“Legitima defesa imaginária” e outras maneiras de manter a impunidade por Natalia Viana
“Você está aqui para o julgamento dos meninos?”, me perguntou a recepcionista da 1ª Circunscrição da Justiça Militar da União, que abriga os tribunais militares num predinho cinza e sem graça na Ilha do Governador no Rio. Naquela manhã, os “meninos” eram, mais uma vez, jovens soldados do Exército acusados de fuzilar civis em plena rua de um bairro carioca onde pessoas como eu ou você poderiam estar passando distraidamente.
A história vem se repetindo desde 2011. Conforme demonstramos na série investigativa Efeito Colateral, militares são acusados pela morte de pelo menos 35 mortes de civis durante operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) – e ninguém foi punido.
Abraão Maximiano Ferreira, de 15 anos, foi fuzilado pelas costas, quando voltava de uma partida de futebol com o primo no Complexo do Alemão, em 2011. Em 2015, a comerciante Raimunda Cláudia, 47, morreu com um tiro na cabeça ao chegar na janela da sua casa, um sobrado na Maré, para chamar a funcionária que cuidava da SUA loja de roupas do outro lado da rua. Matheus Martins da Silva, de 17 anos, foi morto em fevereiro de 2017, voltando da casa da tia, onde fora jantar, em Cariacica, no Espírito Santo. Em 2018, no mesmo bairro em que foi assassinado o músico Evaldo Rosa, Diego Ferreira, de 25 anos, foi morto quando voltava de um posto onde fora comprar gasolina, de moto, na rua de trás da casa onde morava com os avós.
Em nenhum desses casos houve punição aos militares porque, da recepcionista aos juízes, a verdade é que os membros da Justiça Militar demonstram um especial “carinho” para com o seus réus.
Se a nossa justiça comum é punitivista, na militar tudo conspira para a impunidade.
Os mesmos soldados que, quando enviados para uma operação de GLO são louvados como o valente e bem preparado braço forte da lei, nas auditorias militares são jovenzinhos assustados e sob “violenta emoção” e “grave ameaça”.
Esta semana tratamos na Agência Pública de mais um caso no qual a absolvição é quase certa. Na véspera de carnaval de 2015, um carro com cinco amigos foi fuzilado com seis tiros de calibre 7,62 no Complexo da Maré, no Rio. Todos os passageiros, desarmados, foram atingidos por estilhaços dos projéteis. Vitor Santiago Borges, então com 29 anos, recebeu dois tiros; ficou paraplégico e teve que amputar a perna esquerda.
Mas o promotor do Ministério Público Militar, nas alegações finais, pediu a absolvição do soldado que atirou, alegando que agiu em “legítima defesa imaginária” – ou, no jargão jurídico. “putativa” – pois “supôs” fuzilar um veículo de criminosos que estavam “na iminência” de atirar contra os soldados.
A justificativa chocou tanto os leitores da Agência Pública que a cartunista Laerte fez uma tirinha sobre o caso. Mas esse é apenas um dos estratagemas que a Justiça militar usa para não punir os seus “meninos”.
No caso de Matheus Martins da Silva, embora o adolescente não estivesse armado, a Juíza militar decidiu na sentença que apenas a sensação de que os soldados estavam sendo atacados era o suficiente. Foi um “erro escusável”, escreveu ela.
No caso de Evaldo Rosa, o Superior Tribunal Militar (STM) decidiu que os 9 soldados que fuzilaram o carro da família com 62 tiros responderiam ao processo em liberdade por uma questão processual: o Inquérito Policial Militar (IPM) acusou que eles haviam apenas descumprido as regras de engajamento, crime que não permite prisão preventiva. O IPM, conduzido por militares superiores, não considerou que o que houve ali fora um duplo homicídio.
No caso de Diego, o que livrou o Exército de sua culpa foi também o IPM. Os militares que apuraram o caso espantosamente concluíram que Diego, de chinelo e sem capacete, decidiu atropelar uma sentinela de soldados armados com fuzis. A sua família, que mora a não mais de 500 metros do local do crime, sequer foi ouvida.
E há casos como o de Raimunda Claudia, em que não houve absolutamente nada. A morte não foi sequer registrada pelo Comando Militar do Leste como ocorrida durante um confronto. O Exército saiu do local e nunca mais voltou. Sua filha Fabíola Rocha, de 28 anos, passou os anos seguintes tentando reestruturar a família, cuidar sozinha da irmã de 11 anos, e sair da favela da Maré, que lhe lembrava demais a tragédia.
Anos depois, não há uma investigação, um documento no qual ela possa se apoiar para tentar entender de fato o que ocorreu naquele dia.
Hoje, num governo Bolsonaro, é difícil imaginar que a alta cúpula militar – que jamais defendeu a punição nem mesmo daqueles membros que torturaram e violaram mulheres durante a ditadura – admita e puna os excessos não só dos jovens soldados que cometeram esses crimes, mas dos verdadeiros responsáveis, segundo a disciplina militar: seus comandantes.
|
|
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário