87 estórias de resistência
O livro '87 estórias e 6 poesias' recupera a memória dos tempos da ditadura de 64, a prisão e tortura do autor, o voo da liberdade, dos 70 resistentes banidos do país, e vai até o período de trabalho de educação comunitária em Moçambique e na Bahia
15/08/2019 13:54
Créditos da foto: Samuel Aarão Reis, autor de '87 estórias e 6 poesias' (Reprodução/Facebook)
Trata-se de um livro despretensioso, sofisticado na sua simplicidade, uma grata surpresa de leitura irresistível, de autoria de Samuel Aarão Reis, professor e especialista em Educação Comunitária. 87 estórias e 6 poesias é o título do volume (Ed. Access), produção independente de uma edição que rapidamente vai se esgotando. Na contracapa, Samuel anuncia porque está chegando com esse trabalho que conquista o leitor de imediato e é lido de uma só vez.
"Há dois anos eu passeava ali pelos fundos da antiga Faculdade de Economia, na Praia Vermelha, quando vi escrito num muro: Memória Guerreira não se apaga nunca. Do outro lado da rua, Avenida Pasteur, há o monumento em homenagem ao meu amigo Stuart. Isso me encheu de recordações. Foi então que comecei a escrever estas estórias".
Simples, direta e muito humana – na medida exata do humano -, a apresentação vem com o tom geral deste livro de agora que se junta aos outros de sua autoria: O outro lado da lua, Escolas comunitárias, uma revisão, Meu nome é Lindalva. E com o sucesso destas suas primeiras estórias Samuel já prepara o volume seguinte para lançar no próximo verão: Novas estórias.
Samuel tem 75 anos. Casado com a advogada Ana Muller, mora parte do tempo em Botafogo, no Rio de Janeiro, e a outra, na Ilha de Paquetá. Leciona no pré-vestibular comunitário, prepara palestras, lê, escreve, "conversa com os amigos, ouve música, olha o mar e pesca".
A estrutura do seu livro é singela: cada estória é um flash que ilumina a memória de suas experiências e viagens quando jovem, e um Brasil dos anos 60, 70, 80. Pode ser lido sem qualquer ordem cronológica, (...) "de trás para frente, abrir numa página, pular para outra, à vontade de quem está lendo".
Mas por ser um guia atencioso com o seu leitor, ele indica que o primeiro capítulo de estórias fala do golpe de 1973 no Chile; o terceiro, da sua prisão e dos tempos de militância, na faculdade de economia e na favela Nova Holanda, onde morou. O quinto, vida e trabalho de alfabetização de adultos e escolas comunitárias na Bahia durante 14 anos, e o sexto é sobre seu aprendizado com o movimento negro baiano e do Rio. "O segundo e o quarto capítulos são estórias com assuntos diversos". O período coberto pelos relatos vai de 1965 a 1995.
Samuel percorre sua experiência durante o período da ditadura e vai da clandestinidade no Rio de Janeiro até a prisão no DOI-CODI e a tortura. "Estou mais triste do que com medo". Ele descreve como se sentia dentro do carro com os meganhas quando foi apanhado, olhando pela janela e atravessando o bairro da Tijuca, a caminho da cadeia. "Se soubesse realmente o que eu iria passar estaria com medo. Muito medo. A tortura ultrapassa totalmente tudo que possamos imaginar".
Depois, durante nove meses, os inquéritos militares farsescos e o vôo da liberdade com os 70 companheiros presos que foram trocados pelo embaixador suíço que acabara de ser sequestrado. Ele conta a liderança de Carlos Lamarca nas demoradas negociações para a escolha dos nomes que deveriam estar na lista da partida; a recepção calorosa na chegada a Santiago, o golpe a Allende em 73. O seu mestrado em História na Universidade de Paris e, depois, o trabalho em educação comunitária no Moçambique da FRELIMO, de Samora Machel.
"(...) e por toda a minha vida, a gratidão aos companheiros e companheiras que se arriscaram na ação".
