Na França, a ineficiência frente ao coronavírus aprofundou a decepção com o governo por Anne Vigna
Chegar à França em tempos de coronavírus parecia ser um "privilégio": atravessar Paris sem tráfego, sem contaminação e sem barulho foi uma experiência inesquecível. O confinamento é especialmente rigoroso e deixa as cidades vazias, limpas e lindas.
Para fazer compras ou praticar esportes, você pode sair às ruas por apenas uma hora e dentro de um raio de um quilômetro de sua casa. É preciso preencher uma autorização prévia com hora e local de residência, e apresentá-la em caso de controle policial. Para trabalhar, você também deve levar consigo o tempo todo um certificado escrito.
Para o povo francês, que tem uma reputação de não obedecer facilmente às autoridades, o confinamento é um grande desafio. Os editorialistas diziam que "os franceses não são como os chineses, é impossível mantê-los em casa por um mês". Mas as medidas foram estritamente respeitadas, prova de que as pessoas entenderam muito bem o perigo do vírus.O que não mudou na França é o profundo desgaste do atual governo. Com mais de 20 mil mortes, a crise do coronavírus está agravando a crise política que a França já estava vivendo antes da epidemia.Desde dezembro de 2018, o Presidente Macron enfrenta uma rebelião popular inédita com os “coletes amarelos”, que fazem manifestações todo fim de semana em muitas cidades do país. Eles foram seguidos por médicos, enfermeiros e funcionários de hospitais em geral, que há mais de um ano pedem um orçamento real para hospitais públicos. A greve nos hospitais foi particularmente longa, mas foi ignorada pelo governo. Por fim, a reforma da aposentadoria (que ainda não foi votada e tem poucas chances de ser aprovada agora) causou uma enorme greve geral, paralisando escolas, transporte e toda a administração pública em dezembro e janeiro passados.
A decisão de confinar a população pausou os protestos nas ruas. Mas a decepção com o poder político não parou de crescer à medida em que foi ficando claro o fracasso na administração da crise. Os meios de comunicação, e em particular os independentes, tiveram um papel decisivo nisso.No início da crise, o governo garantiu que as máscaras eram inúteis para a população e que, por esse motivo, não havia necessidade de usá-las. Em uma longa investigação jornalística, o site independente de jornalismo Mediapart comprovou que não havia estoque de máscaras. Faltavam remédios e até roupas de proteção para os profissionais da saúde. A jornalista Florence Aubenas do jornal Le Monde ficou os primeiros 11 dias de confinamento em um lar de idosos (EPHAD), mostrando com grande sensibilidade as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores desprotegidos. Por ser uma das melhores jornalistas do país, seu artigo teve um grande impacto.Os jornalistas também revelaram que os dados oficiais não incluíam mortes em casas de repouso, o que forçou o Ministério da Saúde a mudar os números. De repente, a estimativa macabra subiu mais de 7.000 mortos.Depois de dizer o contrário, o governo teve que reconhecer que não havia ordenado a realização de testes para o coronavírus. Somente pessoas em condições críticas poderiam saber com certeza se tinham ou não a Covid-19. Testes em massa na população, como os realizados pela Coréia do Sul e Hong Kong, eram impossíveis na França. Distribuir máscaras a todos para impedir a propagação do vírus também não era possível.Enquanto isso, a Alemanha (com a qual a França é sempre comparada devido à "rivalidade histórica") estava muito melhor preparada. Em nenhum momento a capacidade hospitalar ficou saturada e os serviços de saúde até receberam pacientes de outros países, entre outros da própria França. "Apenas" 4.103 alemães haviam morrido de Covid-19 em 17 de abril, quando o ministro da saúde alemão considerou que a epidemia estava sob controle para os 83 milhões de habitantes.Na França, onde há 65 milhões de habitantes e 20 mil mortos pela doença, não se espera o controle do vírus antes de 10 de maio, ou seja, ainda faltam 20 dias.A Alemanha, como a Coréia do Sul, usou o método de testagem em massa para isolar rapidamente as pessoas doentes. Parece ser, de fato, o método mais eficaz a ser reproduzido por outros países que ainda não estão enfrentando o auge da epidemia, como o Brasil. O uso de máscaras e o confinamento rigoroso também fazem parte do êxito alemão. Assim como o fato de ter um sistema de saúde público de qualidade. O resultado é que a Alemanha projeta uma recessão de 4,2%, enquanto ela será de pelo menos 8% na França.Após uma política liberal no âmbito econômico, o presidente Macron é forçado a tomar uma atitude mais social – começando com a melhoria dos hospitais públicos – se ele não quiser perder mais apoio popular. Os franceses descobriram de forma dolorosa que seu sistema de saúde público, ao qual são muito apegados, está em péssimo estado. Era isso que os profissionais da saúde haviam gritado nas ruas, em vão.
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Anne Vigna é jornalista colaboradora da Agência Pública. |
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