segunda-feira, 5 de março de 2018

Por que os moradores de favelas no Rio temem a Justiça Militar? TODOS QUE PEDIRAM INTERVENÇÃO DEVEM LER.

Sociedade

Intervenção federal

Por que os moradores de favelas no Rio temem a Justiça Militar?

por Rodrigo Martins — publicado 05/03/2018 00h19, última modificação 02/03/2018 14h56
Não é só o receio da impunidade para criminosos fardados. Dezenas de civis foram processados por desacato em cortes militares
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Fotos: Tânia Rêgo / Agência Brasil
Operação militar no Rio de Janeiro
Na esfera militar, o desacato é passível de prisão em flagrante
Em outubro de 2017, Michel Temer sancionou o projeto de lei que transfere para a Justiça Militar o julgamento de crimes contra a vida de civis praticadas por militares no exercício de suas funções, como nas missões de Garantia da Lei e da Ordem ou na inédita intervenção federal decretada no Rio de Janeiro. Quando a decisão foi anunciada, várias entidades de direitos humanos, a exemplo da Anistia Internacional, manifestaram preocupação com a falta de apuração rigorosa dos malfeitos de integrantes das Forças Armadas.
Além do temor da impunidade, os moradores de comunidades pobres do Rio, alvos preferenciais das incursões do Exército, têm outros motivos para desconfiar da Justiça Militar. Nos últimos tempos, multiplicaram-se os casos de civis julgados em cortes fardadas por crimes praticados contra a honra de soldados.
Em 2015, um levantamento realizado pela ONG Justiça Global, em parceria com o jornal O Dia, revelou a existência de 64 processos envolvendo civis processados por resistência, desacato e desobediência (artigos 177, 299, 301 do Código Penal Militar, respectivamente) em tribunais militares no Rio.
A situação acabou referendada por uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que decidiu, ao julgar um pedido de habeas corpus em 2014, ser de competência da Justiça Militar o julgamento de civis acusados de desacatar integrantes das Forças Armadas durante as operações de segurança, como a GLO.
O fenômeno é especialmente preocupante devido à rigidez das cortes militares em relação ao tema. Na esfera militar, o desacato é passível de prisão em flagrante, ou seja, de encarceramento provisório. Na Justiça comum, por ser entendido como um crime de menor potencial ofensivo, o acusado raramente é detido, e pode responder ao processo em liberdade, explica Lena Azevedo, pesquisadora da Justiça Global.
“Quando divulgamos esse relatório, quase a totalidade dos casos referiam-se a processos relativos à ocupação militar no Alemão e na Penha. Depois, apareceram dezenas de outros casos na Maré”, diz Azevedo. “Recordo-me de um caso emblemático, de um jovem parado mais de dez vezes pelos militares em um único dia, em diferentes pontos da comunidade. Na última abordagem, irritou-se, esbravejou. Os soldados lhe deram voz de prisão”.
Na maioria das ações por desacato no Superior Tribunal Militar, última instância recursal, a defesa técnica ficou a cargo da Defensoria Pública da União. Os acusados questionavam a competência da Justiça Militar para julgá-los, devido ao caráter excepcional de o Exército exercer função de segurança pública, além de pedir a aplicação da Lei de Juizados Especiais, como é feito nos casos de desacato contra servidores civis.
“Em sua maioria, os acusados não têm condições financeiras de pagar um advogado, dependem da defensoria gratuita. Uma vez condenados, passam a ter muito mais dificuldade para encontrar trabalho. Fica uma mancha nos seus antecedentes criminais”, lamenta a pesquisadora. “Isso ganha contornos dramáticos em um cenário de elevado desemprego, como vemos agora no Rio”.
À época da divulgação do relatório, o jornal O Dia relatou o drama vivenciado pelo mototaxista Anderson de Oliveira, que recebeu de um cabo do Exército a ordem para parar em um blitz. Por encostar o veículo um pouco à frente do local indicado, foi repreendido com xingamentos. Retrucou e acabou preso em flagrante.
Após ser conduzido para a delegacia militar no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva e depois para a 21ª Delegacia de Polícia, em Bonsucesso, o mototaxista foi levado ao Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu. Após dois dias de encarceramento, obteve liberdade provisória e abriu um processo contra a União por danos morais.
Operação militar no Rio de Janeiro 2
Moradores de comunidades pobres do Rio se queixam das frequentes e abusivas abordagens
Segundo moradores de comunidades ocupadas pelo Exército, os abusos são corriqueiros. “Muitos amigos sofreram com essas abordagens frequentes e tiveram de aguentar calados”, conta a jornalista Gizele Martins, nascida e criada na Maré, comunidade ocupada pelo Exército por 15 meses, entre 2014 e 2015. “O Estado sempre negligenciou o direito à vida, à moradia digna, à educação de qualidade. Só ofereceu o seu braço armado, como se tanques fossem resolver os nossos problemas”.
Descriminalização do desacatoAs acusações de desacato tornaram-se muito comuns no Brasil, especialmente em contextos nos quais a polícia age de forma desproporcional na dissolução de protestos e em operações em favelas e regiões periféricas. As incursões militares em comunidades do Rio não fogem à regra, como se viu nos casos denunciados pela Justiça Global.
Diante desse cenário, entidades de direitos humanos reivindicam a descriminalização da prática, tipificada pelo artigo 331 do Código Penal, com pena de seis meses a dois anos de detenção ou multa. O crime também é previsto pelo artigo 299 do Código Penal Militar e tem punição semelhante, mas sem possibilidade de multa como punição alternativa.
Na avaliação da ONG Artigo 19, a criminalização do desacato é uma medida desproporcional e nociva para a liberdade de expressão. “Ao se atribuir questões subjetivas como honra e dignidade a instituições, e, além disso, protegê-las com dispositivos penais, inibe-se a liberdade de os indivíduos emitirem opiniões ou realizarem críticas sobre o funcionamento destas instituições”, diz a entidade, em um relatório de 2017.
“O desacato está contrário à Constituição, está contrário à Convenção Interamericana de Direitos Humanos, está na completa contramão da garantia da liberdade de expressão na sociedade", resumiu a advogada Camila Marques, da Artigo 19, durante um evento promovido pela organização em maio de do ano passado, em São Paulo. “As pessoas têm o direito de reclamar e de denunciar abusos sofridos, e a polícia muitas vezes utiliza o crime de desacato para afastar essas críticas".
Um estudo da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, divulgado em 2013, elenca uma série de países que revogaram o crime de desacato, seja por meio de mudanças legislativas ou por decisões de tribunais superiores: Argentina em 1993, Paraguai em 1998, Costa Rica em 2002, Chile, Honduras e Panamá em 2005, Guatemala em 2006, Nicarágua em 2007 e Bolívia em 2012.
De acordo com a Artigo 19, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez diversas recomendações aos países-membros da Organização dos Estados Americanos, entre eles o Brasil, para revogar as suas leis de desacato. Nos casos da Guatemala e da Bolívia, inclusive, as decisões judiciais que descriminalizaram a conduta reconheceram expressamente a influência do organismo internacional no entendimento.

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