Coronel avisou Bolsonaro de irregularidades de Mourão em projeto de R$ 32 milhões do Exército
Por Rafa Santos
Os bastidores do desenvolvimento do Simulador de Apoio de Fogo (SAFO) do Exército Brasileiro são marcados por polêmicas, dúvidas e suspeitas de irregularidades no contrato que envolvem oficiais de alta patente, a empresa espanhola Tecnobit e o lobista Tomas Sarobe Piñero.
O SAFO –que mudou de nome e atualmente se chama SIMAF (Sistema de Simulação de Apoio de Fogo)– custou R$ 32 milhões e é usado para projetar missões e cenários virtuais para treinamentos de militares a custos menores. O projeto que foi marcado por sucessivos e constrangedores atrasos foi alvo de extenso trabalho de reportagem do jornal “El País”.
Umas das figuras mais importantes (e polêmicas) do projeto é o general da reserva Antônio Hamilton Martins Mourão. Candidato à vice-presidência na chapa de Jair Bolsonaro (PSL), o militar teve seu papel questionado pelo coronel da reserva, Rubens Pierrotti Júnior que atuou como supervisor operacional do SAFO. Mourão coordenou o projeto.
Segundo Pierrotti, a atuação de Mourão durante todo o desenvolvimento do simulador foi marcada por assédio moral, desrespeito aos processos e defesa intransigente dos interesses da Tecnobit. “As bobagens que ele tem dito, como candidato a vice-presidente da República, dá uma pequeníssima amostra do que ele era como oficial general da ativa do Exército, com seguidores fieis dispostos a aplaudir tudo o que ele dizia”, resume Pierrotti.
Em entrevista ao Yahoo Notícias, Pierrotti conta mais sobre os bastidores do projeto e também revela um detalhe que não se sabia até então. Ele chegou a pedir auxílio do então deputado federal Jair Bolsonaro para tentar conter “as ilegalidades de Mourão”. Nunca obteve resposta. O Yahoo Notícias entrou em contato com a assessoria do PSL, do Exército e do general Mourão e até o fechamento deste texto não obteve resposta.
Yahoo Notícias: Quanto tempo o senhor atuou nas Forças Armadas? Quando foi designado para supervisionar o Simulador de Apoio de Fogo (SAFO)?
Rubens Pierrotti Júnior: Ingressei no Exército 1985, por meio de concurso público, na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx). Em 2016, passei para a reserva, no posto de coronel. Minha última função no Exército foi a de Comandante do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista. Fui designado como Supervisor Operacional do Projeto do Simulador de Apoio de Fogo (SAFO) por meio da Portaria no 1.059, de 28 Out 2010. Na época, estava no posto de major e exercia a função de Chefe da Seção de Inteligência da 1ª Região Militar (1a RM) (RJ e ES). No Projeto SAFO, passei a chefiar a equipe de quatro artilheiros, cuja função era, num primeiro momento, trabalhar com a Tecnobit no detalhamento dos requisitos operacionais básicos para que o Simulador incorporasse a doutrina do Exército Brasileiro.
Yahoo Notícias: Por favor, explique a importância do SAFO para o exército?
Rubens Pierrotti Júnior: Falar sobre a importância do SAFO para o Exército Brasileiro é bastante difícil. A começar porque a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) e a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO) deram parecer negativo para a compra do simulador no mercado externo. O Departamento de Ciência e Tecnologia (DCT) do Exército também foi contra. E aí, você se depara com um “estudo de Estado-Maior” que menciona somente um simulador de artilharia, justamente o simulador que foi desenvolvido pela TECNOBIT para o Exército Espanhol, no final da década de 1990: o Simulador de Artilharia de Campanha (SIMACA). O Exército tenta justificar o SAFO, dizendo que o simulador economiza munição. Isso não é verdade. O SAFO não economiza nenhum centavo de munição de artilharia, porque a Dotação de Munição de Artilharia (DMA) do Exército não foi reduzida depois que o SAFO entrou em operação. Seria o mesmo que alguém dizer que jogando “Call of Duty”, teve uma economia de alguns milhares de reais, pela contabilização dos tiros virtuais que disparou no vídeo game.
Yahoo Notícias: Como teve seu primeiro contato com o general Hamilton Mourão? Em que circunstâncias?
