Política
O sono da razão
No Brasil do governo Bolsonaro, o futuro tem nostalgia do passado, do obscurantismo pré-moderno que existiu no passado antes da revolução científica
12/01/2019 17:06
Créditos da foto: (Reprodução)
O sono da razão produz monstros (Goya)
A quadrilha de ministros mega corruptos do governo Temer cedeu lugar a um bando de doidos de extrema direita, com mentalidade pré-moderna e anti-científica. São fundamentalistas que preferem a crença à razão. Mas não se trata de um hospício com doidos do tipo maluco beleza. Sabem o que fazem e a quem vão servir.
Há, portanto, um método nessa loucura, como dizia o personagem Polonius a respeito de Hamlet, na famosa peça de Shakespeare. Antes, porém, de examinar os beneficiários do novo governo, vale a pena repassar as demonstrações de loucura já alardeadas para todo o país.
A começar pelo deputado que defendeu em sua carreira política teses fascistas e foi eleito presidente após uma enxurrada de fake news como, por exemplo, o kit gay. Apoiou a tortura, elegeu como herói um dos torturadores e assassinos mais sanguinários da ditadura, o coronel Brilhante Ustra. Propôs a guerra civil para resolver o problema do Brasil, quer porte de arma para todo mundo, discrimina gays, negros, índios e mulheres. Sobre as mulheres, disse barbaridades. Teve três filhos homens. No quarto filho, "fraquejou" e veio mulher. Estupro? Só se a mulher não for feia. Feia não merece. Foi expulso do Exército, por "indisciplina" e, segundo consta, por problemas "psico-emocionais". Em gesto simbólico, bateu continência para a bandeira dos EUA.
Seus ministros não ficam muito atrás. Vou citar apenas os casos mais extravagantes. O ministro de Relações Exteriores nega a ciência, ignora todos os cientistas do mundo e diz que o aquecimento global e as mudanças climáticas são coisas do "marxismo cultural". O ministro da Educação propõe uma Escola totalitária, de ideologia única, batizada espertamente de escola sem partido. Em vez de reflexão e diversidade, o dogma sectário.
A ministra de Direitos Humanos é pastora evangélica e disse que é hora de a Igreja governar o país. A Constituição Brasileira consagrou a visão moderna de separar a Igreja do Estado que legalmente deve ser laico, mas a ministra acha que sua Igreja é a dona da verdade. É bom não esquecer que ela disse que viu Jesus subindo numa goiabeira e impediu, temendo que ele caísse e se machucasse.
Além desses casos irracionais, outros ministros nos brindam com decisões estapafúrdias. A futura ministra da Agricultura anunciou sua decisão de acabar com a inspeção diária em frigoríficos do país. Ela propõe que cada produtor auto inspecione a sua unidade. Provavelmente, os exportadores de carne vão reclamar, pois vão perder clientes no exterior, desconfiados da qualidade da carne. Nessas circunstâncias, o risco de carne estragada existe, mas seria muito maior no mercado interno.
Segundo a imprensa, o Ministério da Cidadania vai cuidar de bolsa família, políticas de combate à pobreza, esporte, cultura, política anti drogas, desenvolvimento social, direitos humanos e parte do espólio do Ministério do Trabalho. Não é difícil imaginar o caos que resultará dessa salada mista.
O ministro do Meio Ambiente é réu na Justiça de São Paulo por falsificação de licenças e adulteração de mapas, tudo para agradar as empresas poluidoras. O novo presidente do IBAMA já anunciou que deseja implantar licenciamento ambiental automático. Ele
defende que produtores rurais emitam sua própria licença por meio de um sistema eletrônico. Ou seja, violando todos os princípios do Direito Ambiental, ele vai acabar com o licenciamento ambiental.
Como se vê, a cada dia fica mais claro o "método na loucura". Bolsonaro quer perdoar dívida de R$ 17 bilhões do agronegócio. "Em resposta ao apoio de um dos setores que o elegeu, o presidente recém-eleito Jair Bolsonaro deverá perdoar dívida de R$ 17 bilhões do FunRural (Fundo de Assistência ao Trabahador Rural)", conforme matéria publicada no jornal Valor na sexta-feira 21/12/2018.
