Médico cubano relata dia a dia no interior de SC
Yosmany Vera Pelaez estava irritado com Jair Bolsonaro. O médico cubano vive há quase dois anos na cidade catarinense de Itaiópolis, de 21 mil habitantes, numa rotina intensa de trabalho — várias vezes, conta ele, não era ainda nem o horário do almoço e já tinha atendido mais de 20 pessoas.
E, na sexta-feira (16), declarações do presidente eleito tinham acabado de chegar a seus ouvidos: Bolsonaro dizia que ninguém gostaria de ser atendido por um médico cubano; ele nem tinha certeza, aliás, de que eles eram mesmo médicos.
“Vai ser difícil para quem ficar aqui. Estão desacreditando nossa medicina, nosso conhecimento”, disse Yosmany.
Na quarta-feira (14) Cuba anunciou que os mais de 8.000 médicos cubanos que atuam no Brasil por meio do programa Mais Médicos terão de ir embora. No município onde Pelaez atende, os eleitores deram 77% dos votos a Bolsonaro no segundo turno.
O rompimento foi uma reação a declarações do presidente eleito contra Cuba e seus médicos. Já Bolsonaro disse que foi Cuba que não aceitou as condições que ele impôs para a continuidade da adesão dos cubanos ao Mais Médicos — como que eles se submetam a uma prova para revalidação dos diplomas médicos
E, ainda na quarta, Bolsonaro deu novas declarações fortes contra a presença dos médicos cubanos no Brasil. “Eu duvido quem queira ser atendido pelos cubanos, pois não temos qualquer comprovação [que sejam médicos]”, disse.
“Eu jamais faria acordo com Cuba nesses termos [atuais]. Isso é trabalho escravo, não é nem análogo à escravidão, é trabalho escravo”, disse Bolsonaro.
Yosmany, que já esteve na Venezuela também num programa de cooperação no setor da saúde, disse que em lugar nenhum do mundo os cubanos tiveram sua formação profissional questionada como aconteceu no Brasil.
“Onde eu atendo, há pessoas que deveriam ir a outro posto de saúde, mas vão no meu. Alguns reclamam que os médicos que os atendem não os olham direito, não examinam bem, só querem prescrever um remédio e mandar embora, reclamam da falta de humanidade”, disse.
“Por mim eu fazia essa prova [de revalidação do diploma]. Mas não para ficar no Brasil, somente para mostrar que somos médicos mesmo”, completou.
A passagem de Yosmany no Brasil, que deve se encerrar nos próximos dias, teve início no dia 7 de janeiro de 2017.
Yosmany desembarcou em Brasília num dia tranquilo — não viu nenhum daqueles protestos de médicos brasileiros que fizeram recepções nada amigáveis para as primeiras levas de cubanos que chegaram ao país.
“Quando cheguei não teve nada de anormal. Desembarquei em Brasília e depois fui para Santa Catarina para começar a trabalhar”, disse.
Encaminhado para o município de Itaiópolis, Yosmany foi substituir uma colega, também cubana, num dos postos de saúde do local.
“Eu não tive esse tipo de problema de protesto [ou dificuldade] para ser aceito na cidade. A colega que estava antes de mim fez trabalho muito bom e era querida pela população, tive uma aceitação boa”, disse.
Segundo ele, logo no início do trabalho percebeu que a demanda por saúde era grande. “Não é como acontece no Nordeste, onde há problemas de doenças tropicais, dengue, chikungunya… Aqui tem muita criança que aparece com gripe, doenças respiratórias, e pessoas mais velhas com diabetes, hipertensão. Nesse período aqui atendi muita gente, às vezes eram 20 numa única manhã.”
Ainda sem saber direito como será sua volta para Cuba e o destino do programa Mais Médicos, o cubano disse que seu jeito de praticar a medicina acabou por fazê-lo se incorporar à rotina do pequeno município.
“Há coisas que os médicos brasileiros não costumam fazer, microcirurgias, pessoas que chegam com a unha encravada, eu resolvia tudo ali. Também ia à casa de pessoas acamadas que me ligavam, ia verificar casos de crianças com suspeita de serem vítimas de violência. Tudo isso foi me fazendo conhecer as pessoas daqui.”
O médico cubano se gaba de uma nova habilidade que ganhou na convivência com os moradores do local: “Aprendi a dirigir trator aqui”.
O cubano também falou sobre a retenção de aproximadamente 70% de seu salário pelo governo castrista da ilha.
“Não sou comunista, não sou socialista, sou um cubano e quero falar isso de forma neutra. Acho que o governo pega muito do salário. Mas, não sei se é por causa da formação que recebemos desde criança, doutrinariamente, mas acho bom a gente colaborar um pouco com a economia do nosso país.”
Segundo ele, o capitalismo é o sistema em que é possível realizar sonhos, mas “o preço a se pagar é alto demais”.
“O pessoal aqui está cego com o dinheiro. Nunca é suficiente o tanto que conseguem.”
Questionado sobre declarações de Bolsonaro, de que os médicos cubanos estão trabalhando em regime de escravidão, Yosmany falou o seguinte:
“Não acho que seja assim, escravidão. Nós assinamos um contrato, se colocamos a faca em nosso pescoço, fomos nós”, disse antes de soltar uma risada.
Yosmany negou qualquer chance de ficar no Brasil — Bolsonaro prometeu dar asilo político a quem quiser continuar no país.
“Eu tenho duas filhas, nem com a possibilidade de trazer minha mulher eu fico aqui, pois eu gosto de Cuba. A relação que temos lá com nossos vizinhos, nossa família, não temos por aqui”, disse Yosmany.
Ele conta que alguns de seus amigos que vieram da ilha para trabalhar no Mais Médicos, por sua vez, ainda tentam viabilizar maneiras de permanecer no Brasil.
“Tenho muito amigo cubano que fala que vai ficar. Segue sendo meu amigo, mas não acho legal ficar em um país sozinho com essa palavra que falou o Bolsonaro, que não somos médicos”, disse.
O médico acredita que o governo cubano proíbe que médicos do país façam o exame de revalidação do diploma justamente para evitar que tentem ficar no Brasil.
“Cuba não permite que se faça o Revalida pois não querem que ninguém fique Brasil. Se não permite fazer o Revalida, o médico tem que obrigatoriamente voltar para o país”.
Na conversa, o médico ainda comparou Bolsonaro ao presidente do EUA, Donald Trump, e disse que sua eleição foi o “pior erro na história do Brasil”.
“Vamos continuar em outros países, estamos em todos os países do mundo, trabalhamos há muito tempo em outros países e nunca fizeram uma sacanagem como essa que o Bolsonaro fez conosco, desacreditando a própria medicina. Isso está errado do ponto de vista diplomático, do ponto de vista político. Ele não sabe o que é diplomacia.”
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