quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Se tem gente mentindo nas ruas, tem gente mentindo nas redes

 

Se tem gente mentindo nas ruas, tem gente mentindo nas redes
por Laura Scofield

 
No domingo passado, eu cometi um grande erro. Estava num samba de comemoração dessa espécie de “missa de sétimo dia” da derrota de Jair Bolsonaro (PL) nas urnas, quando uma mensagem mentirosa chegou num grupo de família.

Um tio compartilhou pedidos de golpe e uma foto que supostamente comprovaria a ligação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandovski a um grupo comunista armado que teria lutado contra a ditadura militar. Aquilo fedeu a fake news e fiz uma busca rápida. Em poucos segundos, achei a checagem e compartilhei no grupo. 

Seguiram-se 10 minutos de agonia e ataques contra mim. Desisti, silenciei e arquivei o grupo novamente. Aquela batalha já estava perdida, melhor aceitar.

Se os apoiadores de Bolsonaro aceitassem a última disputa que perderam, tudo seria mais fácil. Mas não. Na volta do samba, me deparei com uns gatos pingados de verde e amarelo pedindo que o atual presidente se negue a entregar o cargo em janeiro como mandou a vontade popular. Provavelmente foram parar ali depois de, como meu tio, receberem vários vídeos, imagens e mensagens falsas que os convenceram de que o STF é comunista, as eleições foram fraudadas e todos comeremos cachorros a partir de janeiro de 2023.

Desde julho, eu e outros repórteres da Agência Pública temos acompanhado e analisado o mundo online para entender de que forma as redes sociais e as mentiras que ali circulam estão moldando a política e o debate público. O Sentinela Eleitoral, projeto que dá nome a essa força-tarefa, não busca apenas desmentir informações falsas ou apontar os principais desinformadores — duas funções importantes —, mas entender de que forma algumas pessoas estão se utilizando de mentiras para manipular outras. 

Nessa última campanha eleitoral, identificamos diversas narrativas falsas sendo construídas pelo bolsonarismo, como aquela que buscava desacreditar as pesquisas eleitorais às vésperas do 1º turno, ou inventar uma relação inexistente entre o PT e o crime organizado assim que se iniciou a segunda parte do pleito. Também descobrimos que os aplicativos Tiktok e Kwai são a origem de 41,3% dos vídeos que circulam em grupos de WhatsApp, muitos deles com desinformação sobre o sistema eleitoral e as Forças Armadas. 

Investigamos a disputa pelo votos dos gamers no metaverso e resumimos as principais correntes mentirosas que pipocaram nas redes durante os finais de semana de votação. Para isso, nos unimos a outros veículos de comunicação independentes, Aos Fatos e Núcleo Jornalismo. Fizemos isso porque acreditamos que a colaboração é muito melhor do que a competição, ainda mais quando o futuro da democracia está em jogo.

Um ponto importante que sempre guiou nossa cobertura é que não se trata apenas de responsabilizar gente desavisada compartilhando nas redes algo que parecia ser verdade, mas não é. Existe um farto investimento financeiro na produção e disseminação dessas mentiras — ou você achava que os vídeos se editavam sozinhos antes de aparecer no seu WhatsApp?

Por vezes, nosso próprio dinheiro — dinheiro público — é usado para produzir ou impulsionar os conteúdos que mais tarde tentarão nos enganar. Descobrimos, por exemplo, que alguns candidatos bolsonaristas usaram verba destinada ao financiamento eleitoral para criar e divulgar vídeos mentirosos, como um que dizia que existe um plano comunista para tomar as mentes das crianças nas igrejas

Também ficamos atentos às vezes em que a lei eleitoral pode ter sido descumprida no ambiente digital, como quando Jair Bolsonaro impulsionou anúncios com vídeos dos atos de 7 de setembro, o que foi proibido pela Justiça Eleitoral para tentar impedir que a máquina pública fosse usada para fazer campanha. O presidente chegou a gastar R$ 4,5 milhões em um só dia em propagandas no YouTube. 

Desde julho, estamos prendendo a respiração e mergulhando no ambiente digital bolsonarista pra entender o papel das fake news na eleição de 2022. Pensávamos que as coisas arrefeceriam, ao menos um pouco, depois do fim do pleito, até porque a transição para o novo governo já se iniciou. Mas as rodovias e cidades se encheram de caminhoneiros e bolsonaristas em atos golpistas incitados por fake news. É por essas e por outras que nosso trabalho continua necessário.

Já mostramos que esses atos vêm sendo articulados desde antes do fim das eleições, ou seja, não são tão espontâneos quanto se pode pensar. Se não ficarmos atentos, é possível que daqui a dias ou semanas vejamos surpresos o resultado da desinformação que hoje se compartilha nas redes. Se tem gente mentindo nas ruas, tem gente mentindo nas redes. Não é possível separar as duas coisas. 

Por isso, continuaremos tentando entender em tempo real quais narrativas mentirosas estão sendo empregadas para poluir e manipular o debate público. Ao que tudo indica, será necessário continuar de Sentinela. 

 
Laura Scofield é repórter da Agência Pública em Brasília

Rolou na Pública
 

Perseguição à esquerda. Militantes de esquerda vivem sob tensão e são alvos do bolsonarismo em Sinop, no coração do agro em Mato Grosso. Em grupos de aplicativos de celular, bolsonaristas inconformados com o resultado das eleições ameaçam criar listas ou até marcar residências de petistas com uma estrela para que não sejam contratados. Um professor foi demitido, e a única vereadora mulher e do PT na cidade foi ameaçada. A reportagem foi republicada no Jornal do Brasil e no Brasil de Fato

Violência nas eleições. Levantamento exclusivo feito pela Pública mostrou que ocorreram pelo menos 324 casos de violência eleitoral durante a campanha de 2022, uma média de quatro casos por dia. Em 40% deles, os agressores eram apoiadores do presidente Bolsonaro. O segundo turno foi expressivamente mais violento. Apenas no dia da votação, registramos 36 casos de violência política, sendo que ao menos dez envolveram o uso de armas de fogo. O levantamento foi republicado no Nexo e no Sul 21 e repercutido em reportagem da revista The New Yorker sobre a ascensão da violência política. 

Indicação ao Prêmio Mosca. A reportagem “MEC de Bolsonaro nega Bolsa Permanência a 6 em cada 10 alunos indígenas e quilombolas”, da repórter Bruna Brunoski, é finalista do 4º Prêmio Livre.jor de Jornalismo-Mosca. O levantamento exclusivo da Pública com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostra que a Bolsa Permanência foi drasticamente reduzida durante o governo Bolsonaro. 

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