terça-feira, 13 de novembro de 2018

Disputa territorial e crescimento da cidade pressionam índios guarani que vivem em SP

13 DE NOVEMBRO DE 2018, 15H30

Disputa territorial e crescimento da cidade pressionam índios guarani que vivem em SP

Para os indígenas, o lugar em que se vive está conectado com suas culturas. Cada uma das etnias tem um modo próprio de ocupar um território. No caso dos mbya, a área em que originariamente viviam em São Paulo tem como referência o Pico do Jaraguá, o ponto mais alto da cidade.
  
Por Vanessa de Sá*
“Ampla área verde cercada de Mata Atlântica. Trinta e seis mil metros quadrados, incluídos bosque, campo de futebol, piscina, rancho para festas com churrasqueira e estacionamento. Uma promessa de lazer e tranquilidade a apenas 20 km do centro de São Paulo. Ali é possível se hospedar em um dos quatro quartos, realizar casamentos ou promover eventos para duas mil pessoas.” Esse é o anúncio da Sítio da Glória na internet.
A propaganda, também feita no Facebook, garante aos interessados que o aluguel é ótimo negócio diante dos preços astronômicos cobrados por buffets para realização de cerimônias e celebrações. Embora fique em área de proteção ambiental (Zepam), o som dos pássaros foi silenciado por música eletrônica em altos decibéis em pelo menos duas ocasiões, quando a chácara sediou raves. O sítio é uma muitas propriedades próximas às aldeias indígenas dos guarani mbya localizadas no Pico do Jaraguá, na região noroeste da capital paulista.
Proprietário da chácara, Mauro Biondi é um dos 15 donos de áreas que deverão ser reconhecidas como terra indígena guarani. Assim que a demarcação for consolidada, ele terá de entregar seu sítio à União. Na pior das hipóteses, será indenizado pelas construções erguidas ali, o que é mais comum nesses casos. Se houver negociação, é provável que ganhe da União um montante pela terra também.
Biondi afirma ser o líder de um grupo de proprietários que dizem possuir terras na região. Herdeiro do Glória, que lhe foi passado pelo pai e para o pai pelo avô, não se conforma com a possibilidade de, no futuro, ter de entregar o que hoje é para ele uma fonte de renda. “Os proprietários aqui têm áreas imensas – mais de 1 milhão de metros quadrados ao lado da Anhanguera, que a gente tenta proteger. Tem uma área em que os índios ainda estão, mas vão ser expulsos rapidinho. Se não for pelo bem, vão sair pelo mal, porque não é direito deles. É invasão. Vagabundo tem em qualquer lugar, assim como partidos políticos para protegê-los. Nós queremos fazer daqui uma Dubai de São Paulo e não podemos porque tem meia dúzia de índio com 500 políticos atrás. Nós não temos que ter índios aqui.”
“Nos Estados Unidos, acabaram com os índios e se tornou uma Las Vegas, né? Aqui, os índios querem tomar conta do que não é deles”
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Há anos, muitos desses donos de terra alegam ter perdido seus bens para os guarani. Afirmam que a presença indígena na região é recente e que suas propriedades foram invadidas. Três deles contestam a presença dos índios na justiça. “Eles chegaram na nossa região há 40 anos. Nós estamos aqui há 100. Minha casa de campo tem piscina e tal. É minha, não é para índio morar”, reclama Biondi.
As argumentações dos proprietários são contestadas pela geógrafa Camila Sales. Ela verificou a história da transmissão de titularidade de terrenos que são objetos de ações, entre eles a do ex-prefeito de São Bernardo Antonio Tito Costa. Ao remontar a história de alguns desses títulos, não se consegue demonstrar com clareza a cadeia de aquisição da terra. “O título original de algumas delas não sai de lugar nenhum, sai da vontade do dono do cartório. Algumas sequer têm matrículas”, relata.
Enquanto as decisões judiciais não saem – tanto as referentes à questão das propriedades privadas quanto à demarcação das terras indígenas -, os donos de terra no Jaraguá contabilizam a valorização de terrenos e imóveis na região. Dados do Secovi-SP (Sindicato da Habitação de São Paulo) mostram que o número de unidades residenciais lançadas ali quase quadruplicou de 2016 para 2017 – o salto foi de 273 para 1020. Segundo a gerente de incorporação de uma construtora que não quis se identificar, a alteração do zoneamento facilitou a implantação de empreendimentos populares, permitindo principalmente a construção de apartamentos sem vaga de garagem e isentando-os de variadas taxas.
Ainda segundo o Secovi-SP, em 2017 o valor do metro quadrado girava em torno de R$ 4 mil. Com o preço dos imóveis em um bom patamar e o crescente número de projetos imobiliários no bairro, Biondi afrouxa o apego à propriedade e afirma que venderia rapidamente a chácara a quem pagasse o que ele pede. “Nossa área está em uma região muito próspera e a gente mantém isso aqui como um ecossistema. Agora, se você vier me propor uma coisa interessante, nós estamos aceitando proposta desse gênero. Eu estou vendendo aqui por R$ 10 milhões. Se a Funai vier aqui e pagar R$10 milhões, é terra indígena. Ela tem muito dinheiro, é federal. Vai lá e compra o Pico do Jaraguá.”