Rubens Pierrotti Júnior: Conheci o general Mourão em 2006 quando servi em São Gabriel da Cachoeira, no Estado do Amazonas. Depois disso, retomamos contato no Projeto SAFO, em 2012. No início, ele parecia desempenhar um papel mais de “consultor” ou de “conselheiro” do general Vasconcellos, mas, com o tempo, principalmente quando os problemas com a empresa começaram a aumentar, o Mourão assumiu de vez a gerência do Projeto, prometendo a seus superiores que iria resolver a questão.
Yahoo Notícias: Como descreve seu relacionamento com ele?
Rubens Pierrotti Júnior: À medida que os problemas da Tecnobit tornaram-se mais evidentes, o relacionamento do general Mourão com a equipe brasileira que acompanhava o desenvolvimento do SAFO piorou bastante. Primeiro, ele resolveu afastar o coronel Wurts (fiscal do projeto) e o tenente coronel Gustavo (supervisor técnico). A Tecnobit e seu representante comercial reclamavam que os dois eram um “entrave”. Esses militares sofreram assédio moral e, no final, foram retirados do projeto. A partir do momento em que a equipe operacional (que eu chefiava) começou a avaliar o produto e demonstrar, na prática, que a Tecnobit não estava conseguindo desenvolver o SAFO a contento, o general Mourão também se virou contra nós, particularmente, contra mim, que era o supervisor operacional. Ele fez uma grande campanha difamatória dentro do Exército contra toda a equipe brasileira que acompanhava o desenvolvimento, em defesa da empresa espanhola. Dizia que a seleção para a missão havia sido falha, que seus integrantes não tinham capacidade para participar do projeto e que tinham problemas de relacionamento com a empresa. Mas, curiosamente, esses problemas só surgiam quando a equipe brasileira cobrava que a Tecnobit desenvolvesse o que o Brasil estava pagando, o que havia sido contratado. No final, quando julguei que meu relacionamento com o general Mourão chegou a um ponto insustentável, eu mesmo pedi afastamento do Projeto SAFO.
Yahoo Notícias: Quais os maiores entraves para o desenvolvimento do simulador?
Rubens Pierrotti Júnior: O maior entrave para o desenvolvimento do simulador foi constatado na falta de capacidade tecnológica da Tecnobit. Eu não tive essa percepção de imediato, mas o supervisor técnico, major Gustavo e o tenente coronel Wurts identificaram cedo o problema. A Tecnobit é uma empresa espanhola que possui tecnologia variada em alguns setores, como na construção de equipamentos óticos, comando e controle, e até simuladores. Mas isso não significa que ela detivesse know-how suficiente para desenvolver o simulador que vendeu ao Exército Brasileiro. No caso do SAFO, ao longo do desenvolvimento, a equipe brasileira se deu conta de que a Tecnobit queria vender o SIMACA, ou seja o mesmo simulador de artilharia de campanha que ela havia desenvolvido para o Exército Espanhol no final da década de 1990, incorporando pequenas (e forçosas) evoluções tecnológicas, com um lucro enorme.
Yahoo Notícias: Quem é Tomas Sarobe Piñero? Qual influência o senhor acredita que ele teve na escolha da empresa espanhola Tecnobit? Qual o grau de aproximação dele com o exército brasileiro?
Rubens Pierrotti Júnior: Tomas Sarobe Piñero (conhecido como Tom Sarobe) é um espanhol que atuou como representante comercial da TECNOBIT na venda do SAFO para o Exército Brasileiro, por meio de uma empresa de nome Continental. Participei de algumas reuniões entre o Exército Brasileiro, a Tecnobit e o Tom Sarobe. Ele tem um perfil agressivo de negociação, em que busca o máximo de ganho para si, independentemente das perdas para o outro lado. Pertence à alta maçonaria da Espanha. Em diversos aspectos, contudo, ele continua sendo uma figura enigmática, inclusive quanto ao seu relacionamento com o Exército Brasileiro, ou melhor, com oficiais generais do Exército Brasileiro. Nas visitas da Gerência do Projeto SAFO à Espanha, ele ofereceu banquetes em sua própria residência para os generais. Numa dessas oportunidades, o general Mourão determinou que alguns oficiais superiores o acompanhassem. Eu, para mim, tenho que ele, dando ordem para que fôssemos a esse banquete, queria também nos envolver de alguma forma. Foi assim que eu acabei participando de um jantar na casa do Tom Sarobe e posso dizer: fiquei impressionado com a opulência das comidas e das bebidas que foram servidas. Ele estava gastando uma nota. Eu me perguntava: “quem está pagando isso? O povo brasileiro?”; “ele está tendo esse lucro todo, a ponto de esbanjar dessa forma?”; “o Contrato SAFO valeu tanto a pena assim para o Tom Sarobe?”
