quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Uma bússola para quem vai a campo fazer reportagem

 


Quando fazemos reportagens sobre questões agrárias nem sempre falamos sobre os riscos envolvidos nesse tipo de cobertura. Após oito anos investigando conflitos de terra na Amazônia e a luta dos povos indígenas, ribeirinhos e agricultores familiares por seu território, a equipe da Pública aprendeu lições valiosas sobre como manter nossa equipe segura em campo e não agravar as situações de risco que nossas fontes já enfrentam. Agora, estamos compartilhando esses aprendizados com o público na cartilha de segurança no campo e digital, na esperança de que ela ofereça orientações e dicas para quem trabalha com esse tema tão importante. 

Na newsletter de hoje, o repórter Ciro Barros conta um pouco sobre sua primeira viagem à Amazônia para cobrir conflitos agrários, e explica por que as recomendações da cartilha são essenciais para a segurança do repórter, da fonte e da informação. 

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Um abraço, 

Giulia Afiune
Editora de Audiências
Uma bússola para quem vai a campo fazer reportagem
por Ciro Barros

Eu queria ter em mãos a Cartilha de Segurança Digital e Atuação no Campo, lançada neste mês pela Pública, quando fui fazer minha primeira reportagem em campo na Amazônia. A primeira viagem que fiz para cobrir conflitos agrários no maior bioma do país foi quase um curso intensivo de pós-graduação em Jornalismo. Além das dificuldades habituais da cobertura de Direitos Humanos, havia as grandes distâncias percorridas em estradas difíceis, os longos períodos em que não há possibilidade alguma de comunicação com a redação – quando se está a horas (ou dias) de distância de qualquer cidade –, e as regiões de conflito em si, onde frequentemente se acumulam cadáveres e a impunidade. 

Os repórteres que residem em regiões de conflitos e atuam neste tipo de cobertura na Amazônia vão se habituando a transitar por esse cenário, onde também arriscam suas vidas, já que as taxas de mortalidade de jornalistas são frequentemente mais altas nas regiões afastadas dos grandes centros urbanos. Para um moleque urbanóide como eu era em 2016, a experiência foi um grande choque.

Fomos cobrir um conflito agrário no complexo de fazendas Divino Pai Eterno, no interior do Pará, que já durava oito anos. O conflito era classificado pelo antigo Ouvidor Agrário Nacional como um dos piores do país. Desde quando os movimentos sem-terra começaram a ocupar a fazenda, situada em uma área da União, até o momento em que chegamos lá, eram seis as mortes de camponeses no local. A mais recente delas, do líder sem-terra Ronair José de Lima, havia ocorrido alguns dias antes de chegarmos. O clima ainda era de luto na fazenda. Nos levaram para visitar a tocaia montada por pistoleiros para ferir Ronair de morte. Todos os camponeses pediram para falar sem serem identificados. Contaram histórias de torturas, assassinatos, ataques de pistoleiros. Mesmo servidores públicos e autoridades tiveram medo de colocar seus nomes na reportagem. Entre os fazendeiros, alguns possuíam contra si mandados de prisão em aberto, outros, um histórico de crimes graves.

Para chegar na ocupação, eu e meu parceiro de viagens, José Cícero da Silva, viajamos um dia inteiro por uma estrada de terra em péssimas condições e repleta de caminhões de gado disparando em alta velocidade. Tivemos o apoio de fontes que nos guiaram até lá, mediaram contatos com lideranças. Havia uma divisão na ocupação, o que nos impedia de sair livremente perguntando qualquer coisa a qualquer um, já que sabidamente havia olheiros ali. Mesmo exausto após horas e horas de reportagem num sol escaldante, lembro de não ter dormido quase nada na ocupação. E lembro como eu desabei de chorar quando voltamos à cidade mais próxima. Fiquei tocado pela vulnerabilidade em que aquelas pessoas estavam e aquele sentimento me marcou muito, me acompanhou por um bom tempo. Por isso, reconheço o mérito de quem vive na Amazônia e convive com essas histórias diariamente.

Eu sempre fui avesso à ideia de uma cartilha para atuação em campo. Achava que os cuidados a serem tomados dependiam da avaliação de cada repórter, já que cada pauta é uma pauta, os riscos variam muito, há contextos muito diferentes. Ver o resultado da cartilha me fez repensar essa ideia. Ali estão reunidos alguns princípios de atuação básicos para preparar uma viagem de campo, como criar um plano de comunicação com a redação ou a elaboração de um plano detalhado de viagem, por exemplo. São pontos colhidos da vivência de diferentes repórteres com experiência significativa na área. A cartilha também recebeu o reforço da equipe de segurança digital, que atentou bastante para aspectos técnicos muito úteis para proteção das fontes, dos repórteres e do próprio material.

É claro que cobertura em campo não é uma ciência exata, há sempre as particularidades de cada história e as exigências específicas que elas trazem. A cartilha não tem pretensão alguma de ser receita de bolo. Mas penso que uma parte importante do estresse vivido na minha primeira viagem à Amazônia veio da minha inexperiência até então e que mesmo algumas questões básicas se tornavam muito grandes por falta de uma referência mais formalizada. 

Espero que a cartilha sirva para amenizar a ansiedade dos futuros repórteres que enfrentem coberturas em campo na Amazônia. E que sirva também para incutir na cabeça deles a ideia de que, sem uma segurança mínima (para o repórter, para a fonte, para a informação), não tem pauta.

Ciro Barros é repórter da Pública. 
Seu plano de saúde está distribuindo cloroquina ou ivermectina? Conte essa história e nos ajude a investigar. 

Rolou na Pública

Deu samba. Já falamos bastante do Canal Reload por aqui, mas não resistimos e vamos falar mais uma vez. Ontem saiu por lá um lyric video – um videoclipe que inclui a letra da música – baseado em uma de nossas reportagens que ficou imperdível. A história de Tiago Silva, filho não reconhecido pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Jorge Mussi, virou um samba na releitura do Reload. Assista aqui.  
 

O mundo de olho no Pantanal. Nossa reportagem sobre os incêndios em terras indígenas no Pantanal acaba de ser publicada em inglês, na Mongabay. Também saiu no espanhol El Diário e no chileno Interferencia. A reportagem foi referência para matérias publicadas nos Estados Unidos e na Itália.

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