Há uma pedra no caminho natural desse crescimento, confessa Celso Petrucci, economista-chefe do sindicato: as terras indígenas. “Eu não acho que a questão da existência de favelas lá no bairro seja crucial para impedir o desenvolvimento no Jaraguá, porque se a gente for se preocupar em construir em São Paulo onde não tem favela, nós vamos deixar uma grande parte do mercado imobiliário de fora. Agora, a questão indígena pode influenciar negativamente no desenvolvimento de novos projetos”.  Petrucci conta que a falta de terrenos deverá ser mais e mais um problema nos próximos anos, mas que isso não deverá deter o avanço das construtoras. “A gente não pode esquecer que nós temos mais de 11 milhões de habitantes. É uma terra escassa, sim, mas não é por causa disso que vai deixar de ser feito empreendimento lá no Jaraguá.”
Um dos mais conhecidos líderes indígenas guarani, o professor David Karai Popygua denuncia que, diferentemente de outras terras indígenas do país, que sofrem com o lobby da bancada ruralista, a demarcação das terras guarani na cidade de São Paulo tem a influência de parlamentares aliados a interesses do setor imobiliário. “Em São Paulo é uma coisa mais local. Empresas e corporações ligadas a transportadoras querem esse território para a construção de negócios no complexo viário da Anhanguera.”
Índio só lamenta e não à toa
Barraco de madeira, no meio da cidade
Na selva de pedra, onde impera a maldade
Aqui é sem massagem, aqui é papo reto
A lei é eles quem faz; olhar para nós, jamais
Nós só queremos paz a um pedacinho de terra
Para nós tá bom demais
(Oz Guarani, grupo de rap guarani mbya)
Construção do Rodoanel inicia destruição do território
O espaço que pertence aos guarani não é e nunca foi só na floresta, como chegou a aventar em 2015 Katia Abreu, então ministra da Agricultura do governo Dilma Rousseff. Assim como ela, há a uma ideia generalizada de que o índio está ligado exclusivamente à mata fechada.
Para os indígenas, o lugar em que se vive está conectado com suas culturas. Cada uma das etnias tem um modo próprio de ocupar um território. No caso dos mbya, a área em que originariamente viviam em São Paulo tem como referência o Pico do Jaraguá, o ponto mais alto de São Paulo.
A urbanização da cidade avançou a passos largos em direção às aldeias, ou tekoas, em guarani mbya. “Nem é preciso voltar muito no tempo. No século 18, havia ali um grande aldeamento”, destaca Deborah Stucchi, antropóloga do Ministério Público Federal (MPF). Em 2013, quando publicou o estudo que resultou na ampliação da terra indígena de 1,7 hectare para os atuais 532 hectares, a Funai publicou em seu site que a “documentação histórica indica que a TI Jaraguá é formada por terras vinculadas ao antigo aldeamento de Barueri”. Era assim que eram chamados os locais onde os indígenas eram reunidos com a missão de catequizá-los e instruí-los.
Para o indigenista Daniel Pierri, do Centro de Estudos Ameríndios, o primeiro grande marco de destruição do território mbya foi a construção da Rodovia dos Bandeirantes, em 1978. “Nos anos 50, havia uma aldeia que ficava do outro lado da rodovia, que naquela época não passava de uma estradinha de terra. Com a construção, realizada sem consulta prévia,  sem consideração aos direitos dos guarani, essa área virou um bairro popular”, conta. A antropóloga do MPF esclarece que a Bandeirantes retalhou a área em que ficava a aldeia. “E essa população continua lá. É por que é confortável? Não. É por razões ancestrais”, diz.
O crescimento acelerado do tecido urbano, estimulado pela construção da rodovia – parte dele feito fora da lei -,  sufocou o povo guarani, fazendo com que ele entrasse em contato com realidades às quais não estava acostumado. A violência das favelas do entorno é uma delas. “Antigamente, não tinha tanta influência da cultura dos brancos, que cada vez mais nos oprime”, reclama o pajé José Fernandes Karay Poty, uma das maiores lideranças espirituais dos guarani do sudeste e do sul.
A geógrafa Camila Salles de Farias, estudiosa da questão fundiária que envolve os guarani do Jaraguá, salienta que é difícil para o indígena morar na periferia. “A violência cada vez mais vai para dentro da aldeia porque eles não estão mais isolados”, diz. O jovem guarani Anthony Karai Poty confessa temer pela segurança das adolescentes da aldeia. “Eu mesmo passei a acompanhá-las à noite quando saem para estudar. É extremamente perigoso para elas saírem sozinhas, mesmo que seja para atravessar a rua em frente à aldeia. Muitas pessoas passam na rua e acham que elas estão se prostituindo.”