Yahoo Notícias: O senhor descreveu que muito antes da licitação existia a percepção de que o Exército iria fechar contrato com a Tecnobit a qualquer custo? O senhor pode detalhar melhor? Já viveu situação parecida com essa como militar?
Rubens Pierrotti Júnior: O general Marco Aurélio foi o idealizador da compra do SAFO da Tecnobit. Ele conheceu o SIMACA espanhol, quando exerceu o cargo de Adido Militar junto à Embaixada do Brasil na Espanha, no posto de coronel. Nessa época, conheceu também o Tom Sarobe. Quando chegou a general de divisão, o general Marco Aurélio viu a oportunidade de comprar o simulador. Ele era o diretor de Educação Superior Militar (DESMil) e pensou em instalar o equipamento na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), subordinada à DESMil. Primeiro tentou justificar a compra com pareceres dos Cursos de Artilharia da AMAN e da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO). Mas, mesmo estando sob sua subordinação, a AMAN e a EsAO deram pareceres contrários à compra. O Departamento de Ciência e Tecnologia (DCT) também foi consultado e deu parecer negativo. Contudo, com o auxílio de seu superior, o general Rui Monarca da Silveira, Chefe do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx), o general Marco Aurélio, finalmente, conseguiu um parecer favorável, na forma de um “estudo de Estado-Maior” para a compra do simulador. Esse estudo de Estado-Maior é bastante deficiente, porquanto menciona apenas o SIMACA da TECNOBIT, desprezando outros tantos simuladores e empresas. Na verdade, esse estudo tornou-se uma das primeiras provas documentais de que havia a intenção clara de comprar o simulador da Tecnobit.
Yahoo Notícias: O senhor também diz que em dado momento os engenheiros brasileiros passaram a resolver problemas do projeto espanhol. Que a suposta transferência tecnológica prevista em contrato nunca aconteceu e que suspeitava-se que o projeto poderia ter sido feito no Brasil a um custo menor. O senhor tem essa impressão ainda hoje?
Rubens Pierrotti Júnior: Essa percepção de que o Projeto poderia ser desenvolvido no Brasil, primeiro, foi do Departamento de Ciência e Tecnologia (DCT) do Exército, que deu parecer desfavorável para a compra do simulador no exterior ainda em 2010. Uma das críticas era referente ao custo-benefício do simulador, em relação a outros produtos mais baratos e eficientes. De fato, os engenheiros militares brasileiros ensinaram muita coisa à Tecnobit, numa transferência tecnológica às avessas. A transferência tecnológica para o Exército Brasileiro foi bastante deficiente e, por conta disso, nenhum dos sete engenheiros militares brasileiros se dispôs a certificá-la como previa o contrato.
Mesmo depois da “inauguração” do SAFO, em Resende e Santa Maria, os engenheiros militares brasileiros continuaram a resolver problemas do Simulador. Durante o Projeto, o SAFO foi reprovado oito vezes. Em sete delas, eu participei das avaliações. Mas, após meu afastamento do projeto e de outros militares, o SAFO ainda foi reprovado em testes mais uma vez, por novos oficiais de artilharia.
Yahoo Notícias: O senhor afirma que Mourão foi escalado para destravar o projeto. Afirma que existe uma parcela do exército que ‘resolve problema’ a qualquer custo. Que tipo de problemas eles resolvem? Ser um ‘resolvedor de problema’ ajuda esses indivíduos a subir na hierarquia militar?
