Violência e ataque à juventude são eixos do projeto de Bolsonaro, diz Safatle
"É uma juventude potencialmente revolucionária. Por isso ela é atacada. Por isso Bolsonaro fala que não quer mais política na escola", diz o filósofo
Em entrevista ao TUTAMÉIA, o filósofo Vladimir Safatle disseca o governo de Jair Bolsonaro – que ele classifica como fraco –, analisa o discurso oficial e aponta para o sentimento de revolta latente na sociedade. Para ele, o horizonte é de acirramento de conflitos, é contrarrevolucionário. “Se é um momento contrarrevolucionário, então tinha uma revolução possível. E tem. A sociedade tem uma energia de revolta inacreditável”, afirma.
“Todo mundo acha graça quando Bolsonaro fala do marxismo cultural, dos comunistas. ‘Ah, esse cara está nos anos 60, está perdido’. Digo: Ele não está nos anos 60. Ele está em 2030. Ele está apontando para quem vem. Ele não está apontando para trás. Ele sabe que há uma possibilidade enorme de que isso realmente volte. Qual é um dos eixos fundamentais de luta [de Bolsonaro]? É contra a juventude. Porque uma boa parcela da juventude brasileira foi formada dentro dos processos de ocupação de escolas, dentro dessa nova sensibilidade que permite uma maior compreensão das questões de sujeição, de submissão social”.
Assim, segue, “ela percebe muito mais claramente essas dinâmicas vinculadas à exclusão e ao preconceito. É uma juventude potencialmente revolucionária. Por isso ela é atacada. Por isso Bolsonaro fala que não quer mais política na escola. Ele tem toda a razão de falar isso dentro da lógica dele. Esse é um problema para eles. Eles sabem que daí pode sair uma outra figura da sociedade brasileira”.
Um exemplo dessa possibilidade, no entender do professor de filosofia da USP, foi o movimento “Ele Não”. “Trinta garotas que não tinham partido por trás, nada por trás, conseguiram parar o pais, botar 1 milhão e meio de pessoas na rua. Quantas manifestações a gente viu nesses últimos três anos?. Enchiam 100 mil pessoas na avenida Paulista espontaneamente. Houve uma greve geral com 35 milhões de pessoas”.
Ao contrário do que muitos alegam, Safatle afirma: “A sociedade brasileira é extremamente politizada, luta. Nesses últimos três anos, isso ficou muito claro. A gente pode ter perdido nossas dinâmicas de incorporação de atores políticos. Mas não perdemos o sentido de luta. Há uma multiplicação de lutas sociais, com várias pautas, abordando vários sujeitos, com várias estratégias e várias armas. O elemento que enfraquece essas lutas é o fato de elas não conseguirem convergir mais. Elas não têm dinâmica de convergência”.
Wikicommons
"A sociedade tem uma energia de revolta inacreditável”
Laboratório mundial do ultra neoliberalismo
Na análise de Satafle, “o Brasil é um laboratório mundial do ultraneoliberalismo, como foi o Chile. É o modelo chileno. O modelo chileno não é exceção é a regra. Eles vão tentar fazer com que isso seja a regra. Porque se não for dessa forma, não tem como ser. No Brasil viram a oportunidade de fazer uma política ultraliberal via extrema direita, através dessa junção com o militarismo. Se esse modelo funcionar, vai ser exportado para todos os lados da América Latina”.
Bolsonaro sabe que não vai reconquistar os 55% da população e não está preocupado com isso, diz Safatle: “Ele não precisa desse apoio majoritário para governar. O importante é preservar os 30% de apoiadores mais firmes, o seu eleitorado orgânico.”
“Esse não é um governo que governa para 60% da população. Ele governa para 30%. O governo tem uma lógica de guerra muito clara. É melhor ter um grupo pequeno de apoiadores, mas muito aguerridos e mobilizados, do que um grupo grande e disperso. Eles não estão se importando em estar perdendo aprovação. Sabem que a questão fundamental não é a provação que terão, mas se os 30% que estão do lado deles vão estar muito mobilizados. Porque os outros 70% estão desmobilizados. Porque do outro lado não tem força de mobilização. Há energia de revolta, mas não força de mobilização. Enquanto essa situação perdurar, eles conseguem se sustentar com 30%”, afirma.
Conflito e Estado policial
Mas o horizonte de tempo para isso não é longo, na opinião do filósofo: ” Eles sabem que não dura um ano, um ano e pouco para que esse interregno que a gente está vivendo perdure. Você vai ter um governo que estará com baixa popularidade, com medidas econômicas de extrema impopularidade, medidas duras que não vão ser aprovadas sem conflito social. Esse conflito social vai se desdobrar em um estado policial. Pode-se imaginar o nível de violência que vai acontecer. Vai chegar um momento em que eles vão tentar fechar ainda mais o regime. Eles vão tentar. Eles se preparam para isso. Nunca o Brasil viveu de maneira tão explicita um processo gradual de constituição de um estado autoritário. Isso é feito à luz do dia. Vai ter um momento de conflito”.
“O país é ingovernável. Não há técnicos, planificação. Trata-se de eliminar todo o resto que existia de seguridade social, de comprometimento do estado com sistema de saúde(..). Precisa destruir todo e qualquer sentimento de solidariedade social e isso eles estão fazendo muito bem. É livrar o estado das obrigações de solidariedade para que a lógica social seja ‘cada um por si’”.
