Como matar com palavras
Breve reflexão sobre o potencial destruidor da linguagem bolsonarista
10/04/2020 16:37
“Mas ele fala da boca para fora”. Todos nós, em algum momento desde que Jair Bolsonaro iniciou sua ascensão que o levaria à presidência da República, escutou essa frase típica de um certo bolsonarismo envergonhado. “Da boca para fora”, segundo essas pessoas, o atual presidente da República disse que o erro da ditadura foi ter matado pouco; “da boca para fora”, ele disse que não estuprava uma deputada porque ela não merecia; “da boca para fora”, ele não cessou de homenagear e glorificar um torturador que supliciava suas presas colocando ratos em suas vaginas; ou que, após essas mesmas sessões de tortura, trazia os filhos das vítimas, ainda crianças, para olhar os pais desfigurados. Hoje, diante do negacionismo e da irresponsabilidade do presidente em meio à pandemia do Covid-19, panelas ressoam nos bairros nobres e de classe média de várias cidades do país em meio a gritos de “genocida” e “assassino”. Lembremos que Bolsonaro não mudou um milímetro, desde a época que era um mau militar indisciplinado (Geisel que o diga), passando pelos 28 anos em que ocupou a última fileira do baixo clero na câmara dos deputados, até chegar à presidência da República. Seu comportamento em meio à crise do Covid-19 pede uma breve reflexão sobre o papel da linguagem na política e, mais especificamente, sobre as graves consequências da linguagem funesta de Bolsonaro.
A linguagem tem uma função essencial nos processos de subjetivação: é através dela que nos relacionamos com o outro e nos constituímos como sujeitos. Ela não poderia ter um papel menos importante no domínio mais específico da política, sobretudo se entendemos esta última como o trabalho de interação, troca, deliberação dos membros de uma comunidade no espaço público com vistas à consecução de certos objetivos ou à resolução de conflitos que de outro modo descambariam em violência física. Embora desde a Antiguidade se tenha pensado e escrito sobre o papel da linguagem na política, essa relação nem sempre foi apreendida em sua justa dimensão fora do âmbito dos especialistas. Uma razão possível para isso é a identificação da política com a ação, sendo esta última equivocadamente dissociada da sua dimensão discursiva. Mas o que é importante sublinhar é que a linguagem é indissociável da política tanto para o bem quanto para o mal. Ou seja, ela é incontornável para o bom funcionamento de regimes tanto democráticos quanto autoritários.
Como Pierre Rosanvallon afirmou numa obra recente, Le Bon Gouvernement [“O bom governo”], não basta vivermos num regime democrático para sermos governados democraticamente. Essa afirmação à primeira vista paradoxal significa que podemos viver sob um regime de competição aberta pelo exercício do poder através de eleições regulares e que garanta as liberdades individuais, mas cuja ação governamental não é democrática. Uma ação governamental democrática poderia ser gradualmente aperfeiçoada e consolidada de duas formas. A primeira seria através do fortalecimentos dos pilares que regem a relação entre governantes e governados: a legibilidade [das ações governamentais], a responsabilidade [dos governantes e a possibilidade de responsabiliza-los, ou seja, o princípio da accountability] e a reatividade [dos governantes no que se refere às demandas e expectativas dos cidadãos, ou seja, princípio de responsiveness]. A segunda seria a determinação das qualidades requeridas para o bom governante: a integridade e a franqueza [tradução bastante imperfeita da expressão “parler vrai”, utilizada pelo autor]. Mediante a consolidação desses cinco pilares da ação governamental democrática, seria possível portanto passar da atual “democracia de autorização” – que se limita a uma permissão dada pelo governado ao governante através da eleição – para uma “democracia de exercício” – que consistiria num maior controle das ações do Executivo pela sociedade.
Um dos pilares, portanto, de um “bom governo”, é o parler vrai. Falar em franqueza na política é menos ingênuo do que pode parecer. Afinal de contas, como lembra Rosanvallon, “governar é falar. Falar para se explicar, para dar um direcionamento, desenhar um horizonte, prestar conta de suas ações. Falar, pois a linguagem é organizadora do mundo humano”. Nesse sentido, uma política democrática implica colocar em palavras o que as pessoas vivem, tornar a ação pública legível, encontrar palavras que exprimem, num determinado momento, o sentido de um sacrifício ou de um orgulho coletivo. É o “falar verdadeiro”, para traduzir a expressão rosanvalloniana ao pé da letra, que faz aumentar o controle dos cidadãos sobre sua existência e lhes permite estabelecer uma relação positiva com a vida política. Em contrapartida, a falta de uma linguagem “verdadeira” – ou desprovida de sentido ou intencionalmente inacessível para a maioria das pessoas – significa distanciamento dos cidadãos das questões envolvendo a coletividade. A linguagem, portanto, é o que estabelece o elo de confiança entre o governante e os governados e, consequentemente, dos governantes nas instituições políticas do seu país.