Rubens Pierrotti Júnior: Enquanto no setor privado pode-se fazer tudo que não esteja expressamente proibido pela lei; no setor público, só se pode fazer aquilo que a lei determina. Esse é o princípio da legalidade que está no Art. 5o, inciso II, e Art. 37, caput, da Constituição Federal. Quando eu digo que existe uma parcela de militares do Exército que “resolve problema a qualquer custo”, refiro-me exatamente a resolver problemas atropelando a legalidade, com a desculpa de que “os fins justificam os meios”. O general Mourão dizia que o SAFO deveria ser concluído de qualquer maneira, porque, se não fosse, nas palavras dele, “o que o Exército vai fazer com os dois prédios que foram construídos? Vão virar ‘elefantes brancos’?”. Ele ainda acrescentava: “isso pode chamar a atenção do TCU (Tribunal de Contas da União)”. O Exército se julga muito prejudicado pelas críticas do período da Ditadura Militar e faz um esforço grande para manter uma imagem boa da Instituição, ao lado da Marinha e da Aeronáutica. Isso acaba se refletindo num corporativismo extremado que leva à conivência com quem “desaparece” com problemas, com quem consegue varrer a sujeira para debaixo do tapete, muito mais do que resolvê-los pelas vias legais. Essa postura é deturpadamente considerada, por muitos chefes militares, como sinal de “flexibilidade”, “coragem moral”, “lealdade ao Exército”… Assim, acho que seria mais adequado substituir a palavra “resolvedor” por “varredor”. Mas sim, ser um “varredor da sujeira para debaixo do tapete” ajuda muitos a subirem na carreira ou a conseguirem prêmios, como boas transferências e missões no exterior.
Yahoo Notícias: O senhor afirma que após reprovar pela sexta vez o projeto da Tecnobit foi convidado para jantar com um dos diretores da empresa. Também diz que muitos problemas envolvendo o projeto foram resolvidos na base de ‘encontros’ e ‘jantares’ e ‘pagamentos’. Pode dar alguns exemplos?
Rubens Pierrotti Júnior: Na sexta vez em que estávamos avaliando o simulador, a quantidade de erros ainda era tão grande que, após duas ou três semanas de trabalho, propus ao general Mourão que cancelasse nossa missão no exterior, até que a Tecnobit corrigisse os problemas. A previsão era de ficarmos (um capitão de artilharia e eu), dois meses na Espanha para testar o produto, juntamente com os engenheiros militares brasileiros que já estavam lá. Isso representava mais gastos para o Exército. Mas, ao invés de cancelar a missão, o general Mourão ampliou-a para três meses, determinando que ajudássemos a Tecnobit a resolver os problemas, coisa que já estávamos fazendo. Na avaliação dos engenheiros, a empresa levaria, no mínimo, seis meses para corrigir as falhas, desde que trouxesse de volta os engenheiros que ela havia transferido para outro projeto. Trabalhamos muito, mas o resultado não mudou significativamente. Falávamos ainda de 4 dígitos de erros, ou seja, os erros chegaram à casa do milhar.
Foi nesse contexto que o Diretor de Estratégia da Tecnobit, Carlos Hernández Medel, convidou-me para um jantar e tomar um vinho, onde, segundo ele, resolveríamos todos os problemas do simulador. Eu respondi que não achava adequado nem ético aceitar o convite e que esperava resolver os problemas do SAFO no ambiente de trabalho e não fora dele. Ele insistiu bastante até que eu respondi: “quando minha assinatura não valer mais nada para você, eu aceitarei o convite para um jantar”. Naquele momento, a minha assinatura no certificado de conclusão da fase de desenvolvimento, juntamente com a do Fiscal do Contrato (TC SILAS) e do Gerente do Projeto (General Mourão), estava valendo 5,8 milhões de euros, que era o pagamento previsto no término da fase. Quando retornei da missão no exterior, escrevi um relatório ao Comandante do Exército, relatando o caso.
Antes disso, no Rio de Janeiro e em Resende, o mesmo Carlos Hernández Medel, assim como o Ángel Suárez (diretor de simulação da Tecnobit), já haviam tentado pagar meu almoço. Numa dessas oportunidades, o Carlos disse: “somos amigos; e um amigo pode se oferecer cordialmente para pagar o almoço do outro”. Eu respondi: “mas o ‘amigo’ paga a conta com o seu cartão de crédito pessoal ou com o cartão corporativo da empresa?”