Para que isso funcione, afirma, “ele precisa de um projeto de despolitização da sociedade civil. Não é destruir o estado. É criar outra forma de estado total. Não é um estado que vai ser o artífice das demandas da sociedade civil, o espaço de embates da sociedade civil. É um estado que vai tentar despolitizar a sociedade em todos os níveis para garantir o único elemento que vai aparecer como liberdade, que é a ideia da liberdade econômica. Não é liberdade de concorrência. Essa ideia desapareceu do capitalismo há quase 100 anos. É a liberdade de constituição de monopólios. E com a garantia de que, quando os monopólios começam a entrar em colapso, o estado está lá para salvar todo mundo. Para essa despolitização da sociedade, ele precisa de um grau ainda inimaginável de violência”.
Bolsonaro não é burro; é fraco
Diz Safatle:
“Aqueles que tratam Bolsonaro de burro deveriam repensar completamente isso. Ele pode ter vários vícios, problemas, mas burro ele não é. A pior coisa que você pode fazer em relação ao seu inimigo é menosprezar a sua capacidade. Ele sabe muito bem que é necessária uma despolitização da sociedade brasileira. Isso significa, entre outras coisas, um uso da violência do estado contra todas as formas autônomas de organização, contra todas as instituições que reverberam uma dinâmica crítica, que é um elemento importante para mobilização as sociedade brasileira: escolas, universidades, a classe artística, os movimentos sociais, ativistas, movimentos em defesa de grupos historicamente violentados na sociedade brasileira, ecologistas, setores da esquerda”.
“Aqueles que tratam Bolsonaro de burro deveriam repensar completamente isso. Ele pode ter vários vícios, problemas, mas burro ele não é. A pior coisa que você pode fazer em relação ao seu inimigo é menosprezar a sua capacidade. Ele sabe muito bem que é necessária uma despolitização da sociedade brasileira. Isso significa, entre outras coisas, um uso da violência do estado contra todas as formas autônomas de organização, contra todas as instituições que reverberam uma dinâmica crítica, que é um elemento importante para mobilização as sociedade brasileira: escolas, universidades, a classe artística, os movimentos sociais, ativistas, movimentos em defesa de grupos historicamente violentados na sociedade brasileira, ecologistas, setores da esquerda”.
E acrescenta:
“É um programa de governo muito claramente estabelecido. Vai passar pela criminalização dessas organizações. É o próximo estágio. Ele precisa disso porque, com isso, o estado é capaz de paralisar todos os núcleos de sedição da sociedade. Eles são vários. Esse é um governo fraco. Não é forte. Um governo forte não precisa de muita violência para se sustentar. Um governo forte tem um certo grau de coesão social que lhe permite ser magnânimo com a sociedade. Esse é completamente fraco porque sabe que entra num momento em que governar o Brasil se tornou completamente impossível. Os índices econômicos vão ser catastróficos”.
País de rentistas; maioria tratada a bala
De acordo com Safatle, 45, o plano mais geral desse modelo é “tentar salvar 15 milhões, 20 milhões de pessoas, as que têm mais condições econômicas. E o resto se governa à bala. O Brasil vai ser um país de rentista; o resto vai ser à bala”.
Analisando o governo, o filósofo comenta a forma aparentemente atabalhoada de Bolsonaro.
“Esse caos tem método. Ele não é um caos feito por inabilidade. O estado nazista não era um estado lei e ordem. O estado nazista era um caos organizado. A questão fundamental desse modelo é como você faz para justificar a sua impotência. O modelo não realiza o que ele promete. Tem que a todo momento dizer: ‘Olha a gente está lutando contra setores do estado que ainda estão lutando contra nós, que não entenderam a nova política’. É uma belíssima forma de justificar a sua paralisia, por um lado, e, por outro, se continuar num sistema de mobilização mesmo no governo. Traz para o governo a dinâmica da mobilização. Precisa fazer com que o governo seja um caos contínuo. Precisa fazer com que ele esteja a todo momento lutando contra ele mesmo. Há os expurgos, que nunca terminam. Precisa de um sistema que possa justificar a impotência”.
Necroestado, morte, naturalização
Safatle analisa a história das milícias, a redemocratização que deixou impune os crimes de terrorismo de estado.
“O que nos governa hoje não são os remanescentes da ditadura militar. Governo é do porão da ditadura. São daqueles que foram torturadores”, afirma. É o necroestado, baseado no desaparecimento, no extermínio, e na naturalização de tudo isso. Por isso, Bolsonaro diz que o exército não matou o músico Evaldo dos Santos Rosa com 80 tiros. “A ação naturalizada. Ele quer dizer que esse assassinato não é crime, que a regra é essa. Crime é quando alguém que não é o exército mata. Quando o exército mata não é crime”.
“O estado brasileiro é um gestor do assassinato da sua população. É assim que ele funciona. Morte e desaparecimento. É a prática. Para isso, ele precisa fazer com que setores da população que são mais visíveis, da classe média para cima, se insensibilizem em relação a isso”, afirma.
Na entrevista, Safatle analisa as razões da vitória de Bolsonaro, faz críticas aos intelectuais e às esquerdas. Fala das elites e das rusgas no interior do governo:
“É ilusório imaginar que por algum tipo de conflito interno o governo vai se inviabilizar. Se tem alguma coisa que a elite brasileira mostrou saber fazer desde o seu início, desde a independência, é a sua capacidade de, depois de brigas taciturnas, se reconciliar. A elite brasileira não se divide. Ela vai lutar pelos espólios do estado. Mas, se vê algum risco de perder, ela volta e se reconfigura”.
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