A preservação da memória no fortalecimento das lutas dos trabalhadores
[Por Sheila Jacob – jornalista e professora do NPC] Entre os dias 16 e 19 de novembro ocorreu, no Centro do Rio de Janeiro, o 28º Curso Anual do NPC. Realizado no auditório do Sindicato dos Professores do Rio de Janeiro (Sinpro-Rio), o encontro teve como tema geral “Comunicação, política e sindicalismo no Brasil no século XXI”. Cerca de cem pessoas do país inteiro, entre comunicadores e dirigentes sindicais, participaram do evento, que contou com mesas de debate, lançamentos e sorteios de livros, além de um passeio pelo centro histórico da cidade.
A sexta-feira, dia 18 de novembro, foi dedicada à história e à memória da classe trabalhadora. De manhã foi realizada a mesa “A preservação da memória no fortalecimento das lutas dos trabalhadores”. Estiveram presentes os professores Flavia Fernandes; José Sergio Leite Lopes; Pablo Nabarrete Barros; Cecilia Peruzzo; e a jornalista sindical Claudia Costa. Abordando momentos distintos da história do país, eles destacaram a importância construção das memórias de resistência da classe trabalhadora para incentivar as lutas do presente.
A formação da classe trabalhadora brasileira: diversidade e exemplo
A professora Flavia Fernandes, que integra o Observatório da História da Classe Trabalhadora (UFF), começou falando sobre o período de formação da classe trabalhadora, destacando a diversidade presente naquele momento. “Quando pensamos sobre os trabalhadores nesse período, a primeira imagem que nos vem à mente é o operário das fábricas, geralmente um homem branco e sindicalizado. Estudos mais recentes mostram que essa é uma visão incompleta, pois havia trabalhadores e trabalhadoras em outros espaços e ocupações, de perfis variados, diferentes origens, faixa etária e diversidade racial”.
Ela lembrou, nesse momento, a atuação dos trabalhadores livres lado a lado com os escravizados, destacando essa interação na luta abolicionista. “Apesar de nomes mais conhecidos serem de intelectuais, como Joaquim Nabuco e José do Patrocínio, é importante destacar que houve forte participação dos trabalhadores nessa luta, dando um caráter mais popular ao movimento”. Ela citou, como exemplo, a Confederação Abolicionista, grupo que contou com a presença marcante dos trabalhadores tipógrafos. A categoria é considerada a primeira a ter organizado uma greve no país (em 1858), além de ter fundado uma escola noturna e gratuita para que escravizados conseguissem ter acesso às primeiras letras em uma educação popular. “Esse é apenas um exemplo para pensarmos em como várias associações de trabalhadores estiveram ativamente engajadas na campanha abolicionista, o que foi fundamental para a formação de lideranças e construção de experiências de mobilizações que veríamos nas décadas seguintes, como passeatas e comícios”, ressaltou.
MEMOV: preservação da memória no fortalecimento das lutas
O professor José Sergio Leite Lopes, do Museu Nacional/UFRJ, apresentou a experiência recente de construção de um acervo digital da história da classe trabalhadora: o MEMOV – Programa de Memória dos Movimentos Sociais. O projeto surgiu de uma demanda de memória das lutas dos trabalhadores tanto por parte de pesquisadores quanto pelos próprios movimentos sociais, como uma forma de resgatar a “memória subterrânea”, apagada pela História Oficial. “A ideia é aproveitar o rico material de pesquisa que é recolhido e não é utilizado nas teses e dissertações, mas pode servir para outros pesquisadores e interessados no tema”.
Lopes citou duas pesquisas realizadas por ele. Uma delas começou a ser feita em 1972, focada nos operários das usinas de açúcar em Pernambuco. “Nessa época, falava-se muito sobre os trabalhadores rurais, mas escolhi focar nos trabalhadores das fábricas”. A outra está relacionada à preservação da memória dos trabalhadores e trabalhadoras das indústrias têxteis, “em que houve muita importância da força de trabalho feminina”, destacou. Os livros da autoria dele, que tratam desses temas, são “O Vapor do diabo: o trabalho dos operários do açúcar” e “A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés“. Essas e outras obras sobre a diversidade do mundo do trabalho e suas lutas e mobilizações já estão disponíveis no acervo digital MEMOV. São fotografias, filmes, artigos e uma ampla variedade de materiais que contam essa rica história de resistência. O endereço é http://memov.com.br/site
O presente no retrovisor
Reflexões sobre o funcionamento e o papel da memória foram o foco da fala do professor Pablo Nabarrete Bastos, da UFF. Ele lembrou que a memória não trata apenas do passado, mas é como a história se apresenta no presente. “A memória não é algo dado, é um processo contínuo de construção e representação”, destacou, citando alguns exemplos práticos de como, diferente do Brasil, nossos vizinhos latino-americanos resgatam as histórias de resistência da classe trabalhadora. Segundo ele, merecem destaque o cinema argentino, com referência ao longa “Argentina 1985”, que trata dos julgamentos dos militares que praticaram crimes durante a ditadura militar no país; o Museu Espacio Memoria y Derechos Humanos, onde funcionava a Escola Mecânica da Armada (ESMA), um centro clandestino de prisão, tortura e extermínio da ditadura que hoje pode ser visitado como forma de não deixar o horror cair no esquecimento. E, por fim, o Monumento a Juana Azurduy, uma estátua que recupera a história de luta dessa indígena guerreira que lutou pela libertação da América Espanhola. “Todos esses são espaços públicos de representação, que ajudam a classe trabalhadora argentina a construir sua própria memória a partir dessas referências”, observou.