Como relatei em outra pergunta, o Tom Sarobe ofereceu banquetes na sua casa para os oficiais generais que foram inspecionar o Projeto SAFO na Espanha. A Tecnobit pagou a passagem aérea de ida e volta para a ex-mulher do Gen MOURÃO. Ele respondeu ao jornal EL PAÍS que tinha “direito” a uma passagem executiva e que trocou por duas na classe econômica. Mesmo que essa conta fosse exatamente igual, ele estaria ofendendo o princípio da Moralidade da Administração Pública.
Yahoo Notícias: O senhor chegou a oferecer apoio técnico e jurídico —já que também é formado em direito— ao general Mourão no projeto em discussões com a Tecnobit. Disse que ele ameaçou prendê-lo. Em qual circunstância isso ocorreu? Já havia vivido algo parecido na sua carreira militar?
Rubens Pierrotti Júnior: Em 30 Jan 2014, o general Mourão fez uma reunião comigo (Supervisor Operacional do Projeto), com o TC SILAS (Fiscal do Contrato e Supervisor Técnico), e com pessoal do Escritório de Gerenciamento do Projeto SAFO (general Aragão, coronel João Batista e Tenente Coronel Carvalho) no DECEx. Eu havia escrito um relatório condensando os fatos mais relevantes do Projeto SAFO em 2013. Havíamos fechado o ano com erros em 73% dos requisitos avaliados, o que não permitia que aprovássemos a fase 2. Mas a empresa pressionava para receber seu pagamento e entrar na fase 3 . Foi nesse contexto que assessorei o general Mourão, sob o aspecto legal e contratual, de não passarmos para a fase seguinte, sem que a TECNOBIT resolvesse os problemas da fase anterior. Escrevi isso no relatório. Ele me disse que, a partir daquele momento, a difusão dos meus relatórios ficaria restrita a ele, deu-me uma bronca, dizendo que ele queria fazer exatamente o que eu dissera que seria ilegal, mas que, depois que eu escrevi, ele não poderia fazê-lo de imediato e que, por pouco, não havia me prendido. Olhou para mim e para o Silas (Fiscal do Contrato) e anunciou que havia agendado com a Tecnobit uma nova avaliação do simulador, desta vez em Resende, para o final de fevereiro, e que iríamos assinar o certificado de término da fase 2 de qualquer maneira. Claro que, durante os mais de 30 anos que passei no Exército, presenciei injustiças e arbitrariedades, mas acho que o Mourão, com seu mote de “os fins justificam os meios”, conseguiu se destacar com suas bravatas, vocabulário “chulo” e destemperos. As bobagens que ele tem dito, como candidato a vice-presidente da República, dá uma pequeníssima amostra do que ele era como oficial general da ativa do Exército, com seguidores fieis dispostos a aplaudir tudo o que ele dizia, o que o deixava bem mais à vontade.
Yahoo Notícias: O general Mourão assinou um certificado dizendo que a Tecnobit havia terminado seu trabalho mesmo com um parecer negativo seu, do fiscal do contrato e de outros militares envolvidos? O senhor poderia explicar melhor? Como isso é possível?
Rubens Pierrotti Júnior: Isso ocorreu em março de 2014, depois da 7ª reprovação do simulador. O Mourão tinha dito que, ao menos que provássemos que o simulador não conseguia ainda realizar um exercício simples de Artilharia, nós seríamos obrigados a assinar o certificado de término da fase 2, e os engenheiros, a certificarem a transferência tecnológica. Veja bem, o Gerente do Projeto SAFO inverteu os papeis: não era a Tecnobit, contratada, que deveria demonstrar que o simulador havia sido bem desenvolvido. Ele nos deu um prazo bastante curto para avaliar o simulador. Solicitamos, então, apoio do Curso de Artilharia da AMAN (oficiais e cadetes), para nos ajudar a dar conta dos trabalhos. Durante quatro dias, trabalhamos de 06h da manhã até meia-noite, uma da madrugada. Percebemos que, da última inspeção em dezembro 2013 para a que estávamos realizando em fevereiro de 2014, o simulador tinha evoluído muito pouco. Sabíamos que haveria uma reunião com a empresa para relatar o resultado da avaliação. Dessa forma, pedimos, já que o general Mourão não queria ler os relatórios, que, ao menos, deixasse-nos antecipar algumas ideias úteis para essa reunião. Conversamos por trinta minutos com o general Mourão. Foi após essa conversa que vimos e ouvimos ele passar nossos argumentos, antes da reunião, ao Tom Sarobe. Por fim, ele fez um acordo com a Tecnobit para que a empresa resolvesse alguns dos requisitos que ele julgava mais importantes, diminuindo em muito o escopo do projeto. Essa assinatura isolada do Mourão no Certificado de término da fase 2 foi questionada inclusive pelo Gabinete do Comandante do Exército e pela Comissão do Exército Brasileiro em Washington (CEBW), gestora do Contrato, que temia ser responsabilizada pelo pagamento sem atender aos requisitos expressos. Ou seja, a pergunta “como era possível?”, respondo que não era possível, mas o Mourão fez assim mesmo.
