quinta-feira, 26 de março de 2020

Newsletter da Agência Pública



Essa semana, a repórter Mariana Simões conta como descobriu a história por trás da primeira morte por coronavírus no Rio. Ela revelou que a vítima, uma senhora de 63 anos que trabalhava como empregada doméstica, não tinha sido informada pela patroa de que corria o risco de ser infectada no trabalho.

A Pública tem investigado os impactos da pandemia de Covid-19, desde robôs levantando a #VirusChines até o enfrentamento ao coronavírus em favelas e cortiços onde não há saneamento básico. Acompanhe nossa cobertura completa e veja aqui embaixo como foi a repercussão das nossas reportagens.

Nesta edição, trazemos também uma reflexão da jornalista e escritora argentina Leila Guerriero sobre o momento que estamos vivendo: "Um mundo que luta contra um inimigo que não tem maldade não tardará a encontrar o vilão perfeito." Confira!

Um abraço,

Giulia Afiune
      
Coronavírus e desigualdade: uma tragédia anunciada
por Mariana Simões
 
Quando meu pai era criança, morava em um jirau em cima da oficina de um parente que consertava sofás no Estácio, bairro próximo ao centro do Rio de Janeiro. Ele e mais três familiares dormiam amontoados no mesmo quarto e o único banheiro do local era compartilhado com os trabalhadores da oficina.

Eu cresci ouvindo histórias sobre essa época da vida dele como um alerta sobre a realidade em que vivem muitos brasileiros na nossa “cidade maravilhosa”. Meu pai era apenas um de muitos. E ele foi um dos poucos que conseguiu ir viver em melhores condições . “Ser pobre no Rio não é fácil,” ele diz até hoje.

À medida em que a crise do coronavírus se expande para as favelas e periferias, os efeitos cruéis da desigualdade social que marca o Rio e o Brasil se tornam ainda mais aparentes.

Depois que a primeira pessoa faleceu em decorrência do coronavírus no Estado do Rio de Janeiro, viajei duas horas até o município de Miguel Pereira para investigar quem ela era. A senhora de 63 anos trabalhava como empregada doméstica no Leblon, onde o metro quadrado é o mais caro do Brasil. O irmão dela me contou que a empregadora fora passar o carnaval na Itália enquanto o coronavírus se espalhava por lá. Quando voltou das férias, a irmã foi trabalhar como de costume. Mas a patroa não disse que achava que estava doente e não a avisou sobre o risco de contágio.

Na segunda-feira, dia 16, a senhora saiu às pressas do trabalho. Ela dizia que já estava se sentindo muito mal há dias. Em vez de buscar atendimento no Leblon, ela chamou um motorista de táxi de sua cidade e viajou até Miguel Pereira, onde foi atendida em um hospital da rede pública.

A patroa havia testado positivo para o coronavírus, mas segundo Sebastião Barbosa, diretor médico do hospital onde a paciente fora internada, esta informação só chegou no dia seguinte à internação, que foi o dia em que ela faleceu. Até então, o hospital não tinha tratado a paciente como um caso suspeito de Covid-19. "Se as informações tivessem chegado mais cedo talvez a gente tivesse como mudar a história clínica”, disse Barbosa.

Doeu saber, naquele momento, que eu teria que contar para o mundo mais uma crônica de uma morte anunciada. A história daquela senhora era um triste retrato do risco que muitas das mais de 6 milhões de empregadas domésticas no Brasil correm porque continuam indo trabalhar em casas de família em meio à pandemia de Covid-19.

Quando cheguei à porta do hospital já haviam câmeras de reportagem no local. Outros veículos aguardavam ansiosamente para obter o laudo confirmando que a morte tinha sido em decorrência da Covid-19. Logo percebi que nenhum repórter ali estava à procura da história por trás da estatística. Em um país tão desigual como o Brasil, me assustei ao ver a sociedade normalizar o peso de uma morte como aquela. Era um exemplo certeiro do que é o Brasil: um país onde a vida da maioria importa menos do que a vida de alguns.

Tentei conversar com o Prefeito de Miguel Pereira e com a Secretária Municipal de Saúde para saber mais detalhes sobre aquela senhora, mas ninguém estava disponível para dar entrevista.

Fui então para as ruas conversar com as fontes não-oficiais. Graças a um boato que rolava pela cidade, descobri que “alguém ali no supermercado do centro conhecia a senhora que morreu do vírus.” Foi assim que encontrei a vizinha dela trabalhando em um dos caixas no fundo do mercado. Com o endereço em mãos, fui então conhecer a rua onde a senhora morava nos dias em que não dormia no Leblon.

Encontrei, por acaso, com um primo dela, um carpinteiro de 56 anos, voltando do enterro. Ele me contou que apenas 7 pessoas tinham conseguido comparecer. A maior parte dos familiares teve contato com ela e precisou viver o luto em casa, em quarentena.