A morte anunciada do Brasil enquanto país autônomo tem na venda da Embraer um dos seus símbolos mais fortes. Além do desbaratamento da indústria de auto peças que abastecia a Embraer, toda a indústria nacional sofre um rude golpe. Investimentos públicos, como financiamento do BNDES, por exemplo, geraram produção e tecnologia nacional na fabricação de aviões de pequeno porte, exportado para muitos países. Já há quem preveja que, daqui a alguns anos, a Boeing vai fechar a fábrica no Brasil para abrir outra na Ásia, onde a mão de obra é mais barata.
Em brilhante demonstração de ignorância e mediocridade, o novo presidente rejeitou o Brasil ser a sede da Conferência Internacional do Clima, a COP-25, em 2019. O Brasil vai perder mais ainda o resquício do protagonismo internacional que teve no governo Lula e que perdeu rapidamente no governo Temer.
O Chile, que tem um governo de direita mas não é idiota, aceitou sediar a COP-25. Isso é uma honraria que fortalece o país na comunidade internacional, além de trazer benefícios para o turismo, comércio etc. O Chile tem uma área de 756.626 km2, menor do que cada um dos estados de Amazonas, Pará ou Mato Grosso, e pouco maior do que Minas Gerais. A população do Chile é de 17 milhões, aproximadamente. Menos do que o Estado de São Paulo ou Minas Gerais e equivalente à população do Estado do Rio de Janeiro .
O Brasil sediou a primeira Conferência da ONU de Meio Ambiente e Desenvolvimento, a chamada Rio-92. Pela extensão de seu território e população, pelas extraordinárias riquezas naturais - ameaçadas pela cobiça predatória de um capitalismo míope e selvagem - pela grande diversidade de seu patrimônio biológico (fauna e flora), o Brasil poderia ter uma liderança mundial em matéria de desenvolvimento sustentável.
Em vez disso, caminha visivelmente para se candidatar a ser a província predileta dos EUA, que sempre esnobaram a América Latina, e cujo presidente já começou a descer a ladeira. Com a ideologia pré-moderna e anti-científica do deputado eleito Presidente do Brasil e com a visão medieval de seu Ministro de Relações Exteriores, o Brasil vai desaparecer do cenário internacional, a não ser como objeto de chacota e desprezo de todo o mundo.
Enquanto isso, a extrema pobreza voltou aos níveis de 12 anos atrás. Para o economista Francisco Menezes, os números de pobreza sugerem que o Brasil voltará ao Mapa da Fome da ONU (El País, 14/7/2018). No mesmo sentido, o Relatório de 2018 da OXFAM, denominado "País Estagnado - Retrato das Desigualdades Brasileiras", afirma que
"O Brasil, pela primeira vez durante anos, vê sua distribuição de renda estacionar. A pobreza no país recrudesceu e teve fim a dinâmica de convergência entre a renda de mulheres e homens – o primeiro recuo em 23 anos. Também recuou a equiparação de renda entre negros e brancos até chegar à estagnação, que completa atualmente sete anos seguidos. São retrocessos inaceitáveis, especialmente em um país onde a maioria populacional é de mulheres e negros."
O retrocesso assustador que ameaça o Brasil nos faz pensar sobre o papel do tempo na política. O filósofo francês Henri Bergson disse certa vez que o presente é o passado projetando-se no futuro. Mas o fantasma da regressão que assombra o Brasil nos leva à tentação de inverter os termos da equação: o presente é o futuro projetando-se no passado.
Na avaliação de Enzo Traverso (Melancolia de Esquerda - Marxismo, História e Memória), "a obsessão pelo passado que vem moldando nosso tempo resulta do eclipse das utopias: é inevitável que um mundo sem utopias acabe olhando para trás".
No Brasil do governo Bolsonaro, o futuro tem nostalgia do passado, do obscurantismo pré-moderno que existiu no passado antes da revolução científica. Mas se o sono da razão dirige os olhos ao passado, estão despertos no presente os generais encastelados no poder e o ministro Sergio Moro, condutor do aparelho institucional do Estado de Exceção, ambos a serviço da lógica privatista, improdutiva e entreguista do capitalismo financeiro, o verdadeiro senhor e mestre do novo governo.