Yahoo Notícias: O senhor também relata que o general Mourão passou informações e argumentos internos do corpo técnico para a empresa tecnobit. E que, em dado momento, era possível dúvidas de que lado ele estava. Isso aconteceu mais de uma vez? Em qual momento o senhor passou a acreditar nessa hipótese?
Rubens Pierrotti Júnior: Por que ele reunia-se em segredo, a portas fechadas com diretores da Tecnobit? Por que, sempre que tinha a oportunidade, ele frequentava a casa do representante comercial da empresa? Por que ele saía para jantar ou beber com diretores da empresa após as reuniões do expediente? Na 6 ª vez em que reprovamos o SAFO, durante a inspeção, o Mourão nem prestava atenção à demonstração que a Tecnobit lhe fazia, acredito que para fingir não perceber os erros. Quando, em determinado momento, tentamos lhe mostrar os erros que estavam ocorrendo na demonstração do simulador, ele foi severo com a equipe e, na frente de todos, disse que nós estávamos “constrangendo” a empresa e que, se continuássemos, ele iria mandar nos prender. Isso foi nos dando indícios de que o general Mourão não defendia os interesses legítimos do Exército e do Brasil. Mas o fato que transformou os indícios em certeza foi quando ele assinou o certificado de conclusão da fase 2 faltando duas assinaturas que o Contrato exigia, a do Fiscal do Contrato e a minha. Foi aí que solicitei meu afastamento do projeto.
Yahoo Notícias: Ao rebater suas declarações sobre o projeto, o general Mourão chegou a chamá-lo de “psicopata” e “ressentido”. Disse que o conhece. Que o senhor “vai ser pego” e que está divulgando coisas que “não poderia divulgar”. O que o senhor pensa dessas declarações?
Rubens Pierrotti Júnior: O general já me ameaçou diversas vezes, esta não foi a primeira. Em 2015, ele inclusive tentou me punir, solicitando que o Comando Militar do Leste abrisse uma sindicância para apurar, sob o mesmo preceito de quebra de confidencialidade, um e-mail em que respondi a perguntas do major Lawand sobre simuladores. O major buscava informações para sua monografia da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), cujo tema tratava de simuladores para a artilharia de campanha.
Sofri perseguição por mais de um ano no Comando do 8o GAC Pqdt. Da minha parte, eu aguentei bem a pressão, mas eu tinha pena dos soldados, de todos os militares do quartel que eram os maiores penalizados com essas perseguições. Às vezes, eu ouvia comentários do tipo: “o general Abrahão não gosta do 8o GAC Pqdt”. Eles não sabiam o que se passava, mas eu sim. Por conta disso, decidi antecipar minha saída do Comando, pedindo para passar para a reserva. Eu já tinha tempo sobrando para isso.
Outro amigo me disse que Mourão havia me “queimado” no Centro de Inteligência do Exército (CIE), órgão herdeiro do Serviço Nacional de Informações (SNI) da Ditadura Militar. Isso significava que eu seria jogado ao ostracismo. Portanto, um ano antes da designação para missões no exterior e cursos nacionais (ESG, ECEME etc.), eu já sabia que não iria sair nada para mim, apesar dos pontos da minha promoção por merecimento a coronel indicarem o contrário. Talvez por isso, ele me chame de “ressentido”, mas não guardo ressentimento nenhum por isso. Quando o Mourão comete injúria me chamando de “psicopata”, penso que é porque eu ousei pensar diferente dele, como dizem “fora da caixinha”, e muita gente no Exército teme quem pensa.
