terça-feira, 8 de maio de 2018

A universidade pública e as transformações que estão por vir

A universidade pública e as transformações que estão por vir


Os professores que montaram os cursos sobre o golpe formam uma geração que apostou no potencial de mudança da sociedade brasileira: agora, novos agentes de mudança estão nas salas de aula e nas ruas

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Quem somos
Escrevo no plural, pois acredito ser esta a história de muitos e de muitas colegas. É um depoimento sobre um espaço social onde convivi e interagi durante toda uma vida. Portanto, “nós” éramos os jovens e as jovens que ingressaram na universidade pública brasileira nos anos 1980.
Hoje somos quase todos grisalhos e muitos atuamos como professores das universidades públicas onde nos criamos. Formaram-nos para que fôssemos agentes históricos. Hoje contribuímos para a formação de agentes históricos – (trans)formadores da sociedade movidos por olhares críticos e inovadores.
A maioria de nós se considera “de esquerda”, cabendo nesta definição pessoas dos mais variados matizes ideológicos. Nosso partido é a defesa da universidade pública e integral, inclusiva e de qualidade, internacionalizada e brasileiríssima.
Obviamente, nem todos os professores e pesquisadores das universidades públicas comungam dessa concepção. Mesmo nos cursos de ciências humanas, muita gente aderiu ao “produtivismo” como única forma de fazer pesquisa ou preferiu a ascensão social dentro ou fora da universidade. Por outro lado, uma parte expressiva dos que se formaram na universidade pública atua, de maneira obstinada e militante, em outros espaços: juntos aos movimentos sociais, diretamente ou por meio das ONGs, na burocracia do setor público e até mesmo no mercado ou nas universidades privadas.
Nós resistimos nas nossas cidadelas [1] e, tal como nossos mestres, não queremos e nem podemos ficar nelas encastelados, como eles também não ficaram. Buscamos estabelecer pontes com a sociedade e participar da história em movimento.
Os cursos sobre o golpe
Estimo, com base no Censo do INEP, que somos no Brasil em torno de 25 mil professores[2] com o perfil que procuro analisar ao longo deste texto. Muitos ministramos, no presente momento, o curso sobre o “golpe de 2016” – cuja iniciativa pioneira partiu da UnB – em dezenas de universidades públicas brasileiras.
No atual clima de radicalização da sociedade brasileira, temos ficado cada vez mais expostos. É como se dissessem sobre “nós”: “eles” falam de “golpe” porque são professores. Ou são professores porque são “petistas”, “radicais”, “lunáticos”, “idealistas” ou “manipuladores de cérebros ingênuos”, conforme a preferência de quem olha de fora. A experiência de quem nunca passou pela universidade pública; ou “apenas” passou – pois muitos frequentaram seus cursos e obtiveram o diploma e se foram como se gozassem de um privilégio adquirido –, é bem diferente da nossa. Daí o estranhamento. Eles não entendem o que somos e o que fazemos.
Viver integralmente a universidade pública brasileira exige uma entrega de corpo e alma àquilo que configura a sua marca, para além da excelência acadêmica e científica, e que não faz parte do currículo.
O “aquilo” se adquire pela socialização na universidade. Uma ruptura então se processa, trazendo um novo sentido para a vida dos jovens e das jovens de classe média. Sim, porque a universidade pública brasileira dos anos 1980, quando nela ingressamos, ainda era bastante elitista, bem mais do que hoje, bem menos do que no passado.
Esse processo de socialização se dá de várias formas. Não existe doutrinação. Eu pelo menos nunca fui doutrinado, nem doutrinei ninguém. Sei que existe, mas são tantas as opções que só o é quem se deixar ser.