Liszt Vieira é professor da PUC-Rio
A quadrilha de ministros mega corruptos do governo Temer cedeu lugar a um bando de doidos de extrema direita, com mentalidade pré-moderna e anti-científica. São fundamentalistas que preferem a crença à razão. Mas não se trata de um hospício com doidos do tipo maluco beleza. Sabem o que fazem e a quem vão servir.
Há, portanto, um método nessa loucura, como dizia o personagem Polonius a respeito de Hamlet, na famosa peça de Shakespeare. Antes, porém, de examinar os beneficiários do novo governo, vale a pena repassar as demonstrações de loucura já alardeadas para todo o país.
A começar pelo deputado que defendeu em sua carreira política teses fascistas e foi eleito presidente após uma enxurrada de fake news como, por exemplo, o kit gay. Apoiou a tortura, elegeu como herói um dos torturadores e assassinos mais sanguinários da ditadura, o coronel Brilhante Ustra. Propôs a guerra civil para resolver o problema do Brasil, quer porte de arma para todo mundo, discrimina gays, negros, índios e mulheres. Sobre as mulheres, disse barbaridades. Teve três filhos homens. No quarto filho, "fraquejou" e veio mulher. Estupro? Só se a mulher não for feia. Feia não merece. Foi expulso do Exército, por "indisciplina" e, segundo consta, por problemas "psico-emocionais". Em gesto simbólico, bateu continência para a bandeira dos EUA.
Seus ministros não ficam muito atrás. Vou citar apenas os casos mais extravagantes. O ministro de Relações Exteriores nega a ciência, ignora todos os cientistas do mundo e diz que o aquecimento global e as mudanças climáticas são coisas do "marxismo cultural". O ministro da Educação propõe uma Escola totalitária, de ideologia única, batizada espertamente de escola sem partido. Em vez de reflexão e diversidade, o dogma sectário.
A ministra de Direitos Humanos é pastora evangélica e disse que é hora de a Igreja governar o país. A Constituição Brasileira consagrou a visão moderna de separar a Igreja do Estado que legalmente deve ser laico, mas a ministra acha que sua Igreja é a dona da verdade. É bom não esquecer que ela disse que viu Jesus subindo numa goiabeira e impediu, temendo que ele caísse e se machucasse.
Além desses casos irracionais, outros ministros nos brindam com decisões estapafúrdias. A futura ministra da Agricultura anunciou sua decisão de acabar com a inspeção diária em frigoríficos do país. Ela propõe que cada produtor auto inspecione a sua unidade. Provavelmente, os exportadores de carne vão reclamar, pois vão perder clientes no exterior, desconfiados da qualidade da carne. Nessas circunstâncias, o risco de carne estragada existe, mas seria muito maior no mercado interno.
Segundo a imprensa, o Ministério da Cidadania vai cuidar de bolsa família, políticas de combate à pobreza, esporte, cultura, política anti drogas, desenvolvimento social, direitos humanos e parte do espólio do Ministério do Trabalho. Não é difícil imaginar o caos que resultará dessa salada mista.
O ministro do Meio Ambiente é réu na Justiça de São Paulo por falsificação de licenças e adulteração de mapas, tudo para agradar as empresas poluidoras. O novo presidente do IBAMA já anunciou que deseja implantar licenciamento ambiental automático. Ele
defende que produtores rurais emitam sua própria licença por meio de um sistema eletrônico. Ou seja, violando todos os princípios do Direito Ambiental, ele vai acabar com o licenciamento ambiental.
Como se vê, a cada dia fica mais claro o "método na loucura". Bolsonaro quer perdoar dívida de R$ 17 bilhões do agronegócio. "Em resposta ao apoio de um dos setores que o elegeu, o presidente recém-eleito Jair Bolsonaro deverá perdoar dívida de R$ 17 bilhões do FunRural (Fundo de Assistência ao Trabahador Rural)", conforme matéria publicada no jornal Valor na sexta-feira 21/12/2018.