Yahoo Notícias: Desde o primeiro contato da reportagem do Yahoo Notícias, o senhor deixou claro que não tinha nenhuma ambição política. Que havia, inclusive, se negado a gravar um vídeo com suas denúncias para um candidato a presidente? Tem sido muito assediado por políticos?
Rubens Pierrotti Júnior: Não tenho sido assediado por políticos. Somente um jornalista da campanha de um candidato à Presidência da República entrou em contato comigo, pedindo para gravar um vídeo, onde ele queria que eu contasse a história do SAFO para os eleitores, esclarecendo porque eu, que sou militar, não voto na chapa Bolsonaro-Mourão.
Eu me recusei a gravar o vídeo, porque não queria dar a oportunidade para espalharem “fake news”, de que minha entrevista ao jornal El País teria tido algum fim político. Por isso, minha preocupação inicial em saber a intenção do Yahoo Notícias e se estava ligado a algum candidato. Eu posso esclarecer, sem problema, para qualquer órgão da imprensa, os fatos que envolveram o Projeto SAFO. Trabalhei três anos e três meses nesse Projeto. Foi bastante desgastante descobrir, no final da carreira militar, que tantas irregularidades são cometidas e que quem deveria tomar providências não as toma. O problema não é só o Mourão. Vou contar aqui algo que está guardado há muito tempo como segredo. Na época em que o Mourão assinou o certificado de conclusão da fase 2 do SAFO, para liberar o pagamento de 5,8 milhões de euros à Tecnobit, eu liguei para o gabinete do deputado Jair Bolsonaro. Eu, ingenuamente, achava que ele, como Deputado Federal, pudesse fazer alguma coisa para impedir as ilegalidades que o Mourão estava cometendo. Foram dois telefonemas e autorizo desde já a quebra de meu sigilo telefônico para constatar que fiz as ligações. Estou esperando a resposta do Bolsonaro até hoje! Ele não quis se envolver e, além disso, anos mais tarde convidou o próprio Mourão para ser seu vice na campanha à Presidência da República. Lutar contra o “sistema” é muito difícil. Como eu disse algumas vezes, eu pensava que estava no filme “Tropa de Elite” (cobrando que a Tecnobit cumprisse o contrato), mas percebi que estava mesmo no filme “Tropa de Elite 2”, que o inimigo era outro! Eu ainda não defini em quem eu vou votar, mas estou convicto de quem eu não vou votar e é justamente nessa dupla Bolsonaro-Mourão.
Yahoo Notícias: O senhor também sempre se mostrou preocupado com sua segurança. Suspeita que provavelmente esteja sendo vigiado. O que mudou na sua rotina após falar com a imprensa sobre suas suspeitas em relação ao fato? Se sentiu de alguma maneira intimidado ou ameaçado após conceder entrevistas?
Rubens Pierrotti Júnior: Preocupação com segurança faz parte do DNA militar, mas, claro, o fato de eu ser uma das principais testemunhas das irregularidades do Projeto SAFO e contrariar muitos interesses, coloca-me em uma situação mais delicada. Quando passei para a reserva, decidi sair um tempo do Brasil. Fiquei quatro meses fora, aproveitando também para fazer alguns cursos. O objetivo maior, contudo, era “esfriar”. Nós temos exemplos fortes de “queima de arquivo” no Brasil, como o do PC Farias e do Celso Daniel.
Então, eu procuro tomar algumas precauções para não ser o próximo no obituário. Uma das precauções que tomei foi juntar documentos e relatar as irregularidades do Projeto SAFO, deixando esses documentos guardados com amigos advogados, em seus escritórios. Eu alertei algumas pessoas que, se alguma coisa acontecer comigo, como um atropelamento acidental ou um latrocínio, esses documentos deverão vir a público. Quando concedi a entrevista ao El País, concordei em me identificar partindo do pressuposto que isso desestimularia uma ação contra mim. Mas, se por um lado minha identificação ao jornal pode desestimular alguns dos principais envolvidos no Projeto SAFO, por outro lado, posso ser vítima da ação dos mais radicais, eleitores incondicionais do Bolsonaro-Mourão, que ficaram bastante aborrecidos com a minha revelação, e dos quais sofri injúrias pela internet.
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