Contudo, a mesma linguagem criadora de elos de confiança, vetor de intercompreensão e meio de exploração da realidade, cria as condições do autoritarismo e de sua consolidação. Os totalitarismos do século XX o demonstraram perfeitamente. Não foi só através do terror que esses regimes puderam criar um mundo fictício; foi também através da linguagem. As pessoas, por terem se encontrado desnorteadas, como resultado do isolamento e da quebra das relações sociais – rompendo assim as discussões e trocas de ideias –, perderam a conexão com a realidade e preferiram se refugiar no universo fictício e coerente da ideologia.
Vickor Kemplerer analisou magistralmente esse trabalho da linguagem num contexto totalitário. Filólogo especialista da literatura francesa do século XVIII, ele escapou por muito pouco da deportação durante a Segunda Guerra Mundial – certamente graças ao seu casamento com uma mulher categorizada como “ariana”. Após a guerra, Kemplerer publicou um trabalho notável, LTI. A Linguagem do Terceiro Reich [LTI sendo as iniciais de Lingua Tertii Imperii], a partir de um diário que ele manteve desde antes da chegada de Hitler ao poder até 1945. Diariamente, ele fazia anotações sobre o que ele observava com relação às palavras: germanização dos nomes dos lugares no espaço público, nomes dados ou impostos aos recém-nascidos, aumento do uso de siglas e abreviações. Ele observou assim que certas palavras passaram a ser usadas com mais frequência (espontâneo, instinto, fanático e fanatismo, cegueira, eterno, total, entre outras); e que neologismos foram criados (“sub-humanidade”, “desjudaizar”, “arianizar”, “tornar mais nórdico”). Mas a LTI, ele observou, criou poucas palavras: ela na verdade se apropriou da linguagem existente mudando-lhe o sentido. Por exemplo, a palavra “sistema” passou a fazer referência ao parlamentarismo de Weimar; já as palavras fanático ou fanatismo, até então pejorativas, passaram a designar qualidades da coragem, da vontade e da dedicação. Kemplerer notava assim que Goebbels, Hitler, Göring e Rosenberg haviam universalizado a língua do partido, a ponto de ela ser utilizada mesmo nos lares judeus.
Mas, como é frequente, foi a literatura que melhor ilustrou a relação linguagem-autoritarismo. No clássico 1984, de George Orwell, uma das medidas do regime totalitário do Grande Irmão, em Oceânia, foi literalmente a criação de uma nova língua, a Novafala. Não se tratava apenas de criar novas palavras, mas de reduzi-las progressivamente, pois acreditava-se que suprimindo-se as palavras do vocabulário, era o próprio pensamento que se estava limitando. Num determinado trecho do romance, o personagem Winston Smith encontra-se na cantina do seu ministério com um colega encarregado da elaboração do dicionário da Novafala, Syme, que lhe explica o seu trabalho: “Tenho a impressão de que você acha que nossa principal missão é inventar palavras novas. Nada disso! Estamos destruindo palavras”. E continua a discorrer para Winston de forma entusiasta: “[Você] Não compreende a beleza da destruição de palavras [...] Você não vê que a verdadeira finalidade da Novafala é estreitar o âmbito do pensamento? No fim teremos tornado o pensamento-crime literalmente impossível, já que não haverá palavras para expressá-lo [...] Menos e menos palavras a cada ano que passa, e a consciência com um alcance cada vez menor [...] A Revolução estará completa quando a linguagem for perfeita”. A condição para o remate da “revolução” era uma “linguagem perfeita”.
Creio que esses exemplos são suficientes (e há diversos outros na literatura) para ilustrar a centralidade da linguagem na política. No Brasil, ao longo do último ano, analistas debateram o poder destrutivo das falas de Bolsonaro, especificamente se elas tinham ou não o potencial de enfraquecer a democracia. De um lado, estão os “profetas da democracia risco-zero” (como os chamou Conrado Hübner Mendes), para quem nada pode abalar a “solidez” de nossas instituições democráticas; do outro, entre os quais me incluo, estão aqueles que temem que o risco de quebra da nossa democracia nunca deixou de existir e que o ataque diário às instituições democráticas, ainda que permaneçam no nível retórico, tem sim um potencial destruidor. Isso porque, como explicou John Langshaw Austin em How to Do Things With Words, quando falamos, não estamos apenas descrevendo ou “constatando” algo, mas estamos também realizando um ato. Se cada pessoa realiza uma ação através da fala, ação de força variável em função das circunstâncias, é forçoso constatar que um ato ilocucionário realizado por alguém que ocupa uma posição de muito poder como a presidência de um país, terá mais força.
O que mudou com a pandemia do Covid-19 foi que o potencial destruidor das falas do presidente não atinge unicamente as instituições democráticas, mas a vida das pessoas de todas as classes sociais de forma direta. O que se escancarou para o “andar de cima” foi algo que já é há muito tempo uma realidade para as minorias e setores mais vulneráveis da população: que é possível matar com palavras.
Diogo Cunha é doutor em história pela Universidade Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) e professor adjunto de Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
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