A morte anunciada do Brasil enquanto país autônomo tem na venda da Embraer um dos seus símbolos mais fortes. Além do desbaratamento da indústria de auto peças que abastecia a Embraer, toda a indústria nacional sofre um rude golpe. Investimentos públicos, como financiamento do BNDES, por exemplo, geraram produção e tecnologia nacional na fabricação de aviões de pequeno porte, exportado para muitos países. Já há quem preveja que, daqui a alguns anos, a Boeing vai fechar a fábrica no Brasil para abrir outra na Ásia, onde a mão de obra é mais barata.
Em brilhante demonstração de ignorância e mediocridade, o novo presidente rejeitou o Brasil ser a sede da Conferência Internacional do Clima, a COP-25, em 2019. O Brasil vai perder mais ainda o resquício do protagonismo internacional que teve no governo Lula e que perdeu rapidamente no governo Temer.
O Chile, que tem um governo de direita mas não é idiota, aceitou sediar a COP-25. Isso é uma honraria que fortalece o país na comunidade internacional, além de trazer benefícios para o turismo, comércio etc. O Chile tem uma área de 756.626 km2, menor do que cada um dos estados de Amazonas, Pará ou Mato Grosso, e pouco maior do que Minas Gerais. A população do Chile é de 17 milhões, aproximadamente. Menos do que o Estado de São Paulo ou Minas Gerais e equivalente à população do Estado do Rio de Janeiro .
O Brasil sediou a primeira Conferência da ONU de Meio Ambiente e Desenvolvimento, a chamada Rio-92. Pela extensão de seu território e população, pelas extraordinárias riquezas naturais - ameaçadas pela cobiça predatória de um capitalismo míope e selvagem - pela grande diversidade de seu patrimônio biológico (fauna e flora), o Brasil poderia ter uma liderança mundial em matéria de desenvolvimento sustentável.
Em vez disso, caminha visivelmente para se candidatar a ser a província predileta dos EUA, que sempre esnobaram a América Latina, e cujo presidente já começou a descer a ladeira. Com a ideologia pré-moderna e anti-científica do deputado eleito Presidente do Brasil e com a visão medieval de seu Ministro de Relações Exteriores, o Brasil vai desaparecer do cenário internacional, a não ser como objeto de chacota e desprezo de todo o mundo.
Enquanto isso, a extrema pobreza voltou aos níveis de 12 anos atrás. Para o economista Francisco Menezes, os números de pobreza sugerem que o Brasil voltará ao Mapa da Fome da ONU (El País, 14/7/2018). No mesmo sentido, o Relatório de 2018 da OXFAM, denominado "País Estagnado - Retrato das Desigualdades Brasileiras", afirma que
"O Brasil, pela primeira vez durante anos, vê sua distribuição de renda estacionar. A pobreza no país recrudesceu e teve fim a dinâmica de convergência entre a renda de mulheres e homens – o primeiro recuo em 23 anos. Também recuou a equiparação de renda entre negros e brancos até chegar à estagnação, que completa atualmente sete anos seguidos. São retrocessos inaceitáveis, especialmente em um país onde a maioria populacional é de mulheres e negros."
O retrocesso assustador que ameaça o Brasil nos faz pensar sobre o papel do tempo na política. O filósofo francês Henri Bergson disse certa vez que o presente é o passado projetando-se no futuro. Mas o fantasma da regressão que assombra o Brasil nos leva à tentação de inverter os termos da equação: o presente é o futuro projetando-se no passado.
Na avaliação de Enzo Traverso (Melancolia de Esquerda - Marxismo, História e Memória), "a obsessão pelo passado que vem moldando nosso tempo resulta do eclipse das utopias: é inevitável que um mundo sem utopias acabe olhando para trás".
No Brasil do governo Bolsonaro, o futuro tem nostalgia do passado, do obscurantismo pré-moderno que existiu no passado antes da revolução científica. Mas se o sono da razão dirige os olhos ao passado, estão despertos no presente os generais encastelados no poder e o ministro Sergio Moro, condutor do aparelho institucional do Estado de Exceção, ambos a serviço da lógica privatista, improdutiva e entreguista do capitalismo financeiro, o verdadeiro senhor e mestre do novo governo.
Liszt Vieira é professor da PUC-Rio
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