Aos poucos, fui montando um porta-retrato daquela família. Unidos, a senhora e quase todos os seus 8 irmãos moraram a vida inteira na mesma rua. Aquilo me lembrou a família do meu pai. A mãe dele vinha de uma família com 10 irmãos e ela tinha sido a única de cinco mulheres a cursar a faculdade.

A senhora que faleceu tinha uma história única e um nome, mas poderia ser qualquer uma das 6 milhões de brasileiras que vivem do trabalho doméstico. Por isso, e principalmente para preservar a sua família que já estava sofrendo discriminação na cidade por ter tido contato com o vírus, quis omitir o seu nome e preservar a sua identidade.

Por telefone, a irmã da senhora que faleceu me disse: “Ela era uma mulher trabalhadora. Muito querida por todos e uma boa mãe”. Apesar da tristeza, não escondia o sentimento de compaixão pela empregadora para quem a irmã trabalhou durante 20 anos. “A patroa também está sofrendo muito com a morte dela,” disse.

 
Mariana Simões é repórter da Agência Pública. 
Rolou na Pública
MPT analisa morte no Rio. A reportagem relatada pela repórter Mariana Simões no texto acima teve 20 republicações, além de ter sido mencionada em reportagem do El País espanhol. A morte foi comunicada ao Ministério Público do Trabalho, que está analisando se vai abrir inquérito para apurar o caso.   

Proibição de cultos. Depois da publicação de nossa reportagem sobre as igrejas evangélicas, a Justiça do estado de São Paulo passou a proibir missas e cultos. A matéria também foi citada em uma reportagem que diz que o pastor RR Soares está pedindo doações por transferência bancária. 

Acesso a água potável. A co-deputada estadual Claudia Visoni enviou um pedido de providências ao Procurador Geral de Justiça de São Paulo pedindo medidas urgentes para a Sabesp promover acesso a água potável 24h para a população. Ela usou nossa reportagem sobre os moradores de favelas e cortiços para embasar o pedido. Líderes de favelas de São Paulo também cobraram a ampliação do abastecimento de água.
Novas dos Aliados
 
Entrevista do Mês. O que você quer saber sobre o coronavírus? Nossa entrevista com a médica Margareth Dalcolmo, da Fiocruz, foi remarcada para amanhã. Ou seja, você tem mais algumas horas pra mandar sua pergunta! É só responder a esse email. As perguntas serão agrupadas e selecionadas pelos nossos editores. 
"Um mundo que luta contra um inimigo que não tem maldade não tardará a encontrar o vilão perfeito"
Por Leila Guerriero

 
Moro em Buenos Aires. Meus amigos me escrevem de Barcelona, ​​Madri, Santiago do Chile. Algumas mensagens parecem histórias de guerra. Outras estão cheias de ira, de comparações entre o número de mortes causadas pelo coronavírus com as produzidas pela gripe, malária – mas são mensagens escritas com cautela, em voz baixa, porque, atualmente, não ter medo te torna perigoso.

A epidemia de pânico conseguiu o que já estávamos conseguindo antes, só que sem vírus: o desaparecimento dos corpos da esfera pública. A virtualidade e a hiperconexão estavam a caminho de transformar a presença física em algo desnecessário. Agora, isso se tornou real: os corpos são perigosos e estão começando a ficar supérfluos: quantos empresários decidirão que, finalmente, isso mostra que não é necessário ter todos os sujeitos sentados em seus escritórios, que eles podem abrir mão de alguns tantos?

Em quase todas as ficções pós-apocalípticas, o fato que cria o caos – o vírus, a hecatombe climática – é menos importante do que os distorcidos instintos humanos que o fato desencadeia: em The Walking Dead, os zumbis são menos aterrorizantes do que os mecanismos cruéis que os seres humanos adotam para sobreviver.

Até dias atrás, falávamos do avanço da direita, da xenofobia, do nacionalismo. Agora, os cidadãos clamam a seus governos para impedi-los de viajar, para vigiá-los, para fechar fronteiras e expulsar os estrangeiros. O confinamento é vivido como alívio. A denúncia, como um dever. Que significados terão, em um futuro próximo, palavras como "pátria" ou "estrangeiro"?

O vírus não é perverso. Ele está vivo, mas é indiferente: ele não deseja, não sonha, não quer nada. Um mundo que luta contra um inimigo que não tem maldade não tardará a encontrar o vilão perfeito. É possível que surja então, como uma terrível consequência, um herói fenomenal. E vocês já sabem o que Bertolt Brecht disse sobre os heróis: infeliz o país que precisa deles. Vamos nos cuidar muito. Mas acima de tudo, de nós mesmos.  
Ainda não é aliado? Clica aqui! :)

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