do café-com-leite. Depois de Getúlio, tudo degringolou. Por isso tornou-se urgente livrar-se do PT, do que ele significou. E não era pouco. Nada mais desconfortável, e mesmo ofensivo, enfrentar filas imensas nos aeroportos atulhados de periféricos. A maioria ia para Orlando, mas alguns tinham como destino final Paris. Para fazer o quê? Tirar um self na Torre Eiffel e postar no facebook? Tenham dó, sequer falavam francês, jamais leram Foucault, Althusser ou Deleuze!
O tempo foi passando. E mesmo que, ao invés de se assumir revolucionário e socialista, o ex-operário tenha selado pactos com o diabo e dormido com o inimigo, dando força aos banqueiros e abraçando o neoliberalismo, o fato é que tornou cidadãos uma parcela nada desprezível da classe trabalhadora. Além de se projetar como Estadista respeitado ao redor do planeta, seu governo, apesar da série de erros, alvo de justas críticas da esquerda, começou a melhorar os índices de desigualdade social com apostas na saúde e educação. E aí morava o perigo. Um povo educado pode querer tornar-se agente da própria história. Depois, aonde já se viu filho de empregada doméstica, e ainda por cima negro, estudar na mesma faculdade do filho da madame?

Coisa de meter medo, quase antinatural. Esta aventura precisava terminar. E a classe dominante arregaçou as mangas. O resultado, nós todos conhecemos. Não basta apenas condenar Lula, precisa enforcá-lo em praça pública como fizeram com um herói chamado Tiradentes. E então, como no Estado Novo e na ditadura militar, quando confiscaram o registro do Partido Comunista, será necessário cassar a legenda. Pois tem que massacrar o símbolo. Só assim, com medidas radicais, a ralé deixa de querer virar gente e larga desta mania besta de achar que tem direitos.
Com a punição exemplar a Lula, que o povinho reconheça o seu lugar no rodapé da história nacional, contentando-se com as migalhas da burguesia caridosa. O ódio de classe venceu a esperança.
Márcia Camargos é historiadora e jornalista. É autora de Entre a vanguarda e a tradição  (Alameda).

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