Se milhões de brasileiros sentiram calafrios no último dia 30 de outubro até a confirmação do resultado da eleição presidencial, o frio também percorreu a espinha de milhões de pessoas fora daqui. Em especial, nas nações democráticas em pé de guerra com forças de extrema direita. Nossa eleição foi seguida minuto a minuto nos gabinetes dos principais líderes globais, que estavam prontos para reconhecer a vitória de Lula, caso ela ocorresse. O papel do Brasil no jogo geopolítico era estratégico e havia um Jair Bolsonaro nos calcanhares do planeta.
Bolsonaro garantiu o reduto perfeito para a ultradireita num mundo traumatizado pelo furacão Donald Trump nos Estados Unidos. A estridência do presidente brasileiro manteve o barulho necessário para normalizar as causas conservadoras e reacionárias a partir de um país continental capaz de influir em outras nações.
Sua derrota nas urnas, porém, derrubou a correia de transmissão que o Brasil representava na engrenagem da extrema direita mundial. As eleições parlamentares nos Estados Unidos, que começaram nesta semana, podem trazer de volta a figura de Trump, potencial candidato à sucessão de Biden em 2024. Mas o silêncio de Bolsonaro diminui, sensivelmente, o eco trumpista.
Sob Jair Bolsonaro, a diplomacia brasileira tornou-se aliada das nações ultraconservadoras, que colocaram, por exemplo, direitos reprodutivos no limbo. O Brasil votou reiteradamente contra resoluções das Organizações das Nações Unidas que abordassem o direito ao aborto em casos extremos, assim como projetos de saúde sexual e reprodutiva que poderiam ajudar a banir práticas arcaicas, como a mutilação genital em países africanos. A cruzada conservadora, fermentada por Damares Alves, então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, tirou o Itamaraty de suas posições históricas em defesa de mais direitos para as mulheres.
Com Lula na presidência, o Brasil deve retomar a tradição diplomática, alinhada ao consenso das nações mais desenvolvidas nesse campo.
Embora questionada por eleitores radicais de Bolsonaro aqui, a vitória do petista foi saudada e legitimada, inclusive, por líderes ultraconservadores de outros países, como a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni e a presidente da Hungria, Katalin Novák. Afinal de contas, sob Lula ou Bolsonaro, o Brasil detém investimentos de multinacionais que repassam seus lucros para os países de origem, independentemente da ideologia.
A aliança de extrema direita global estava bem azeitada até agora para ceifar direitos das mulheres, mas a conexão pela democracia entrou em campo um dia após a vitória de Lula, com os recursos que o mundo capitalista gosta. Alemanha e Noruega, por exemplo, anunciaram a retomada do investimento do Fundo Amazônia, paralisado desde 2019. Os compromissos de Lula com a floresta também foram apontados como fator de interesse de novos investidores internacionais no Brasil.
Enquanto isso, no intento de promover uma campanha de desconfiança sobre o processo eleitoral, o bolsonarismo recorre a alguns bufões estrangeiros que encampem suas teses. Do dia para a noite, o nome Fernando Cerimedo ganhou um espaço nos jornais brasileiros que jamais mereceu na Argentina, seu país de origem. Lá, é um nome sem relevância política, segundo fontes argentinas consultadas pela coluna – apesar de se apresentar como alguém que participou da campanha vitoriosa de Barack Obama em 2008 e 2012. Aqui no Brasil, onde a terra foi bem fertilizada para manipulações da extrema direita, o empresário virou alvo de atenções como o responsável pela live com acusações de fraude nas urnas eletrônicas, que seria comprovada, segundo ele, por um suposto dossiê apócrifo.
A live de Cerimedo foi derrubada no YouTube pelo Tribunal Superior Eleitoral, pois reproduzia mentiras para milhares de pessoas vulneráveis a qualquer informação que reforçasse suas teses conspiracionistas. O argentino, que se encontrou com o deputado Eduardo Bolsonaro na véspera do segundo turno, é dono da empresa Numen Publicidad y Sondeos.
Numa entrevista a um site local, Cerimedo contou abertamente trabalhar com trolls, que teriam sido, inclusive, utilizados na campanha de Bolsonaro em 2018, segundo ele. “Temos inteligência artificial e uma fazenda de trolls. Não dá para perceber que não é uma pessoa. Há contas [perfis] com 30 mil seguidores”, disse ele na conversa publicada três dias antes do segundo turno. De acordo com Cerimedo, o arsenal de trolls foi usado na campanha de 2018 para reverter a percepção negativa que havia de Bolsonaro entre a população LGBTQIA+. “Pelo WhatsApp, começamos a enviar milhares de mensagens de trolls dizendo: 'Eu sou gay. Bolsonaro pode ser um nazi, mas a economia está bem e vamos viver mais seguros'. A partir dessa influência, parte da comunidade gay o apoiou”, relatou.
Apesar de se gabar da sua atuação por Bolsonaro, Cerimedo sonha mesmo é com um movimento de extrema direita em seu país. Porém, não tem o prestígio nem mesmo de Javier Milei, um político comparado a Bolsonaro na Argentina.
Eis a foto do bolsonarismo e da rede global dos ultraconservadores neste momento: a saída de Bolsonaro abala o movimento, mas ele está longe de sair de cena. A vitória dos republicanos nas eleições dos EUA esta semana, que podem alcançar a maioria na Câmara e no Senado, tem a chance de revigorar muitas batalhas reacionárias em breve. Um quadro que empurra os progressistas a dobrarem a aposta, aprendendo com os erros que fizeram o mundo estremecer até o dia 30. Se Bolsonaro vencesse a eleição naquele dia, a chance de fazer valer uma agenda mais inclusiva seria quase nula. Só que ele perdeu. É hora de avançar muitas casas nesse tabuleiro. |
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