quarta-feira, 21 de abril de 2021

Até quando certos sobrenomes ficarão intocáveis?

 



Na semana passada, uma reportagem investigativa da Pública rompeu um silêncio de décadas. Revelamos que o fundador das Casas Bahia, Samuel Klein, é acusado de ter praticado violência e exploração sexual de crianças e adolescentes durante anos em suas propriedades e na própria sede da empresa (leia aqui). Além do trabalho rigoroso e sensível de seis repórteres, a publicação envolveu também grande parte da equipe da Pública, do design do site às fotografias e à divulgação. 

Hoje, o repórter Ciro Barros, um dos autores da reportagem, fala sobre como o poder e a influência são capazes de manter violações como essas em segredo, ainda que elas aconteçam em plena luz do dia. 

O que você achou da reportagem sobre as acusações de crimes sexuais contra o fundador das Casas Bahia? Participe da seção Cartas dos Aliados respondendo este email com seu comentário. 


Um abraço,

Giulia Afiune
Editora de Audiências
Até quando certos sobrenomes ficarão intocáveis? 
por Ciro Barros
 
Durante a apuração da reportagem que revelou as denúncias de crimes sexuais contra Samuel Klein, o fundador das Casas Bahia, muitas entrevistadas nos questionaram: “Por que agora?” “Nós procuramos vocês e vocês não fizeram nada.” “Só agora vocês vão atrás disso?”. As frases tratavam sempre de um interlocutor genérico: “vocês”, que, na boca das denunciantes, éramos nós, a imprensa. Minha primeira sensação foi de desconforto, mas, conforme a apuração avançou, comecei a compreender o porquê daquela desconfiança. 

Algumas mulheres nos mostraram cartões de contato de jornalistas de grandes emissoras com quem haviam conversado no passado. Advogados contaram que já haviam se encontrado com equipes de reportagem, posado para fotografias ao lado de suas clientes e chegado a acompanhar jornalistas ao fórum para buscar processos que fundamentavam as denúncias que seriam publicadas. Outras denunciantes disseram que tentaram emplacar protestos em frente à sede das Casas Bahia. Durante anos, a esperança de chamar a atenção da imprensa não deu em nada. No lugar dela, surgiu entre as fontes o ressentimento e o descrédito em relação ao jornalismo.

Na faculdade, ouvi muito sobre a separação entre as áreas comercial e editorial de um veículo. Aprendi sobre critérios de noticiabilidade: interesse público, a singularidade do fato relatado (o tal do “rabo mordendo o cachorro”), etc. Tudo isto parece não valer para os que ostentam determinados sobrenomes. 

Mesmo agora, após a Agência Pública trazer à tona esse histórico de denúncias, me vi diante de uma situação singular: o estranho caso da reportagem investigativa referendada por renomados jornalistas no Twitter, mas com repercussão tímida nos veículos de maior alcance, que poderiam republicar a matéria da Pública na íntegra, gratuitamente. Quero crer que os ouvidos moucos dos veículos tradicionais tanto agora como no passado não têm relação com as polpudas verbas de publicidade ofertadas pelas empresas ligadas à família Klein. Mas esta é uma crença cada vez mais frágil no meu peito, admito. A despeito do valoroso esforço do chão de fábrica da informação, poucas denúncias dessa magnitude contra grandes anunciantes parecem prosperar redações afora. E este é apenas mais um caso.

Outra crença que se esvai em mim é a da cegueira da Justiça. Dou apenas um exemplo. Samuel Klein teve contra si um inquérito aberto pela Polícia Civil do Guarujá em 2006. A investigação foi aberta após uma denúncia por escrito em que uma adolescente relatava, além de situações de abuso sexual, ameaças a ela e à sua família. Ouvido, o pai da jovem relatou que havia recebido ofertas em dinheiro para abafar o caso. Mulheres que trabalharam para o empresário como caseiras relataram à polícia terem testemunhado e vivido outras situações de abuso sexual. 

Mesmo assim, a polícia do Guarujá foi dócil com Samuel: limitou-se a, durante três anos, enviar cartas precatórias ao empresário e a pessoas ligadas a ele. Meras convocações para ouvi-lo, nunca atendidas. Os documentos continham avisos de que, caso não comparecessem à delegacia, os alvos poderiam ser conduzidos coercitivamente. Não foi o que ocorreu. A pilha de cartas precatórias acumuladas durante anos também não deu em nada. Ou melhor, deu na prescrição do crime do qual o empresário foi acusado. Alguém com outro sobrenome e o mesmo material coletado contra si teria o mesmo tratamento?

Após quatro meses de apuração, a reportagem da Pública se baseou em dezenas de entrevistas e documentos para sustentar acusações que permaneceram ocultas durante décadas. Mas sabemos que a matéria revela só uma parte da história. Há muito o que ser esclarecido ainda, muitas oportunidades da Justiça não mostrar-se caolha. Será apenas coincidência que Saul e Samuel Klein tenham sido objeto de tantas denúncias de crimes sexuais? Quais são os paralelos e a relação entre estas denúncias? Estas são apenas algumas das perguntas que estão no ar. Torço para que o Ministério Público de São Paulo as esclareça na investigação aberta contra Saul – e para que, dessa vez, o sobrenome não pese durante o inquérito. Um resto de ingenuidade no meu peito. Uma ingenuidade necessária.

Para existir Jornalismo e Justiça (grafados assim, com letra maiúscula), é imprescindível instituições que os exerçam. Ou não seremos dignos da coragem das mulheres que ouvimos nesta reportagem sobre Samuel Klein. Elas, que tinham todos os motivos do mundo para engolirem a seco suas dores para administrar os efeitos incontornáveis desses traumas em suas vidas, tiveram o brio de vencer o medo e o ressentimento e contar suas histórias a nossa reportagem. As mais de 30 mulheres que denunciaram Saul tiveram postura semelhante ao procurar o Ministério Público, confiando numa investigação rigorosa e inquestionável. 

E nós? Imprensa, Judiciário, Polícia, Ministério Público, nós seremos dignos dessa postura? Ou vamos engolir, ressentidos, a amarga conclusão de que certos sobrenomes são mesmo intocáveis?
Ciro Barros é repórter da Pública.

Rolou na Pública
 

Rompendo o silêncio. reportagem tema da newsletter de hoje foi republicada por 48 veículos, incluindo El PaísRevista Marie ClaireO Dia e Meia Hora. Além disso, o assunto repercutiu em mais de 30 publicações como NexoRevista ClaudiaEstado de Minas e Poder 360. No site Universa, do UOL,  a investigação foi tema de colunas da nossa editora Andrea Dip, da jornalista Nina Lemos e de Gabriela Souza, advogada das mulheres que acusam Saul Klein. 

Pública contra a desinformação. A Repórteres Sem Fronteiras (RSF) divulgou ontem seu Ranking Mundial de Liberdade de Imprensa. O Brasil caiu 4 posições e ficou em 111º lugar entre 180 países. A RSF aponta que o trabalho da imprensa brasileira ficou especialmente complexo após a eleição de Jair Bolsonaro, cuja marca registrada é atacar jornalistas. A apresentação do relatório cita a cobertura da Pública sobre medicamentos sem eficácia comprovada contra Covid-19 como exemplo de combate à desinformação espalhada pelo presidente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário