Miguel do Rosário
É preciso enterrar esta mentira.
A mídia brasileira não defende a liberdade de expressão.
Nem absoluta, nem parcial, nem nenhum tipo de liberdade de expressão.
A única liberdade que a mídia conhece é aquela que lhe interessa
comercialmente.
A mídia brasileira não deu quase nada sobre a sonegação da Rede Globo.
Houve um sinistro pacto de silêncio em torno do assunto, apesar de
envolver 1 bilhão de reais, roubo de processo e lavagem de dinheiro em diversas
off shore no exterior.
A mídia brasileira apoiou o golpe, sustentou a ditadura e se enriqueceu
à margem de um regime totalitário que censurava, matava e prendia quem tinha
coragem de se expressar livremente.
Além disso, a liberdade de expressão não existe num regime de
monopólio.
O sistema de comunicação brasileiro não é democrático e, portanto, não
é livre.
E se não é livre, não existe liberdade de expressão.
O poder de poucas famílias sobre tvs, rádios e jornais, não encontra paralelo
no mundo democrático.
O arcabouço legal, após o fim da lei de imprensa, também não colabora
para a liberdade de expressão.
Ricos e poderosos podem processar judicialmente qualquer um que lhes
incomode. Como não há lei, depende-se da opinião de juízes, que infelizmente
ainda formam, no Brasil, um estamento patrimonialista a serviço da classe
dominante
É o caso, por exemplo, de Ali Kamel, que processa vários blogueiros,
por conta de ninharias.
Ninguém lhe chamou de ladrão. Ninguém ofendeu sua família. Ninguém o
desrespeitou como pessoa.
Houve apenas humor, chiste e, no meu caso, uma crítica política ao
chefe do jornalismo do maior monopólio da América Latina.
Não existe liberdade de expressão nem na própria mídia.
Se alguém elogiar um político do qual a mídia não gosta, é demitido.
Se alguém fizer uma charge crítica ao político que a mídia gosta, é
demitido.
O jornalismo brasileiro encontra-se cada vez mais oprimido por um
patronato sectário.
Não há liberdade nenhuma!
Enquanto todas as profissões liberais se expandem no Brasil (médicos,
advogados, arquitetos, etc), o jornalismo declina.
Os salários são cada vez menores, há cada vez menos empregos. Os
jornalistas se sentem cada vez mais oprimidos nas redações.
Não podem pensar, não podem falar, não podem desenhar, não podem sequer
desabafar nas redes sociais.
Quer dizer, podem desabafar sim, desde que o desabafo seja agradável
aos patrões!
Podem falar o que quiser, desde que toquem conforme a música dos barões
da mídia!
E agora a mídia brasileira, uma mídia monopolista, conservadora,
golpista, astutamente, toma para si a bandeira de Charlie, um jornalzinho
nascido na luta contra os monopólios, contra os conservadores, e que sempre
defendeu, de verdade, a democracia.
No enterro de Charb, seus amigos cantaram a Internacional, a famosa
canção revolucionária, com os punhos erguidos, e Jean-Luc Melechon, uma das
principais lideranças da esquerda francesa, fez o discurso principal.
Melechon foi o candidato a presidente da Frente de Esquerda, nas
eleições de 2012. É um homem público extremamente sério e respeitado pela
esquerda européia.
A esquerda francesa defende a Palestina, defende os imigrantes, defende
todas as minorias, lança candidatos muçulmanos, contra uma direita cada vez
mais racista, cada vez mais reacionária quando o tema é imigração.
A nossa mídia nunca fez um “Globo Repórter” em detalhes sobre o
socialismo francês, que inclui um sistema tributário progressivo, leis sobre a
herança e sobre as grandes fortunas, educação e saúde públicas para todos.
O socialismo francês hoje está em crise inclusive por seus excessos, e
pelos vícios do próprio homem. Por exemplo, há 25 anos, o Estado francês, a
partir de conselhos de psicanalistas, começou uma nova política em relação aos
órfãos. Ao invés de orfanatos, as crianças eram alocadas em famílias que
receberiam auxílio do Estado para criá-las. Resultado: uma quantidade crescente
de famílias que rejeitavam os filhos quando este completavam 18 anos, e o
Estado parava de pagar o auxílio.
Os terroristas do atentado são um exemplo. Eles foram criados por
famílias que recebiam auxílio do Estado, e foram rejeitados em seguida,
ingressando no mundo do crime e, depois, aderindo ao terrorismo.
A mídia brasileira é uma talentosa alquimista. Ela consegue inverter
tudo. No primeiro dia da ditadura, os jornais diziam que a democracia tinha
voltado.
Transformaram a democracia de Jango em ditadura, e a ditadura em
democracia.
E agora transformam um jornalzinho comunista-libertário de Paris em
ícone da sua visão distorcida, monopolista, hipócrita de liberdade de
expressão!
Os chargistas do Globo apenas podem fazer charges que corroborem a
linha reacionária do jornal.
Nenhum chargista do Globo tem ou terá liberdade de expressão para
praticar uma arte livre e irreverente!
Sobretudo se a crítica deriva de uma ideologia socialista, anarquista
ou libertária, como era a dos chargistas do Charlie.
Ao contrário, a mídia demite imediatamente qualquer empregado que tenha
manifestação de livre pensamento, sobretudo se esta liberdade se volta em
defesa da classe trabalhadora.
O controle da narrativa permite à mídia criar um universo paralelo,
para dentro do qual até mesmo a esquerda se vê abduzida.
No afã de ser contra a mídia, muitas vezes fazemos exatamente o jogo
dela.
A mídia, malandramente, pegou o discurso de liberdade de expressão, que
é um discurso vencedor, e passou a defender um Charlie e uma França que sempre
representaram tudo que a nossa mídia não é: socialista e libertária.
No grande jogo da geopolítica mundial, um jogo hoje profundamente
midiatizado, a mídia brasileira quer posar ao lado dos vencedores, mesmo que
estejamos falando de um jornaliznho comunista e libertário de Paris.
No fundo, ela age certo.
A esquerda, neste caso, é que pode ter cometido um erro, ao se deixar
levar por um pensamento binário (a mídia é favor, então sou contra), permitindo
que a mídia brasileira se finja de paladina de valores que ela, a mídia,
historicamente, nunca defendeu: a democracia e a liberdade de expressão.
A mídia brasileira, tal como ela é hoje, se consolidou na ditadura.
Jornalzinhos como Charlie Hebdo, havia de montão no Brasil na década de
60, atendendo a atmosfera da época, profundamente libertária. Todos foram
censurados. Os jornalistas e chargistas só encontraram emprego em dois ou três
jornais do eixo Rio e São Paulo.
Sem concorrentes, sem outros jornais, empresas como Globo e Folha
passaram a dar as cartas na opinião pública brasileira, durante décadas, e sua
influência cresce vertiginosamente após a redemocratização.
Os poucos artistas do texto e da charge que sobreviveram à hecatombe da
ditadura e às terríveis crises econômicas das décadas de 80 e 90, tiveram que
se tornar submissos intérpretes do pensamento patronal.
Em suma, temos que deixar isso bem claro: a mídia brasileira é
exatamente o contrário de tudo que se pode chamar de liberdade de expressão.
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