De: Liane Maria Faccio
O jornal Zero Hora me mandou registrar uma das facetas da economia cubana em 1992 e, finda uma semana de trabalho em Havana e arredores, eu retornava para o Brasil em um voo tão estranho que não foi possível aconchegar a cabeça na poltrona e descansar. Adultos trocavam de lugar como se fossem adolescentes, adolescentes choravam como se fossem crianças, crianças se abraçavam como se fossem adultos, e eu, então repórter de ZH, fui ver do que se tratava. Eram 50 vítimas do acidente nuclear com Césio 137, 50 pacientes que, pela primeira vez após cinco anos desde a contaminação, faziam exames capazes de indicar qual o melhor tratamento para combater os efeitos da radiação.
No Brasil, que sob a mordaça da ditadura não havia desenvolvido pesquisas adequadas na área daquele tipo de contaminação, aquelas pessoas só conseguiriam fazer os exames indicados para seu caso se fossem ricas. Mas a cápsula maldita com material radiativo se rompeu na periferia de Goiânia, e lá só havia gente pobre. Então, por cinco anos, elas foram marginalizadas, até que o governo de Goiás, após tentar remédio no Rio de Janeiro, encontrou a solução na Ilha de Fidel: bastava levar e trazer os pacientes que os exames, medicamentos, alimentação e hospedagens lá, então o maior centro especializado em radiação nuclear na América Latina, sairiam de graça.
Íris Rezende não era, nem é, comunista: foi eleito governador de Goiás pelo PMDB. Itamar Franco, que assumia a presidência no lugar do titular, afastado por gastar dinheiro público em reformas nababescas da "casa da dinda", não era comunista: também era do PMDB. Para Donizeth Rodrigues de Oliveira, uma das vítimas do Césio com quem conversei naquela viagem insone, isso não importava. "Não teríamos condições de pagar os testes nem em 20 anos de trabalho", disse.
As crianças que entrevistei naquele avião cubano nem faziam ideia do que era comunismo, mas já sabiam o que era preconceito. Desde o acidente, contou-me a mãe de uma delas, elas perderam amizades e sofriam com um quase que isolamento; lá, foram tratadas 45 dias com abraços e beijos.
Nesta semana, retrocedemos a uma época anterior àquele ano de 1992, por um ideologismo estúpido, um desrespeito inacreditável, uma ignorância inadmissível para o século 21. Mas nós não sofreremos tanto quanto os pacientes dos milhares de médicos que foram embora. Cabe ao Ministério Público Federal garantir - e mostrar - que amanhã mesmo haja médicos substituindo cada um dos que ontem anunciaram que vão embora. E cabe ao MPF, também, e aos MPs estaduais, comparar o quanto vai custar a mais a substituição dos profissionais de saúde que aqui estavam por médicos brasileiros, que ao que parece não queriam ir atender em locais tão distantes, tão inóspitos, tão sem coluna social. E a cada um de nós cabe cobrar a conta da diferença do gasto com o projeto anterior e com o que vem por aí. Sobre o que vem por aí, aliás, também podemos rezar.
(Liane Maria Faccio)
Fonte: 3Setor
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