O desafio de vencer o cachorro louco
Uma das características do mundo contemporâneo é a crise dos partidos políticos. Nós a sentimos aguda, mas é fenômeno que se abate sobre o sistema ocidental sem deter-se ante limitações ideológicas ou geopolíticas. Como sobrecarga traz consigo – simbiose entre causa e efeito – a decadência do liberalismo político e a emergência de governos que transitam da direita (Donald Trump) à extrema-direita, muito bem representada pelos regimes de Benjamin Nethanyahu, Recep Erdogán e Viktor Urbán. Nossa contribuição a esse álbum é o bolsonarismo. É a nova fase do conservadorismo brasileiro que se afasta do centro, reduzido a um vácuo, enquanto cresce a movimentação dos círculos de direita em todos os campos da sociedade.
Depois da debacle dos partidos tradicionais da França, da Itália, da Espanha e da Grécia – à esquerda e à direita –, está no horizonte a crise inglesa. Acelerada pelo desastrado Boris Johnson e o impasse em torno do Brexit, ela ilustra também a crise do bipartidarismo, que já há muito atingiu a infuncional democracia representativa dos EUA, de que a eleição de Trump, nas condições conhecidas, é apenas um subproduto. A face brasileira da crise – crise da democracia representativa, crise da política -- é pontuada pela eleição do capitão Bolsonaro, o ápice da disfunção geral dos nossos partidos (nomeadamente dos partidos da centro-direita mas não só deles, literalmente fulminados, cedendo espaço a aglomerações de ocasião, meramente jurídicas, heterogêneas, sem inserção nacional, sem militância organizada, finalmente sem linha programática, transformando o Congresso Nacional em um imenso “baixo clero”.
Nas eleições de 2018 as esquerdas e as forças progressistas de um modo geral foram derrotadas, mas a centro-direita, PSDB à frente, foi simplesmente eliminada, facilitando a polarização que ajudou a campanha do capitão, e na qual ele investe como esteio de seu governo. A polarização é igualmente fruto desse vazio, pois as forças antípodas, sem terem com quem firmar alianças, também são forçadas ao isolamento.
Por variados motivos, no vazio partidário, amplo, a vida política brasileira se viu polarizada, nas eleições e depois, entre extrema-direita e esquerda, ou, em termos mais simples, entre anti-lulismo e lulismo, e desse caldo, com outras tantas interferências, emergiu o bolsonarismo. É este o quadro que o capitão presidente quer ver congelado, e daí decorre a estratégia/tática de, com apenas oito meses de desastrado governo, colocar na pauta política sua reeleição, na expectativa de afastar concorrentes do campo conservador, mas ensejando a disputa em campo aberto.
Sua suposição é aritmética, pois em sua ótica o eleitorado brasileiro estaria dividido entre um terço que vota pela esquerda, um terço que acompanharia o capitão até às últimas consequências, a bolha à qual se dirige, e um terço que estaria alheio aos números anteriores, forcejando por um espaço próprio na direita e na centro-direita. Nesse cenário, anunciam os futurólogos o dictak de 2022, a esquerda terá candidatura própria, possivelmente saída dos quadros do PT; a bolsa bolsonarista já teria o capitão em campanha, e no terço que giraria entre a direita e a centro-direita o espaço estaria sendo disputado pelo governador de São Paulo e um apresentador de TV.
Ou seja, o jogo já estaria dado.
Mas todos sabem que há um longo caminho até a próxima eleição presidencial, e no meio do caminho temos 2020.
As mais recentes pesquisas de opinião (Datafolha, CNT/MDA e Vox Populi), dizem que parte do eleitorado do capitão começa a migrar da avaliação de “ótimo/bom” para “regular/ruim”; será um campo para colheitas da direita e da esquerda, sobretudo com a lentidão da retomada da atividade econômica.
É evidente que qualquer discussão sobre o pleito de 2022, à qual, aliás, se dedicam presentemente as colunas dos comentaristas políticos, é, mais do que precipitada, exercício de pura imaginação. Mas sua referência serve como pano de fundo para a análise das estratégias do capitão, preocupado em conservar o poder que, se soube conquistar com os meios de que lançou mão, mostra-se a cada dia mais incapaz de manter, na medida em que se insiste em se comportar como o chefe de facção que sempre foi, repelindo o papel de estadista, incompatível com sua inanidade política. Neste ponto temos o primeiro dos objetivos do debate em torno de uma eleição fora do horizonte: garantir o aqui e agora, isto é, a mantença do governo, dizendo às suas tropas que só haverá amanhã se o hoje for assegurado. E um dos primeiros desafios é, repete-se, convencer aliados de que não haverá bolsonarismo sem Bolsonaro. A estratégia visa a desestimular os que, satisfeitos com a média da política econômica ultraliberal – a reforma da previdência em seu final, a desestatização como principio e as privatizações como método, a reforma tributária prometida – temem, crescentemente, as consequências da incurável incapacidade do capitão de exercer a presidência, o destempero que chega às raias da insânia, como, após a querela contra o presidente da França, as diatribes contra a Alemanha e a Noruega, a descabida e insólita agressão à ex-presidente do Chile, Alta Comissária da Organização das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet.
A reeleição, ao final das contas, não é crucial, mas tática a serviço da estratégia de salvar um governo que parece esgotar-se todo dia.
Prometendo o futuro como paga à solidariedade no presente, Bolsonaro tem à frente um leque de desafios, e o primeiro deles é, como sempre, o desafio da economia, que o “Posto Ipiranga” ainda não conseguiu tirar do marasmo. Boa parte de seu eleitorado fiel, que intenta conservar, está exposto à carestia e pode se indispor se emprego e renda não vierem logo: tiro em bandido e censura a beijo gay agradam a muitos, mas não enchem a barriga de ninguém. Para além da grande bolha do inexcedível capitão, há, disputado pela centro-esquerda e pela direita liberal, um imenso eleitorado que deve trazer dificuldades e limitações crescentes para o jeito bolsonarista de governar. O desprestígio internacional, também crescente (em cenário já desfavorável por muitos outros motivos), pode sensibilizar o público nativo, a começar pela influente classe média. Um resultado previsível na Argentina e outro surpreendente nos EUA dariam sua contribuição ao caldo.
Enquanto isso, a oposição, ainda vivendo a crise de seus partidos, joga ora parada, ora no contra-ataque, estratégia aconselhável quando o time, afinado, dispõe de ataque rápido e goleadores. Este não parece ser o caso, e assim ficamos na dependência dos erros – múltiplos, reiterativos e frequentes –, do capitão, nem sempre, porém, bem aproveitados. Não parece, no entanto, aconselhável à oposição supor que o provável fracasso do capitão fará o eleitorado cair naturalmente no seu colo, muito menos há razões objetivas para supor que a esquerda esteja preparada para falar (e atuar) numa eventual e provável crise institucional. Continuam a esquerda carente de uma plataforma unificadora de palavras de ordem mais gerais que o necessário e urgente “Lula livre”, para esse que certamente é o desafio mais agudo: constituir-se, perante a sociedade, em alternativa viável ao bolsonarismo, qualquer que seja o desfecho das crises que vivemos em cascata desde a posse do capitão.
Pergunta que não pode calar:
- Quem mandou matar Marielle Franco?
Roberto Amaral
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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
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