PM contrário a Bolsonaro é aposentado aos 29 anos e pode ser expulso
‘Os militares não são educados, mas doutrinados. Somos treinados apenas para o combate, para o confronto’, diz o policial
Agora, del Colle corre o risco de perder a aposentadoria e ser expulso da corporação. Um auto de sindicância da PM datado de 16 de janeiro o convocou a comparecer perante o Conselho de Disciplina para uma “audiência de qualificação”, onde foi “acusado oficialmente (…) de ter produzido diversos textos, além de um vídeo publicado no YouTube, trazendo a conhecimento público imputações graves contra a instituição, bem como em desfavor de autoridades civis constituídas”.
O histórico do oficial na corporação sempre contrariou as normas da caserna. Aberto ao diálogo, desde os tempos da academia preparatória se mostrou disposto a ouvir seus comandados. “Muitos colegas que foram meus subalternos costumam dizer que nunca tinham encontrado um superior que os ouvisse”, diz.
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Ainda estudante percebia e questionava algumas decisões castrenses. “Era muito jovem, 18 anos, e tudo aquilo era novidade. O regime militar tem suas normas e para sobreviver lá dentro é preciso acatar. Eu fui aprendendo a reagir, embora discordasse de muitas coisas.”
Após uma década de experiência, del Colle reconhece que a formação dos cadetes, e mesmo de policiais com menor graduação, deixa a desejar. “Os militares não são educados, mas doutrinados. Somos treinados apenas para o combate, para o confronto. O pensamento é estritamente sob o viés militar. Ninguém sai de lá com a percepção social ou política do que se passa no mundo. Os alunos deveriam sair das escolas militares para conhecer a realidade.”
Conta que, já oficial, visitou um acampamento do MST e viu que as condições de vida e sobrevivência eram as piores possíveis. “Muito diferente de tudo o que ouvia dos meus comandantes e colegas de farda.”
Sugere que os cursos de formação de oficiais deveriam estar atrelados às universidades. “Os policiais são formados longe da sociedade, dentro dos quartéis, em um mundo à parte sob um regime de ideologia única.” Disciplinas como sociologia, psicologia, filosofia e direitos humanos fazem parte da grade curricular, porém são aplicadas por militares. “Seria importante que os alunos militares estudassem com professores universitários. Que pudessem debater com jovens de pensamentos diversos para entender o que se passa no dia a dia. Apenas matérias de cunho militar seriam ofertadas pela Policia Militar.”
Lavagem cerebral
O curso na academia militar é de 3 anos, em regime de internato, onde convivem entre si com uma realidade muitas vezes diversa do que se passa do outro lado dos muros. Uma verdadeira lavagem cerebral. Ali prevalece a tese que “bandido bom é bandido morto”. No campo de ação, são ensinados que apenas os fortes irão sobreviver e se destacar na carreira. Essa prática faz com que a quase totalidade dos estudantes, ao deixar a academia, queira atuar no que chamam de operacional. “Estar na rua, no confronto direto com bandidos é o sonho da maioria destes jovens. Principalmente fazer parte das chamadas tropas de elite, que agem como batalhões de choque. Os setores administrativos e inclusive de inteligência são considerados de menor importância”.
Toda essa postura não nasce, segundo ele, com os policiais, mas é a estrutura da PM que os incentiva a serem duros. No Paraná, um episódio acontecido em 2018 mostra essa realidade. Em edital de concurso da Policia Militar, um dos itens exigia dos candidatos “masculinidade, capacidade de o indivíduo não se impressionar com cenas violentas, não se emocionar facilmente, tampouco mostrar interesse em histórias românticas e de amor”.
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A machista medida, que excluía inclusive a chance de mulheres postularem vagas na corporação, causou enorme repulsa nos movimentos de direitos humanos, em setores do Ministério Público Estadual e Ordem dos Advogados do Brasil. A pressão fez com que a exigência fosse retirada do regulamento, mas, na prática, nada mudou sua concepção. A surpresa é que, à época, tanto o estado como a Policia Militar eram dirigidos por mulheres: Cida Borghetti, governadora, e a coronel Audilene Rosa de Paula Dias Rocha, comandante da PM.
Na ativa, logo começou a sentir os efeitos de sua postura democrática e aberta ao diálogo com as constantes mudanças de função ou transferências de cidades. Em uma estrutura hierarquizada, onde os subordinados apenas obedecem às ordens que recebem, del Colle debatia e discutia com seus comandados temas como racismo, homossexualidade, transexualidade, violência, além de ouvir rap com o grupo para debater as letras com críticas aos próprios militares.
Estudioso no tema de segurança pública, a partir de 2015 começou a opinar pelas redes sociais. “Percebi que a sociedade não tinha noção da importância de se discutir algumas questões. A maioria dos comentários era que eu deveria, ao invés de ficar escrevendo, estar na rua prendendo e matando bandidos.”
Mais uma vez sentiu na pele o quanto a rígida estrutura militar é avessa a mudanças. Após um exaustivo estudo, apresentou ao comando do Batalhão de Polícia Escolar, onde atuava, uma proposta de aprimoramento do Programa Educacional de Resistência às Drogas – Proerd, parceria entre a PM, escolas e famílias. Na pesquisa, descobriu que se tratava de um projeto americano denominado DARE, da polícia de Los Angeles. “Pelas estatísticas, observei que o programa não obteve resultados satisfatórios nos EUA, uma vez que o combate às drogas era focado apenas na repressão. Seus idealizadores, inclusive, já haviam feito várias alterações para aprimora-lo, mas aqui permanecia a proposta antiga e ultrapassada.”
Reuniu documentos e sugeriu uma série de mudanças no modelo local, sempre seguindo normas e regras da proposta original. “O comandante ouviu minhas argumentações. Achou interessante, mas ao final da conversa, para minha surpresa, simplesmente devolveu tudo aquilo que havia preparado. Sequer teve a curiosidade de ler.”
Das redes sociais, del Colle passou a publicar artigos em sites – incluindo um, no segundo semestre de 2018, em que apoiava o movimento #EleNão. Foi aí que a PM reagiu e agora o convocou para se explicar. Os títulos das matérias tocam o dedo na ferida da corporação e na atuação dos policiais. “’A ordem de um oficial está acima da lei’, explica policial sobre funcionamento da PM”, “O que a polícia almeja é poder. O objetivo não é melhorar a segurança, diz policial”. Faz críticas da apologia à violência nascida dentro das escolas: “Criou-se o delírio que policial corajoso é o que executa. Covarde é o cumpre a lei, diz PM”. Ou quando questiona “A promíscua relação entre polícia e judiciário”. Não poupa o governo do ex-capitão Jair Bolsonaro. Aliás, no processo do Conselho de Disciplina, onde se lê “imputações graves (…) em desfavor de autoridades civis constituídas”, leia-se o ex-juiz Sérgio Moro e o procurador da República, Deltan Dallagnol.
Enquanto aguarda o encaminhamento do processo, onde os advogados terão 40 dias para apresentar sua defesa, o jovem oficial aposentado se debruça em estudos e pesquisas. Pretende escrever um livro. Acredita que qualquer mudança no sistema deve começar pela estrutura básica do ensino militar. Para justificar, em um de seus artigos cita o líder revolucionário africano, Thomas Sankara, quando afirmou que “um militar sem formação política ideológica é um criminoso em potencial”. No Brasil, já temos um exemplo deste personagem.
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