Marcha para o Oeste
A inauguração do trecho oeste do Rodoanel, em 2002, trouxe uma nova onda de expansão na região. Áreas até poucas décadas consideradas rurais em bairros como Perus e Jaraguá passaram a ser vistas por empresários como estratégicas para a construção de novos empreendimentos. “Trata-se claramente de uma frente de expansão do mercado imobiliário. Há um movimento significativo, catapultado pela obra do Rodoanel, especialmente na intersecção entre o anel viário, a Anhanguera e a Bandeirantes”, afirma a urbanista Raquel Rolnik, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da USP. Segundo ela, essa área integra uma frente de expansão de galpões logísticos financiados por capital estrangeiro.
Ex-secretário municipal de Habitação, João Sette Whitaker conta que o Rodoanel reintensificou o interesse econômico, fundiário e imobiliário na região. “Quando você investe milhões em uma obra dessas, gera uma expectativa de especulação do que vai acontecer com o território daquela região. Colocou em polvorosa setores ligados à logística e ao transporte, que passaram a se interessar pelos arredores do anel viário para possíveis investimentos”, afirma o pesquisador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAU. Hoje, por exemplo, há diversas transportadoras coladas à aldeia Itakupé, ao ponto de se ter de passar em  meio ao vai-vem de caminhões para chegar à terra indígena.
David Karai Popygua (Foto: Toni Reis)
A valorização das áreas próximas à obra veio acompanhada do proliferar de favelas no entorno do Rodoanel e do Parque Estadual do Jaraguá. Mas não só. Assim como acontece em outros bolsões urbanos periféricos, multiplicou loteamentos e conjuntos habitacionais  populares, muitos deles ainda irregulares, realidade apontada pela geógrafa Camila Sales Faria. Para Rolnik, a dinâmica é a mesma observada em outras franjas periféricas da metrópole. “Elas sofrem a pressão da ocupação do mercado informal de moradia, que não encontra lugar para se instalar. Uma das formas de conseguir isso é por meio de loteamentos e ocupações irregulares.”
A marcha para a região oeste da capital é irrefreável, de acordo com o pesquisador João Whitacker. “Na região sul, você tem todas as represas, que são áreas de proteção de mananciais. Na região norte, a  Serra da Cantareira. Na leste, o crescimento de certa maneira saturou porque houve conurbação com cidades da região metropolitana. A região de expansão que ainda tem perspectiva de adensamento que não seja em cima da água ou em cima da serra é a região oeste. A terra indígena está bem ali. Está numa das poucas regiões que a cidade ainda tem condições de se expandir”.
Moradores e comerciantes do entorno do Parque já se deram conta disso. “O Jaraguá é visado. Falam que é considerado bairro nobre. Depois de Pirituba, eles vão invadindo para cá. Onde tiver espaço, eles compram e loteiam. Creio que se os índios saírem, a primeira ideia é essa: condomínio”, fala Leonei Silva, dono de uma loja de tintas a poucos metros da aldeia guarani.  Testemunha do crescimento da cidade em direção à terra indígena, ele admite: “O homem é assim: se puder espremer, espremer, a ponto de expurgar eles daí, esse é o sentido. Tira daqui, joga para lá, vai manobrando por causa dos interesses comerciais.”
A cacica Geni Pary Yra lembra que o acirramento da disputa pelas terras fere os direitos da comunidade. “A gente sofre mais ameaças dos que se dizem donos. Quanto mais demora a solução do conflito, mais ações eles movem contra a aldeia. Dizem que a gente invadiu, que vão tirar a gente, que não temos direito nenhum. Já enfrentamos duas vezes reintegração de posse e tivemos que deixar o nosso espaço. Voltamos na virada de 2013 para 2014”.
A propriedade privada, diz Maria Inês Ladeira, antropóloga e fundadora do Centro de Trabalho Indigenista, é considerada um direito sagrado no Brasil. “A história do colonizador é a do proprietário. Os índios ‘não cabem’. Se imaginava que a essa altura da história, os índios teriam ficado no passado, teriam sido todos dizimados. E para os proprietários eles estão ali, incomodando.”
David Karai Popygua acredita que o não índio considera os guarani um impedimento ao progresso da cidade. E sempre que possível se contrapõe à visão não mercantilista indígena. Para o índio, a terra é sagrada, uma garantia de futuro para todos. “É rodovia, é privatização, é desmatamento, é turismo de luxo. A gente vê toda essa situação. A sociedade ainda não entendeu a importância que a terra tem para as futuras gerações. Essa ideia da terra como lugar a ser explorado para riqueza imediata é algo que a maioria das pessoas entende como importante. Nós, povos indígenas, somos vistos como entrave, como barreira para esse progresso”, desabafa.

(Foto: Toni Reis)
A jovem Tamikuã Txihi, outra liderança indígena atuante pela demarcação das terras, completa: “Sem esse território, como a gente vai ensinar para as nossas crianças a nossa cultura, o nosso modo de vida? O ensinamento não é pela escrita. É através dos contos,  de entrar na casa de reza, de mostrar o carinho que a gente tem com a mãe terra. Que é vida, não é uma coisa de comprar e vender.

Entenda a questão da demarcação da terra indígena Jaraguá

A terra indígena jaraguá sofreu um golpe duplo do poder público. Diante de uma Funai praticamente paralisada, a União anulou em 2017 o documento que levaria à homologação da ampliação da terra indígena dos atuais 1,7 hectare, onde os guarani vivem espremidos, para 532 hectares. O estudo que levou ao redimensionamento do território é resultado de mais de uma década de trabalho de um grupo de especialistas – entre geógrafos, arqueólogos e antropólogos. Através de registros orais e materiais, entre eles a presença de artefatos de cerâmica, os pesquisadores conseguiram resgatar a história de ocupação daquela etnia na região. Constataram que os guarani ocuparam no passado uma área cerca de 300 vezes maior.
Na mesma toada, o Governo do Estado contesta a ampliação da área por ela se sobrepor a mais da metade do Parque Estadual do Jaraguá. Atualmente, os indígenas vivem em clima de insegurança, pois a decisão de que mantêm o direito aos 532 hectares é em caráter provisório – uma liminar, que está sendo contestada pela administração estadual.
Sem terra, o guarani não existe enquanto povo. “O que mantém dignamente a nossa existência é a gente ter ainda um território para defender, porque o que é o índio sem a terra?  O índio, sem a natureza, não tem como ter felicidade. O que é o dia sem o canto dos pássaros, sem o som da chuva? Não faz sentido para a gente”, declara o professor David Karai Popygua, uma das maiores lideranças políticas guarani.

 * Esta reportagem foi produzida com apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos.

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