O retorno ao Brasil e os longos anos de trabalho na Bahia são narrados em estórias afetuosas como esta, intitulada "A busca por uma pedagogia negra, enraizada na cultura negra”. E em seguida: "Uma escola no terreiro de Mãe Stela, O Ilê Ayiê e as escolas públicas do Curuzu, A Escola do Olodum".
As dificuldades das relações com governos e suas contradições. E uma estória importante com o tema da pedagogia que agride a tradição. "A busca por uma pedagogia negra, enraizada na cultura negra".Dúvidas. "Qual escola buscar? Uma escola de qualidade, sem dúvida. Mas o que é uma escola de qualidade? Onde estão os negros nos livros didáticos?".
Em No trem em Moçambique Samuel relata uma viagem com um amigo, dois anos depois da Independência. "Trem cheio, viajávamos em pé. (...) Espetáculo de pobreza. Viro-me para o Antonio e exclamo: putz! Dois anos já da Independência, e o que mudou? Ele me responde irônico: o que mudou é que nós, brancos, agora viajamos de pé no trem; antes alguém teria de se levantar para nos dar lugar".
Em A solitária era sinistra, ele descreve: "Sem janelas, sem banheiro e nem uma pia, sem colchão nem travesseiro. Ir ao banheiro, só uma vez de manhã, outra de noite. A única distração era cantar. O problema é que eu só conhecia de cor duas músicas, uma de fossa, tristeza não tem fim, felicidade sim, e outra mais forte, joão valentão é brigão para dar bofetão não presta atenção".
"Moradoras permanentes dessa solitária", lembra Samuel, quatro baratas. A minha preocupação com as baratas era que elas não me mordessem enquanto eu estava dormindo. De dia não havia problema, eu as espantava. De noite acho que elas dormiam também ; nunca me acordaram no meio da noite. Eu tirava os sapatos e fazia um travesseiro com eles. Dormia bem".
Uma das mais fortes pequenas grandes estórias do livro é a da sua entrada na embaixada do Panamá em busca da segurança do refúgio político com sua mulher na época, e da filha bebê recém nascida. O soldado chileno já tocando no seu ombro para impedir a entrada dos três no prédio, o portão fechado e um segurança, dentro do jardim da embaixada bloqueando o passo decisivo.
"Um dos soldados segura meu braço. Empurro Irene e Tania para dentro da embaixada. Elas entram correndo pelo jardim. Os soldados engatilham os fuzis. Apontam. Num safanão solto meu braço. Entro atrás da Irene. Tania no colo dela. Protejo com meu corpo o corpo das duas. Dan (NR: o irmão do autor, Daniel) abre os braços e grita para os soldados: 'não atirem – aqui há crianças!' Os soldadinhos vacilam".
Comentando o golpe parlamentar de 2016, quando "o Brasil caiu num precipício", como Samuel costuma dizer, "e o novo governo joga nas costas do povo o custo para sair da crise. Conquistas adquiridas com muita luta, durante décadas, são jogadas no lixo: reforma trabalhista, reforma da previdência... Estão vendendo todas as riquezas duramente acumuladas pelo povo brasileiro: Petrobras, Eletrobrás etc. O Brasil admirado no plano internacional hoje perde sua soberania quando um presidente bate continência para a bandeira dos Estados Unidos".
"Mas nas situações de crise são os jovens e as mulheres que assumem a linha de frente da resistência, e mantêm viva a esperança. Acredito nos jovens e nas mulheres. O Brasil e o povo brasileiro retomarão seu caminho".
É assim que Samuel prossegue na resistência, mais uma vez com disposição inesgotável, e na companhia especial dos seis poetas que escolheu para participarem do seu livro: o uruguaio Carlos Liscano, Pablo Neruda, Cora Coralina, Lucia Penna Aarão Reis, Pedro Tierra e William Henley.
Diz Henley no seu célebre poema Invictus, uma "poesia que, muitas vezes, desde crianças, meu Pai recitava para nós", relembra o professor.
"Por ser estreita a senda – eu não declino, / Nem por pesada a mão que o mundo espalma, / Eu sou dono e senhor do meu destino, / Eu sou o comandante de minha alma".
*87 estórias e 6 poesias pode ser encomendado pelo email samucareis87@gmail.com
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