Balanço de um momento histórico
Disponibilizado desde 2018 pelo seu diretor no Youtube em versão restaurada de alta definição, 'Linha de Montagem' é um clássico de um dos raros períodos em que o documentário brasileiro caminhou a par e passo com o movimento operário
06/04/2020 17:12
Créditos da foto: (Reprodução/Youtube)
Em fins dos anos 1970, João Batista de Andrade (Greve!), Leon Hirszman (ABC da Greve), a dupla Roberto Gervitz-Sérgio Toledo (Braços Cruzados, Máquinas Paradas) e Renato Tapajós foram os mais notórios entre os documentaristas que acompanharam as lutas do ABC paulista. De todos, Tapajós foi o mais íntimo do movimento. Já em 1965 ele havia filmado uma greve universitária, o curta Universidade em Crise. Fez luta armada, passou cinco anos na prisão, fez autocrítica e se aproximou do movimento operário. Começou a fazer filmes para o sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo. A própria diretoria sindical o chamou para registrar a greve de 1979 e as difíceis negociações com os patrões (Greve de Março). Havia aí um duplo objetivo: devolver aos trabalhadores sua imagem, contribuindo para a organização e a mobilização, e levar informação sobre o movimento para fora do ABC. O período 1978-1980 também está enfocado como painel em A Luta do Povo (1980)..
Linha de Montagem, porém, é um filme que nasce fora do calor da luta. Embora contenha material de vários momentos – mais uma espécie de balanço filmado em julho de 1981 –, foi editado em 1982, a partir de 40 horas de material e da consciência de que o país acabara de viver um momento histórico. O filme começa e termina com duas profecias: Chico Buarque cantando “o que será que se veja (no futuro) passa por lá” e o próprio Lula antevendo “vamos colher os frutos, quem sabe, dentro de alguns anos”. Havia, mais que qualquer outra coisa, a concsciência de que nem tudo fora já conquistado, mas se formara um lastro de organização e representação dos trabalhadores, com a criação da CUT e do PT, a valorização das reivindicações operárias etc.
Lula e outros sindicalistas fazem avaliações, autocríticas, tanto no calor da hora quanto depois, mais distanciados. Nas cenas de uma assembléia em maio de 1979, quando Lula convence a massa a não fazer greve inoportuna, mas aprovar acordo ruim e lutar pela volta da diretoria afastada, Linha de Montagem se afirma como o grande terstemunho fílmico do nascimento de uma liderança. Um filme literalmente histórico.
A equipe de craques tinha Adrian Cooper, Aloysio Raulino, Claudio Kahns, Roberto Gervitz, Zetas Malzoni, Sergio Toledo. A filmagem era “quente”, cämera na mão, do jeito que desse. No entanto, há uma distância gigantesca entre o cineasta que milita (este é o caso) e o militante que filma. Linha de Montagem tem uma dinâmica cinematográfica exuberante, seja na ágil captação de detalhes (como o piqueteiro que devolve o cassetete a um policial), seja na decupagem dramática das discussões, que antecipa o Ken Loach dos anos 1990. Nota-se mesmo a inspiração dos padrões de filmagem de futebol na maneira como são montadas as cenas das assembléias, no jogo entre quem fala e quem ouve, nas expressões de garra, euforia ou cansaço. Um dos melhores momentos do doc é a seqüência da distribução do jornal do sindicato ao som de Djalma cantando Rosa de Pixinguinha diante de uma platéia de companheiros.
Este é um filme sobre a massa, um pouco na tradição de Eisenstein. A figura do líder se reparte entre Lula e Djalma da Silva Bom, o guerreiro da porta de fábrica, complemento perfeito da ação do outro.
O movimento operário do ABC foi amplamente coberto pela mídia da época, como se pode ver pela constante presença de cinegrafistas e fotógrafos. O diferencial de Linha de Montagem é a identificação entre equipe e operários. Como em todo doc feito a quente, as cenas do movimento ficam entre a observação não-interferente e a catalisação através da câmera. A simples presença da equipe se faz notar, seja inibindo a ação policial, seja estimulando a manifestação dos operários. Em muitos casos, os piqueteiros pediam a Tapajós para filmar porque aquilo ajudava a mantê-los imunes à repressão visível. Em dado momento, aliás, vemos que a repressão se volta contra a própria equipe.
Linha de Montagem representa, enfim, um expoente do doc engajado brasileiro, tanto melhor porque trabalha não na louvação ou na doutrinação, mas na exposição de um marco histórico e na auto-análise de seus protagonistas.
Veja o filme:
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