Antes de Davos, Paulo Guedes foi ao ‘comitê central’ do neoliberalismo
Ministro participou de jantar nos EUA com a Sociedade Mont Pelerin, patrocinadora do discurso pró-ricos desde 1947
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Pelerin é um monte na Suíça e foi lá que nasceu, em 1947, a sociedade visitada por Guedes. Entre os fundadores do grupo, está o finado economista americano Milton Friedman, mestre e ídolo dos Chicago Boys a la Guedes.
Essa sociedade é uma trupe de endinheirados, economistas, filósofos e políticos defensora dos ricos e do individualismo. Um programa humorístico da tevê alemã descreveu didaticamente, em 2018, o que ela é. Uma espécie de comitê central do neoliberalismo internacional.
Depois da II Guerra Mundial (1939-1945), o capitalismo estava ferido, atrelado ao fascismo e ao conflito. O socialismo soviético representava uma opção de justiça social e de alternativa de modelo econômico. Os ricos viam-se acuados no Ocidente por trabalhadores a cobrar melhores salários e mais direitos e por governos inclinados a atender essas demandas, via impostos.
Era preciso defender os ricos, mas sem dizê-lo abertamente. Melhor seria pregar que a riqueza é boa para todo mundo, que o mercado é virtuoso e o Estado, degenerado. A missão da Sociedade seria santificar o setor privado e amaldiçoar tudo que fosse público. Sim às privatizações e ao corte de gastos públicos, não aos impostos.
O plano exigia mudar a hegemonia ideológica e cultural em escala global. Não faltou dinheiro para esse lobby, afinal, eram todos ricos. E assim a Sociedade deu origem a uma rede de uns 500 think tanks espalhados pelo mundo, com economistas, pesquisadores e políticos dedicados a professar as virtudes do capitalismo neoliberal individualista e os pecados estatais.
No flyer comemorativo de seus 70 anos, em 2017, a Mont Pelerin listava alguns membros ilustres, sinal do peso de sua influência. Alan Greenspan, presidente do Banco Central americano de 1987 a 2006. Lars P Feld, consultor econômico da chanceler alemã, Angela Merkel, no poder desde 2005. O empresário Charles Koch, um dos principais financiadores da campanha de Donald Trump em 2016.
Criado em 2005 no Brasil tendo Paulo Guedes como um de seus fundadores, o think tank Instituto Millenium pode ser considerado integrante da rede Mont Pelerin. O ministro é um milionário, teria ainda hoje no governo “negócios ocultos”, segundo o deputado Paulo Ramos (PDT-RJ), que cobra do Ministério Público uma investigação a respeito.
O jantar de que Guedes participou na Califórnia fez parte do “encontro especial 2020” da Sociedade Mont Pelerin, realizado entre 15 e 17 de janeiro na Universidade de Stanford. Ele foi ciceroneado por um professor de história conservador da universidade, o escocês Niall Ferguson, uma pessoa com credenciais para integrar o governo Bolsonaro.
Certa vez, Ferguson quis desprezar a obra do falecido economista inglês John Maynard Keynes, a quem Milton Friedman via como inimigo, e tachou-o de “gay”. Em outra oportunidade, ajudou dois estudantes direitistas de Stanford a perseguir um aluno de esquerda, motivo de rebu no campus.
Outra do escocês: em 2018, ele organizou uma conferência com 30 historiadores. Todos homens e brancos. A historiadora gaúcha Ana Lucia Araújo, professora na Universidade de Washington, comentou no Twitter: “Conferência histórica para todos os homens. Isso vale para o Guiness book do século! Uma equipe de 30 historiadores brancos discutirá a história aplicada em Stanford. Que pena.”
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Rejuvenescido por beber na fonte de inspiração de sua juventude antes de chegar a Davos, Guedes não deu bola no Fórum para um assunto que preocupa cada vez mais os ricos e as grandes empresas: a concentração de renda. E não é por bom coração que existe tal preocupação.
“Está ficando claro que a desigualdade ameaça o futuro e os negócios das corporações. Para estas, hoje é indispensável atenuar as desigualdades, pois precisam de consumidores e a melhor forma de alcançá-los é ampliando o mercado”, diz o economista Paulo Feldman, da USP. “Concentração de renda na mão de poucos significa em primeiro lugar diminuição do número de consumidores.”
A concentração de renda pelo mundo nunca foi tão grande, conforme o “Relatório Social Mundial 2020 das Nações Unidas: Desigualdade num Mundo que Muda Rapidamente”, lançado em Nova York dia 21 pela ONU. Uma herança que o economista brasileiro Alfredo Saad Filho, professor na Universidade de Londres, atribui a quatro décadas de hegemonia neoliberal.
A experiência inaugural do neoliberalismo foi no Chile, com a ditadura Pinochet surgida em 1973 após um golpe no presidente socialista Salvador Allende. Milton Friedman, o da Sociedade Mont Pelerin, era a bússola econômica pinochetista. Vários de seus Chicago Boys passaram por lá. Inclusive Guedes. O ministro foi pesquisador da Faculdade de Negócios da Universidade do Chile.
Diante de tudo isso, não é difícil entender por que a política econômica de Guedes e o governo Bolsonaro fazem o oposto daquilo que a ONU, em seu relatório social, recomenda contra as desigualdades e a concentração de renda.
O organismo defende acesso universal à educação de qualidade, investimento no mercado de trabalho e apoio a novas formas de representação sindical, para dar voz aos trabalhadores donos de empregos informais e precários. Aqui o governo segura a verba da educação, quer dar mais espaço a instituições privadas (que cobram mensalidade), sabota os sindicatos, incentiva o trabalho precário.
A ONU propõe mais proteção social, aposentadorias melhores. Aqui a reforma da Previdência dificulta o acesso dos brasileiros ao INSS.
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As Nações Unidas sugerem combater o preconceito e a discriminação de grupos já desfavorecidos. Aqui Bolsonaro ataca negros, mulheres, gays, indígenas.
A Sociedade Mont Pelerin só tem a agradecer a Paulo Guedes e ao ex-capitão.
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