domingo, 26 de setembro de 2021

Para mulheres brasileiras, direito básico é privilégio

 

Para mulheres brasileiras, direito básico é privilégio
por Clarissa Levy
 
“A desassistência, infelizmente, é o padrão”. Foram essas palavras que me fizeram não desistir de escrever uma reportagem sobre meninas e mulheres que têm dificuldade de acessar o aborto, mesmo nos casos em que ele é permitido pela lei brasileira. A frase é da ginecologista Helena Paro, que pesquisa o acesso aos direitos reprodutivos no país. Com a voz entristecida, ela me explicou que a maioria das brasileiras não recebem o atendimento apropriado quando buscam interromper uma gravidez fruto de estupro. 

Falta informação sobre abortamento na formação universitária dos profissionais de saúde, faltam serviços capacitados, faltam encontros e seminários para troca de conhecimentos, me disse Paro. Falta ainda a vontade política de tirar do papel e garantir na prática o que a lei e as portarias do Ministério da Saúde determinam: mulheres que sofreram violência sexual têm direito a escuta qualificada, atendimento psicológico, acolhimento médico humanizado e, se quiserem, ao acesso a um aborto legal.

Em 2020, grande parte do país assistiu com perplexidade (ou revolta) o desenrolar do caso de uma menina capixaba de 10 anos que, grávida de seu estuprador, teve o aborto legal negado em seu estado e sofreu uma sequência de traumas. Os dados da criança foram vazados, ela foi exposta nas redes sociais, grupos antiaborto perseguiram-na de sua cidade até a porta de um hospital de Recife onde ela finalmente teve seu direito garantido. Depois, ela precisou mudar de cidade e vive hoje sob sigilo. Tudo porque movimentos ultraconservadores decidiram impedir seu acesso a um direito previsto no Código Civil desde 1940. 

Semanas após a história da menina capixaba tomar as manchetes do país todo, uma adolescente de 14 anos também buscou caminhos para interromper uma gravidez causada por um estupro no interior de Minas Gerais. Em sua pequena cidade, a menina havia sofrido com a falta de assistência no hospital e apelou a uma advogada para tentar garantir seu direito. Segundo a legislação, bastaria que uma vítima de estupro procurasse atendimento de saúde para ter a opção de fazer um aborto. Mas na vida real, o processo não é bem esse. 

Como mostramos na matéria, a adolescente relata ter sofrido pressões de profissionais da assistência social de seu município para seguir com a gestação. Em nenhum momento a menina teria sido informada pelos serviços de saúde e assistência que teria direito de interromper aquela gravidez. “O que chama atenção nesse caso é que a advogada, mesmo sabendo que o pedido judicial não seria necessário, resolveu entrar com uma ação para evitar que a menina sofresse perseguições, com medo de ver a história do Espírito Santo se repetir”, me disse Sandra Barwinski, advogada que prestou assessoria no caso. Mesmo tendo a assessoria jurídica, a adolescente teve seu direito negado pela juíza do caso.

Na reportagem, conto a história de uma menina específica, de um lugar específico. Mas nas entrevistas com médicas, pesquisadoras e advogadas, ouvi relatos de outros casos parecidos. Ao longo da apuração, fui entendendo que a Gabriela da reportagem é exemplo de um padrão que, infelizmente, se multiplica Brasil afora. 

Apesar do direito garantido em lei, o acesso ao aborto legal é ainda um privilégio. Em nosso país, somente 42 serviços de saúde confirmaram que realizam a interrupção de gravidez nos casos previstos pela legislação brasileira, segundo dados do Mapa do Aborto Legal, atualizado em 2020. Na prática, isso significa que todas as mulheres grávidas que estejam correndo risco de vida, tenham sido vítimas de estupro ou tenham um feto anencéfalo – se optarem por interromper a gravidez – precisam encontrar uma maneira de serem atendidas em alguma dessas 42 unidades, localizadas sobretudo nas capitais do Sudeste e Nordeste.  

Para além da oferta insuficiente de serviços, o acesso ao direito encontra outros obstáculos. Como o caso de Gabriela ilustra, nem ela nem a mãe tinham ideia de que o aborto legal existia. E não saber significa muito. Depois de informadas do direito, quando buscaram respaldo na justiça, receberam como resposta mais uma violação. Não desistiram. Conseguiram auxílio do Ministério Público mas, mesmo assim, precisaram pegar dinheiro emprestado e viajar de ônibus às escondidas por sete horas, no meio da pandemia, para chegar até um serviço de saúde que cumprisse as normas técnicas do SUS. Mesmo estando estritamente dentro da lei.

A saga de Gabriela ainda foi marcada por muito medo, como ela me contou. Receio de que militantes antiaborto a impedissem de receber atendimento e medo de sofrer perseguições quando voltasse à sua cidade natal — para citar só dois. Na entrevista, ela conta que precisou pensar em estratégias para não ser “descoberta”. Afinal, a exposição do caso a deixaria em risco, como ocorreu com a menina de 10 anos.  

Enquanto ouvia Gabriela, eu me perguntava o que teria passado pela cabeça (e pelo coração) de uma adolescente que precisou se esconder para exercer um direito. Quando perguntei, Gabriela me disse: “O que eu sentia era dor, aqui dentro, por me forçarem a ficar grávida, mesmo sabendo que eu não queria. Eu não conseguia acreditar que o normal pro povo era que eu ficasse com ele [feto]”. 

O "normal”, citado por Gabriela, no caso, significava a violação de um direito garantido desde 1940. Mas felizmente, no caso da adolescente, o desfecho foi "anormal". Fora da curva. O aborto legal foi garantido graças a uma articulação rápida e sigilosa do Ministério Público, o que inevitavelmente me deixa pensando: quantas outras Gabrielas têm a vida marcada, aqui e agora, pelo padrão da desassistência? Pela violação do direito?  

Não há resposta em números, é claro. Por aqui, seguiremos tentando dar contorno, forma e rosto às mulheres e meninas que têm seus direitos ameaçados.
Clarissa Levy é repórter da Agência Pública

Rolou na Pública
 

Emergência climática. Na última semana, publicamos reportagem que mostra como os indígenas têm usado saberes ancestrais sobre o uso controlado do fogo para evitar queimadas. A reportagem foi republicada pelo site + RO, de Rondônia, e inaugurou nossa cobertura sobre Emergência Climática, que você pode acompanhar neste link.

Madeira e cocaína. Nossa reportagem sobre a relação entre a cocaína e a madeira ilegal na Amazônia foi traduzida para o espanhol e publicada por sites como Animal Político, do México, e Interferencia, do Chile, além da versão em espanhol do Yahoo!

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