quinta-feira, 19 de maio de 2022

Carta Capital

 

Iracema, a virgem dos lábios de mel e dos cabelos negros como a asa da graúna, entregou-se a Martim, guerreiro branco, corajoso e gentil. Amor impossível. Na versão tropical de Romeu e Julieta, os amantes estavam em lados opostos: ele, amigo dos potiguaras, ela, herdeira tabajara. A paixão terminou de forma trágica, mas deixou frutos: Moacir, o Adão “brasileiro”, o primeiro dos miscigenados. A busca da identidade nacional e o romantismo típico do século XIX resultaram na épica, embora datada, descrição de José Alencar, leitura obrigatória nas escolas.

É possível imaginar Iracema: suas descendentes caminham pelas ruas e praias cearenses. Mais difícil é enxergar Martim. Os 1,2 mil portugueses enviados em três naus para colonizar a Terra de Santa Cruz em nada se pareciam com o herói grego de Alencar. Estavam mais próximos das almas que vagueiam perdidas pelo Inferno de Dante: banguelas, bocas tingidas pelo escorbuto, fantasmas famélicos, maltrapilhos, impregnados de maresia. Ainda assim, inspirados pela missão divina que justificava a ganância e a brutalidade. Havia cerca de 5 milhões de indígenas quando a primeira leva desembarcou dos navios, vindas das margens do Tejo. Logo chegariam a segunda, a terceira, a quarta...

Uma análise recente do DNA dos brasileiros conta a história como ela foi, sem a poética: 75% dos genes masculinos têm origem europeia, 14,5% africana e 0,5% indígena. Ao mesmo tempo, a maioria dos genes femininos foi herdada de negras e “iracemas”. Em outras palavras, a virgem dos lábios de mel não se entregou de vontade própria ao guerreiro branco. Foi tomada à força, enquanto seus irmãos eram escravizados e seus pais e avós, assassinados ou mortos pelas doenças trazidas do Velho Mundo. Assim se deu a “pacífica” formação do Brasilo país que, nos ensina o filósofo, antropólogo e historiador do Jardim Botânico, também não é racista.

Quinhentos e vinte dois anos se passaram. E deveríamos nos perguntar se algo de fato mudou. Nas terras ianomamis, adolescentes são vítimas de estupros coletivos perpetrados pelos novos “colonizadores”, grileiros que cercam a reserva como um exército à espera da ordem de invasão. As jovens ianomamis, quando não morrem, engravidam. Pais desconhecidos. Bendito é o fruto do vosso ventre, entoará o pastor missionário, Jesus, emendará a ministra Damares Alves. Casos isolados? Nada.

A violência se espalha, nas terras dos paracanãs e dos pataxós, entre outras. Segundo relatório do Conselho Indigenista Missionário, o cerco aos povos originários aumenta sistematicamente desde 2018, à medida que a eleição de Jair Bolsonaro se desenhava nas pesquisas. “No governo atual, aumentaram os ataques, as invasões, e, consequentemente, os conflitos. O que já existia de exploração ilegal de madeira, de garimpeiros, mineração, triplicou. Temos um discurso de ódio proferido pelo próprio governo federal, que incita as invasões e a violência. Depois que Bolsonaro assumiu, os invasores chegavam e diziam: 'A ordem agora vem de Brasília'. Eles acreditavam que iria ter uma mudança na legislação para legalizar a entrada deles nas Terras Indígenas. E isso veio muito respaldado pelos projetos de lei que tramitam no Congresso”, afirma Sonia Guajajara em uma entrevista contundente à repórter Fabíola Mendonça que integra o conjunto de capa desta edição.

Os ataques a diversas etnias em diferentes áreas demonstram que a ferocidade dos primeiros colonizadores continua incrustrada na alma. A Funai, os militares e o Palácio do Planalto não são apenas coniventes. São cúmplices. O agronegócio sério e globalizado silencia. Em plena luz do dia, a fina flor da ilegalidade e do atraso – garimpeiros, madeireiros, contrabandistas e facções criminosas – intensificam a política de terra arrasada. Até a última árvore, a última pepita, a última queimada, a última gota de sangue, antes que a farra termine. As horas passam devagar para quem sonha com outro País nos centros urbanos. Sonia Guajajara poderia dizer que, para os seus, estão congeladas. Cada minuto é um minuto de medo, tensão e incerteza. No Brasil do B, B de boçal, B de bárbaro, B de Bolsonaro, todo dia é dia de índio... morrer.

Há quem conte os dias, na esperança de que a tragédia brasileira, no campo e na cidade, acabe neste ano. A confiar nas pesquisas, faltam seis meses e meio. Até lá, o apoio de nossos leitores será ainda mais fundamental

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