A primeira camada de socialização na universidade pública é o exercício do aprendizado dentro e fora de sala de aula: ler um texto, apreender as categorias, debater interpretações alternativas com os colegas, transformar o método em ferramenta de trabalho, confrontar os autores, mas sempre com perspectiva histórica. Isso faz de nós “trabalhadores do pensamento”, termo cunhado por Celso Furtado[3] numa de suas obras.
Esse aprendizado extravasa para a república onde os jovens e as jovens de diferentes cursos moram (juntando gentes das exatas e das humanas) e, não menos importante, invade os bares e as festas, onde existe muito debate sobre o que se lê em sala de aula.
Mas isso não é tudo. Existe uma segunda camada: o estímulo ao livre pensar. Ler de tudo e sobre tudo e jamais se conformar com o que se lê em sala de aula. Os jovens e as jovens criados na universidade pública brasileira adoram literatura e política. Isso parece não ter mudado pelo que observo nos meus alunos e alunas. Há um clima de curiosidade incessante. São estimulados pelos seus colegas e pelos professores a ir além dos textos. Esta camada talvez seja mais importante que a primeira, mas inexiste sem aquela. Permite inclusive questionar o conteúdo acadêmico, ressignificando-o.
Da conjunção dessas duas camadas de socialização, nos transmutamos como indivíduos, alunos e professores. Reprocessamos nossas origens, incorporamos alteridades e promovemos rupturas internas que se enraízam no tecido social de que somos parte.
A terceira camada – especialmente importante nas ciências humanas – é composta pela interpretação (na verdade, são muitas) do processo histórico, que nós recebemos, mas também ajudamos a construir. Tais interpretações sobre a expansão do capitalismo no Brasil, suas tensões e conflitos, não podem ser neutras, pois a universidade pública participou do processo e foi derrotada (parcialmente) pelo regime militar.
Parcialmente, porque – adaptando de forma livre a formulação de Roberto Schwarz[4], depois por ele retificada – havia uma “relativa hegemonia cultural” da esquerda durante o regime militar, especialmente na esfera acadêmica, mas não apenas, pois ela se alastrava para outras esferas da sociedade. Muitos intelectuais, artistas e jornalistas compartilhavam da mesma ferida, o que permitia uma compreensão mais ou menos consensual do processo histórico. Essa narrativa, por sua vez, servia como uma espécie de disponibilidade dos professores e estudantes para as transformações (e para as lutas) que haveriam de vir.
A expansão dos cursos de humanas
No final dos anos 1970 e durante os anos 1980, os cursos de ciências humanas se expandiram pelo Brasil afora e as várias leituras críticas fornecidas pela universidade se enraizaram. Ou melhor, elas eram hegemônicas no seu pedaço e se arvoravam a ocupar espaços nas esferas da política, da sociedade e da cultura, no sentido de mudar o curso da história, incorporando os atores renegados.
Paradoxalmente, a universidade pôde fazê-lo na medida em que os programas de graduação e pós-graduação nas ciências humanas se ampliavam, já que, mesmo com as crises, havia recursos financeiros para a expansão do ensino superior durante os governos militares. Portanto, a universidade ganhava musculatura por dentro do regime que combatia, criticava e pretendia superar.
Vários processos então se somaram, adquirindo energia histórica. Jovens formados nas melhores escolas do país (que naquele momento vinham, não apenas, mas especialmente das escolas particulares); com ânsia de conhecimento e dispostos a uma socialização no espaço público universitário; num momento em que o PT se organizava a partir de baixo, na onda das Diretas-Já e da Constituição de 1988; culminando com as eleições de 1989, quando a minha geração votou pela primeira vez para presidente na idade em que se costuma votar pela primeira vez numa democracia: entre 18 e 20 anos. Para completar, muitos de nós votamos pela primeira vez no líder popular hoje injustamente encarcerado em Curitiba.

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Opinião pública versus interesses particulares

 
Júlio Minasi/Secom UnB

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Nós, os universitários, não formávamos mais uma pequena elite como nos anos 1960 e 1970. Uma elite de massa engrossaria os programas de mestrado e doutorado nos anos subsequentes. A agenda era a da democracia e da cidadania, da recuperação do espaço público e do combate à desigualdade. Tratava-se de um acerto de contas com a história. Apenas hoje me dou conta de que esse era um fato social radicalmente novo.
Luiz Werneck Vianna quantifica essa expansão: saltamos de 100 mil estudantes no ensino superior em 1960 para cerca de 1,4 milhão em 1986. Para o cientista político, a intervenção dos intelectuais na vida pública passou a se dar a partir da universidade, que contava com as bolsas concedidas pela Capes e pelo CNPq. Mas diferentemente do passado, os intelectuais não dispunham mais de um “mandato público” para se dirigir à nação[5]. Eram vários os intelectuais e vários os atores sociais em busca da ampliação da cidadania, enquanto as forças da reação reorganizavam seus métodos políticos.
Paralelamente, Vianna revela novas tendências emergentes na universidade dos anos 1990. De um lado, havia uma “comunidade científica eticamente organizada” interagindo com as várias instituições (Congresso, empresas, partidos e movimentos sociais organizados); de outro, vigorava a “perversão corporativa em torno dos pequenos objetos de pesquisa”.
A universidade fazia agora parte de uma sociedade mais complexa com a qual interagia, de maneira cada vez mais fragmentada, ou então se isolava na consagração de um pequeno grupo de heróis –exclusivamente voltados para a produção científica e tomando como medida do seu sucesso a chancela obtida junto aos grandes centros internacionais. Os anos 1990 também se caracterizaram pela escassez de novos concursos para professores e pela estabilização do número de matrículas de graduação nas universidades públicas, compensada pelo crescimento exponencial das universidades privadas.
Em síntese, a universidade pública surgiu como um movimento de “servidores da sociedade no processo de transformação da cultura”, enfrentando-se com a sua “impregnação elitista”, e sem abdicar de um “excelente padrão científico”[6] – tal como indicado por Florestan, ao revelar a tensão constitutiva da USP em particular, mas que serve também, no meu entender, para situar os dilemas da universidade pública no Brasil durante o seu nascedouro. Em 1964, a universidade foi golpeada, mas se recuperou como espaço de reflexão crítica e formação de novos quadros, chegando inclusive a exercer uma “relativa hegemonia cultural” na vida da sociedade brasileira.
Marielle e a renovação
Se isso não mudou radicalmente a partir dos anos 1990, outro espaço (antis)social se cristalizou no seio da universidade pública, conciliando elitismo, que mostra a sua cara no discurso pretensamente meritocrático anticotas; reificação da produção científica, tida como único critério de avaliação docente; e internacionalização passiva, por meio da adesão a problemas de pesquisa distantes da nossa realidade ou sem a adaptação criteriosa necessária.
Tal conflito interno no seio da universidade pública brasileira assume uma nova configuração a partir dos governos do PT, que contribuíram para um novo padrão de expansão da universidade pública, ao criar novos centros e novos cursos, e adotar uma prática voltada para a inclusão de segmentos sociais até então marginalizados do acesso ao ensino superior. Marielle Franco é o exemplo típico da capacidade de renovação da universidade pública brasileira. Esta fornece o lugar para a combustão, mas a chama vem de fora da cidadela, que dela vive e renasce.
O fragmento dos jovens e das jovens de classe média que se socializaram na universidade pública no final dos anos 1980 – e que hoje se tornaram professores, encarregados de formar as novas gerações e de se deixar por elas trans(formar) – sente que é o momento de resgatar a missão originária da universidade pública, tal como formulada pelos nossos mestres.
Nesses trinta anos, ou seja, desde que ingressamos na universidade pública, muita coisa mudou. Por exemplo, não existe mais uma cultura universitária “petista”, mas até certo repúdio pelos quadros do partido. Isso porque os anos 2000 foram palco de divergências sobre o significado dos governos do PT para a resolução dos nossos impasses enquanto sociedade capitalista da periferia, que cria e recria novas hierarquias sociais e desigualdades de maneira incessante.
O contexto agora é outro, em virtude do retrocesso que vivemos depois de 2016. O frágil consenso inscrito na Constituição de 1988 foi em poucos meses rasgado, algo somente possível a partir da atuação coligada das classes dominantes. Se os métodos são hoje diferentes, o objetivo é o mesmo: retomar as bases do capitalismo selvagem no Brasil, eliminando as forças de dissenso.
A descaracterização das políticas sociais e da legislação trabalhista, o desmonte programado das empresas e bancos estatais, a defesa de um ajuste fiscal que preserva os ganhos do setor financeiro e de uma reforma educacional autoritária em todos os níveis de ensino, além da ofensiva contra os direitos humanos, demonstraram a esses antigos jovens – hoje cidadãos de meia idade, alguns inclusive gozando de certo prestígio e aderindo ao comodismo vigente – que a posição universitária conquistada se tornou menos importante do que a resistência contra o novo “golpe”.
Resistência e construção do futuro
O processo de socialização por que passamos no passado, e os espaços que hoje ocupamos motivados por esses valores sedimentados na universidade pública, nos transformaram em obstáculos à política de terra arrasada que impera hoje no país. Nascemos para a vida política num momento de virada, que nos impulsionou como atores históricos potenciais. Neste outro momento de virada, só nos resta agir como elementos de resistência, empenhados numa nova atividade construtiva e movidos pela ousadia propositiva.
Faltou e falta ainda uma autocrítica sobre a nossa condição universitária, até para que não nos conformemos com certa tendência à vitimização, que nos coloca fora da cena histórica. Ficamos, por muito tempo, divididos e distantes da sociedade. Se não formos capazes de beber da realidade pujante e multifacetada ao nosso redor, ficaremos acuados entre a sanha produtivista e as demandas corporativistas internas.
Uma nova interação entre a universidade pública e o processo histórico brasileiro está em vias de se gestar. Chegou o momento de fazermos a história tal como nos foi ensinado e passamos a ensinar. A sala de aula, o projeto de pesquisa e os seminários coletivos – espaços nos quais se exercita a excelência acadêmica e científica – não podem mais estar descolados da participação ativa nas transformações sociais e políticas do nosso tempo.
Se perdermos essa luta onde nos cabe influir resistindo, forjando alternativas e formando as novas gerações como fomos formados, não ficará ninguém para contar a história complexa, contraditória, e cheia de idas e vindas, da universidade pública originariamente criada pelas elites e para as elites; mas que não aceitou o figurino e decidiu partir para a linha de frente, abrindo brechas no sistema e construindo perspectivas contra-hegemônicas.


(*) Alexandre de Freitas Barbosa é Professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).
[1] O termo “cidadela” foi utilizado por Florestan com o objetivo de ressaltar a relação de tensão existente entre o pensamento universitário (no caso, a USP do seu tempo) e a sociedade. FERNANDES, Florestan. “A Geração Perdida”, in: A Sociologia no Brasil: contribuição para o estudo da sua formação e desenvolvimento. Petrópolis, Vozes, 1977.
[2] Estimativa com base em “Censo da Educação Superior – Resumo Técnico 2013”. Brasília: INEP. Trata-se de um cálculo subestimado. O valor de refere-se a 20% do total de professores em tempo integral das universidades públicas no ano de 2013.
[3]FURTADO, Celso. A Pré-Revolução Brasileira. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1962.
[4]SCHWARZ, Roberto. “Cultura e Política, 1964-1969”, in: As Ideias fora do lugar: ensaios selecionados. São Paulo, Penguin/Companhia das Letras, 2014.
[5] VIANNA, Luiz Werneck. “A institucionalização das ciências sociais e a reforma social: do pensamento social à agenda americana de pesquisa”, in: A Revolução Passiva: Iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro, Revan, 2004, 2ª. edição.
[6]FERNANDES, Florestan, 1977.

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