Os estragos que uma notícia enganosa pode causar por Matias Maxx É muito satisfatório quando uma reportagem sua é usada para ajudar as pessoas, como aconteceu com a matéria “Decisão do STJ sobre cultivo de maconha medicinal cria empurra-empurra com a Anvisa”, que fiz para a Pública ano passado. Um trecho da matéria foi citado em um parecer da Procuradoria Geral da República que questiona a tal decisão do STJ. Curiosamente, o documento foi assinado pela subprocuradora Luiza Frischeisen, a número um de uma lista tríplice ignorada por Bolsonaro.
Mas vamos do começo: A investigação que publicamos ano passado expôs o imbróglio jurídico decorrente de uma decisão da quinta turma do Superior Tribunal de Justiça, que se baseou em uma notícia com título enganoso para derrubar o Habeas Corpus que permitiria a uma paciente de maconha medicinal cultivar seu próprio remédio – o que já havia sido autorizado em mais de uma centena de casos em outras cortes e instâncias pelo país.
A decisão do STJ teve um efeito bola de neve. De imediato, ela derrubou outros processos que pediam a autorização para cultivo da maconha medicinal em instâncias mais baixas. Além disso, ela gerou alvoroço nos meios canábicos porque foi baseada numa manchete enganosa publicada num blog de assuntos gerais que dava a entender que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já havia regulado o auto-cultivo de maconha e, portanto, o paciente deveria procurar a Anvisa e não o judiciário. Na verdade, a Anvisa havia reconhecido o uso medicinal da cannabis e liberado a importação de remédios à base de um dos princípios ativos da maconha, o CBD. No entanto, o cultivo de maconha para fins medicinais no Brasil segue sem regulação, continua sendo crime e, por isso, só pode ser realizado com autorização judicial. O que existiu, e inclusive estava explicado no trecho da matéria que o STJ anexou aos autos, foi uma proposta de regulação do cultivo, mas que acabou sendo rechaçada pela diretoria da Anvisa com o argumento de que não caberia à agência regular essa prática.
Num contexto onde notícias falsas ajudaram a eleger um presidente, é muito preocupante ver uma alta corte decidindo o destino de uma pessoa a partir de uma informação extraída apenas do título de uma notícia. Após o advogado do caso entrar em contato com o blog, o título da matéria foi trocado, mas o estrago já tinha sido feito, tendo em vista a velocidade e capilaridade com que a matéria havia sido printada e repostada em redes e sites mais interessados em ganhar cliques do que entregar um bom conteúdo. Infelizmente, muitos usuários desses sites nem chegam a ler a matéria inteira. E, maconha no título, é clique na certa.
Nos meus vinte anos de jornalismo, abordei a cultura maconheira e a militância canábica na maioria dos veículos pelos quais passei, incluindo publicações impressas, digitais e audiovisuais de todos os calibres e alcances. Também fundei e editei algumas publicações independentes, uma delas a Revista semSemente, justamente sobre os diversos aspectos desta planta. Nessa jornada, aprendi que, seja pra falar bem ou mal, a folha serrilhada é sucesso de vendas e cliques por onde passa. O reconhecimento do uso medicinal da maconha no Brasil abriu espaço para toda uma nova fauna de sites e perfis em redes sociais especializados no assunto, alguns defendendo exclusivamente o uso terapêutico da maconha, ou "cannabis", como esse grupo gosta de chamar a planta.
Considero esse posicionamento errado e egoísta porque, no meu entendimento, maconha é mato, nasce em qualquer lugar e, como qualquer outro vegetal, deveria poder ser usufruída por todos em seus usos lúdico, terapêutico ou industrial. Seu cultivo deveria ser permitido a todos, seu comércio deveria ser regulado, e todos os crimes não violentos envolvendo a erva deveriam ser imediatamente anistiados. Não faz sentido militar só pelo uso medicinal, pois a vida da criança epiléptica que se beneficia de canabidiol vale o mesmo que a da criança favelada que, em meio à guerra às drogas, vira alvo de um “engano” ou de uma “bala perdida”.
Durante a apuração da matéria, ouvi advogados impactados pela decisão, representantes do blog e o próprio STJ. O contato com este último foi o mais difícil. Depois de ter vários e-mails ignorados, consegui falar com uma assessora de imprensa pelo telefone, que disse que o STJ não emite comentários sobre decisões. Quando eu disse “é que envolve fake news publicada no acórdão", a assessora mudou o tom e prometeu a resposta, que foi publicada na matéria. Antes de ser publicada, a reportagem ainda foi revisada pelo jurídico da Pública, para ter certeza de que nada pudesse ser mal interpretado – um cuidado que, infelizmente, outras publicações sedentas por cliques não têm.
Apoiar o bom jornalismo da Pública é fundamental. Ainda mais no contexto atual, no qual grandes portais de notícias do país incluem no rodapé de suas reportagens conteúdos de publicidade nativa que simulam matérias jornalísticas – aqueles textos caça-clique do tipo "você não vai acreditar como está fulano hoje depois de engordar ou emagrecer quarenta quilos" –, e deputados se submetem a papos de bar com pessoas despreparadas, mas com muita audiência. |
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