terça-feira, 3 de julho de 2018

Obrador: o adversário de um modelo de opressão


Obrador: o adversário de um modelo de opressão

 

 
03/07/2018 09:01
 
 
Foi um dia de cores vivas no México, como o verde intenso e vivo dos chilis. Ponto de partida e final de uma história de quase um século, durante a qual um mesmo partido, o PRI (Partido Revolucionário Institucional), governou durante muitas décadas, sete, ininterruptas. Somente houve uma transição de desencantos entre 2000 e 2012 – em favor do PAN, o ultradireitista Partido da Ação Nacional) até que o PRI, com Enrique Peña Nieto, voltou a governar até este domingo. Gerações e gerações de mexicanos só conheceram os descendentes do partido fundado em 1929 pelo ex-presidente Plutarco Elías Calles (1924-1928). Neste domingo de comunhão entre as famílias e longas sobremesas, se abriu uma greta na história mexicana. O país assumiu coletivamente o desafio de uma contrarrevolução democrática, pacífica e moral. Andrés Manuel López Obrador, o candidato do Morena (Movimento de Regeneração Nacional), que venceu as eleições deste domingo, sonhou essa mudança. O povo fez a sua parte nas urnas, sem grosserias, nem bandeiras queimadas, nem menosprezos raciais, como fez o imperador da grosseria política, que é Donald Trump.

AMLO (como é conhecido, pelas iniciais de seu nome completo), um homem que se forjou no PRI, passou a formar parte da esquerda no partido PRD (Partido da Revolução Democrática), até que em 2012 fundou o Morena, seu próprio movimento, tornou realidade o que ele chamou de “quarta transformação do México”, depois da Independência, da Reforma e da Revolução. A guinada que o país viveu tem sido enorme, à altura de um país que encarna como poucos o sonho da emancipação americana, e que lutou e luta por sua soberania e sua liberdade diante do vizinho norte-americano – que desde o Século XIX o lastima em sua pele e sua alma. Os Estados Unidos estrearam como império intervencionista com a primeira expedição colonial de sua história, entre 1846 e 1848, quando invadiu o território mexicano e terminou criando a República do Texas, um território que antes pertencia aos vizinhos do sul.

Foi um domingo de cores vivas, verde como o doce abacate, onde não se notou que um homem havia vencido sua aposta nas urnas, e com isso destroçou a sagrada ópera política de um sistema tão criminoso quanto corrupto. AMLO poderia ser o vencedor da eleição mais importante da história do México: além de se eleger como novo presidente, e com vantagem recorde sobre os demais, sua coalizão também emplacou a nova chefa de governo da capital, além de outras importantes vitórias em eleições estaduais e uma grande bancada legislativa, tanto na Câmara quanto no Senado. Sua vitória tem o sabor da burla retrospectiva dos estatutos originais do PRI. O dirigente que derrotou o partido dinossáurico simboliza e sintetiza as intenções que figuravam nos primeiros passos do PRI no Século XX: “uma disciplina de sustentação da ordem legal” e “Instituições e reforma social”. O Morena e sua coalizão “Juntos Faremos História” – também formada pelo Partido do Trabalho (PT) e o movimento Encontro Social – conseguiu perfurar o muro do santuário protegido pelo PRI e pelo PAN, com uma contínua promessa de mudança, uma reforma social substancial e a restauração da “ordem legal”, através da erradicação da violência e da corrupção. “Foi como o voo lento do pássaro que vai por outro ninho”, diz Ramón Sánchez, um coordenador do Morena na Colônia Buenos Aires, um setor pobre da capital. Por essas zonas de pobreza e trabalho de sol a sol, se via um México aliviado, ainda na expectativa das confirmações oficiais. “Nunca pensei que este dia chegaria. Pensei que alguém mataria ele (AMLO) antes”, diz Amalia, uma dessas jovens de 23 anos que constituem boa parte do eleitorado do Morena. Nos bairros mais ricos, Polanco ou Lomas de Chapultepec, os burgueses andavam com cara de susto. Um rapaz loiro perguntava, andando pelas ruas de Polanco, onde ficava sua zona eleitoral. Depois que o indicaram, ele saiu dizendo: “que horror, se López Obrador ganhar, eu vou fugir para a Suécia”. Essa classe dominante que defendeu seus privilégios e sua impunidade a ponta de pistolas e subornos tem uma máscara de terror. Os outros setores sociais oscilam entre o entusiasmo, a felicidade que respiram os fins de ciclo e a incerteza. López Obrador foi o adversário radical desse modelo de opressão que perdurou durante décadas e décadas. Se içou como a bandeira da anticorrupção e do saneamento profundo, a partir do que chamou “uma Constituição moral”. Soube somar ao seu batalhão gente à esquerda e ultraconservadores evangélicos do Norte do país, uma peça chave de qualquer vitória no México. Voou sobre seu país como um pássaro sábio, enquanto os outros gastavam sua credibilidade disparando nele suas muitas sombras. Ele entendeu o México, enquanto seus inimigos políticos nesta eleição, Ricardo Anaya (PAN) e José Antonio Meade (PRI) não entendiam nem a eles mesmos. O primeiro, um homem cujo berço está no centro liberal, mas que fez acertos com a esquerda do PRD e ficou sem sua ala mais à direita. O segundo avançou com o crepúsculo do PRI sobre suas costas. O partido do presidente Peña Nieto pagou por suas incompetências com a maior desventura eleitoral no âmbito Legislativo e nos estados onde estava em jogo uma mudança de governador. “Não somos os triunfadores deste processo”, admitiu Meade bem cedo, durante a apuração. Na capital, a candidata do Morena, Claudia Sheinbaum, devastou o PRI e o PRD.

Nas presidenciais, as distâncias são similares. Amlove (outro dos seus apelidos) já não é “a esperança”, e sim o chefe. Os 30 pontos que impôs sobre seus rivais são a tradução inapelável de um país que gritou “basta”. E o fez com as cores e a modéstia silenciosa deste país, onde se mescla, com uma sabedoria inigualável, todos os contrários: o picante do chili com o azedo do limão, o cremoso soberano do chocolate com a ternura crocante do milho. O novo modelo latino-americano nasceu na fronteira entre o império e nós. A contrarrevolução democrática do México vem iluminar um território devastado, um modelo apenas nascente. “Uma coisa é ganhar, outra coisa é governar”, avisam os meios de comunicação, simpáticos ou não. Agora vem o inquietante “como”. O herdeiro do nacionalismo revolucionário ocupará o poder num país onde a campanha eleitoral deu lugar a tantas alianças estranhas (esquerda junto com os liberais, Obrador junto com os evangélicos, o PRI fraturado entre a velha guarda, que optou pela esquerda, e seu candidato oficial, um liberal de direita) que o México despertará com os sinais trocados. Só há uma certeza: a revolução proposta arrasou nas urnas em todo o território. Talvez AMLO seja para o México o que o ex-presidente socialista francês François Mitterrand foi para a França, quando ganhou as eleições presidenciais em 1981 com um programa de 100 pontos que nunca cumpriu verdadeiramente. Entretanto, abriu o jogo de uma sociedade prisioneira de uma elite: apareceram dezenas de rádios novas, canais de televisão, diários, revistas e, com ele, ascendeu uma nova geração que modernizou a França. Isso, e a derrota da corrupção e de um Estado cúmplice com o crime organizado, que semeia assassinatos de milhares e milhares de inocentes, já seria um México no paraíso. Ontem foi um domingo de color e sensibilidade para o México: silencioso, profundo, secreto e sempre de pé.





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