Já trazendo a discussão para o Brasil, ele citou o exemplo prático do Mutirão da Vila Comunitária, em São Bernardo do Campo, que consiste na construção de 50 casas por 50 famílias em um processo de auto-gestão entre 1985 e 1987. Essa história é contada em artigo assinado por ele, a partir de uma pesquisa documental na revista do movimento e entrevistas com participantes. “Esse processo mostrou que o trabalho da comunicação popular e alternativa é fundamental na luta contra-hegemônica, inclusive na construção da memória social e coletiva, onde os trabalhadores vão buscar suas referências de luta para o presente”, concluiu o professor.
Justiça e reparação na relação entre a ditadura e as empresas
A jornalista Claudia Costa, da CSP-Conlutas, ressaltou que o Curso Anual do NPC merece destaque na história e na memória das lutas dos trabalhadores brasileiros. “São quase 30 anos desse importante evento de promoção da formação política de comunicadores e dirigentes sindicais do país inteiro”, lembrou.
A jornalista focou na articulação entre as empresas e a repressão aos trabalhadores durante a ditadura militar. Fez referência ao ano de 2014, quando foi instalada a Comissão Nacional da Verdade. O Grupo de Trabalho 13 reuniu documentos e testemunhos sobre grupos empresariais que perseguiam, demitiam e entregavam trabalhadores ao regime, além de inclui-los em uma “lista suja” que os impedia de conseguir emprego em outros locais. Um dos casos mais famosos, e que resultou em uma ação no Ministério Público Federal, foi o da Volkswagen, que tinha uma sala de tortura dentro da unidade do ABC de São Bernardo. Depois de apurada e comprovada a participação da empresa, foi negociado um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), com pagamento de uma multa. Parte desse valor foi destinado à Unifesp, para dar continuidade à investigação de outras empresas que, conforme mostrou a CNV, também foram cúmplices da ditadura: Petrobras, CSN, Josapar, Itaipu, Paranapanema, Folha de São Paulo, Aracruz, Fiat, Companhia Docas e Cobrasma.
Segundo a jornalista, o resgate dessa história tem importância porque constrói a memória da ditadura a partir da história dos trabalhadores perseguidos, e não de quem apoiava o regime. Outra importância é estabelecer uma relação com o presente. Ela lembrou que o Exército hoje está sendo complacente com os golpistas, “o mesmo Exército que em 1988 invadiu a CSN e assassinou três trabalhadores em uma greve em Volta Redonda”, lembrou. Por fim, defendeu que punir as empresas que colaboraram com a ditadura serve de exemplo e incentivo para a punição daqueles grupos que estão financiando os golpistas de hoje, sem contar a luta contra o sigilo de cem anos do governo Bolsonaro.
Comunicação popular, alternativa e comunitária ontem e hoje
A professora Cicilia Peruzzo trouxe uma reflexão sobre o conceito e as diversas práticas de “comunicação popular, comunitária e alternativa”, ou seja, uma comunicação de resistência, produzida por segmentos organizados da sociedade civil vinculada a lutas sociais mais amplas. “É a comunicação que nasce das bases da sociedade, que é feita pelo movimento dos trabalhadores rurais, dos movimentos de bairro, das igrejas, dos trabalhadores de indústrias”, explica. Sua origem remete à passagem dos anos 70/80, quando houve certa flexibilização da ditadura militar, o que permitiu maior participação e manifestação da sociedade civil. Foram surgindo os espaços de organização e mobilização em movimentos sociais, igrejas e sindicatos, “e a comunicação popular vai surgir nesse contexto, utilizando formas artesanais de expressão”. É uma comunicação herdeira e sucessora da imprensa alternativa criada durante a ditadura, com títulos como “Pif-Paf”, “O Pasquim”, “Opinião”, “Movimento”, “Lampião da Esquina” etc.
Hoje essa comunicação continua sendo produzida, dos meios mais simples aos mais sofisticados. Há ainda o jornal comunitário em formato mais simples, os alto-falantes, os vídeos populares, mas também os portais e os aplicativos na internet. Alguns exemplos atuais citados por ela são a “Sanfoninha da CPT” (2011) e o Jornal do Quilombo (Amapá/Macapá, 2018). Cicilia citou um mapeamento, feito pela Agência Pública, do jornalismo independente que é produzido hoje e pode ser acessado em https://apublica.org/mapa-do-jornalismo/
A pesquisadora destacou, ainda, alguns centros de documentação que preservam a memória dos materiais produzidos por movimentos sociais ao longo da história. Alguns citados por ela foram o Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro (CPV) e o Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP). “A memória da Comunicação Popular, Comunitária e Alternativa é uma demonstração de que a sociedade civil e organizada é capaz de revolucionar o cotidiano de modo a estabelecer bases de um futuro com dignidade para todos e todas. Preservar a memória histórica das lutas populares também serve para o presente, aprofundando reflexões sobre a prática e contribuindo para superar tantos desafios que permanecem na atualidade”, concluiu.
Fonte: Boletim do NPC
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