quarta-feira, 2 de setembro de 2015

O direito contra o impeachment

O direito contra o impeachment

A defesa do impeachment como processo puramente político é falaciosa, pois a política não pode se realizar sem a legitimidade proporcionada pelo direito.


Fabio de Sá e Silva*
Lula Marques
Ao longo das últimas semanas, vários analistas e veículos de mídia insistiram na ideia de que o impeachment é um processo puramente político, bastando que a oposição obtenha maioria nas casas do Congresso para que possa colocar em prática o projeto – ainda hoje alimentado – de derrubar Dilma, reeleita presidenta em outubro passado.
 
A tese ganhou especial força após as manifestações de domingo, dia 16 de agosto, em cuja cobertura a imprensa destacou: (i) a presença de considerável número de pessoas e (ii) a centralidade do pleito por impeachment (embora, não se deve ignorar, os eventos também foram marcados por diversas manifestações de ódio, fantasia, e em alguns casos cinismo, como no apoio a Eduardo Cunha, citado e denunciado na operação Lava Jato).
 
Para muitos, assim, o enredo estava dado. Com tanta gente pedindo a mesma coisa, convicções deveriam ser alteradas, lealdades – como a de Temer – deveriam ser subvertidas, e o processo finalmente poderia encontrar condições para deslanchar.
 
Para alguns desses, aliás, já há até script pronto: Cunha negaria os pedidos que repousam sobre sua mesa, mas, mediante recurso do PSDB, a maioria do plenário transformaria Dilma em ré por crime de responsabilidade, resultando, daí, seu afastamento das funções de presidente.
 
Os poucos que insistiram em perguntar sobre a existência de fundamento jurídico para o processo receberam respostas evasivas, como a de que “há juristas com opinião diferente”. Ao conhecido e criticado parecer de Ives Gandra, agregaram–se ainda duas peças igualmente criativas: parecer de Adilson Dallari, da PUC/SP e entrevista de Janaina Paschoal, da USP. Em meio a essas opiniões, sustentaram os demais, a questão do fundamento jurídico deve ser tida como secundária.
 
Essa posição, no entanto, é duplamente falaciosa.
 
Primeiro porque no direito, que não é uma ciência, muito menos exata, sempre haverá alguém com opinião divergente. A questão é de que modo os argumentos desse alguém dialogam com a memória jurídico–política de uma comunidade sobre a aquela matéria.
 
E esse conjunto dá razão inequívoca a quem sustenta que Dilma não pode ser processada por crime de responsabilidade – ao menos pelas razões que fundamentam os atuais pedidos de interrupção do mandato, a principal delas relacionada às ditas “pedaladas fiscais” e ao julgamento das contas da gestão passada de Dilma pelo TCU.
 
Isso porque as contas, como o próprio nome diz, são “de gestão passada”. E, segundo o disposto no art. 86, § 4º da Constituição:
 
Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
 
(...)
 
§ 4º O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.
 
O elemento chave, como se percebe, está na expressão “atos estranhos ao mandato”, que constitui o núcleo da limitação do § 4º.
 
O STF já teve a ocasião de se pronunciar sobre o alcance desse dispositivo. Isso se deu no âmbito do Inq. 672–DF, no qual Helio Bicudo noticiou crimes eleitorais (portanto, comuns), supostamente praticados por Collor em sua campanha para as eleições de 1989.
 
Relatando o caso, o Ministro Celso de Mello entendeu que o dispositivo mencionado dá imunidade temporária ao presidente, na vigência do mandato, quanto a persecuções penais por fatos praticados antes de sua investidura, permitindo apenas que prossigam investigações para, se for o caso, posterior ajuizamento da ação penal.
 
Trocando em miúdos, tem-se que os processos de responsabilização do presidente a que se refere o artigo 86 da CF só podem ocorrer por atos praticados no mandato em curso. Nas palavras do próprio Mello:
 
“Na hipótese de a suposta prática da infração penal comum, no entanto, preceder – como no caso dos autos – a investidura do agente no ofício presidencial (...), a responsabilização do Chefe de Estado dar-se-á  (...) somente depois de findo o mandato”.
 
E embora o acórdão relatado por Mello se refira à responsabilização penal (os processos por crimes comuns, que correm perante o STF), como se trata de interpretar parágrafo que restringe todo o caput, é evidente que isso se estende à responsabilização político–administrativa objeto de impeachment (processos que correm perante o Senado, após aprovação da Câmara).
 
Óbvio que, para o cidadão comum, pode surgir dúvida sobre como interpretar esse dispositivo, uma vez introduzido no Brasil o instituto da reeleição. Afinal, tendo sido reeleita, Dilma não apenas prosseguiria exercendo o mesmo ofício?
 
Juridicamente, porém, a questão não deveria ensejar maiores debates. Como esclareceu o ex–Ministro Ayres Britto, em entrevista ao Correio Brasiliense:
 
“O cargo é o mesmo, mas os mandatos são dois. Duas eleições, duas diplomações. Duas posses, dois exercícios. Então, ela só reponde por crime de responsabilidade, ensejador do impeachment, se ela cometer um daqueles crimes arrolados pelo artigo 85 no atual mandato.”
 
Não é por acaso que, frente ao tema das pedaladas, mesmo um jurista orgânico do PSDB, como Miguel Reale Jr., recusou-se a fazer parecer sustentando a possibilidade de impeachment de Dilma.
 
Mas a defesa do impeachment como processo puramente político é também falaciosa por recusar que, em qualquer democracia madura, a política não pode se realizar sem a legitimidade que lhe é proporcionada pelo direito. E processos como o impeachment não escapam disso.
 
Exemplo instrutivo pode ser encontrado na experiência jurídico–constitucional dos EUA.
 
No caso Powell v. McCormack (1969), a Suprema Corte anulou processo no qual a Câmara dos Deputados procedeu à cassação (impeachment) do mandato do famoso ativista do Harlem, Adam Clayton Powell Jr. Entenderam os Juízes, na ocasião, que a exclusão se deu fora das hipóteses previstas pela Constituição do país.
 
E a própria história recente no Brasil traz lições similares a respeito. O processo de impeachment de Collor, por exemplo, foi marcado pela interposição do Mandado de Segurança n º 21.564–DF, que teve sentença parcialmente favorável para garantir ao ex–presidente o prazo de dez sessões para apresentar sua defesa, contra as apenas cinco concedidas inicialmente pela Câmara. Entendeu o STF, na ocasião, que a Câmara buscava conduzir erradamente o processo, com prejuízos ao contraditório e à ampla defesa, direitos constitucionais do ex–presidente.
 
Não obstante a oposição continue buscando meios para o impeachment, atos e manifestos em contrário, convergência editorial negativa dos grandes meios, críticas advindas do exterior, e a situação delicada em que se coloca agora o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, sugerem que esse desejo deva refluir nas próximas semanas.
 
Mas se isso não ocorrer – por conta de medidas diversionistas de Cunha ou oportunismo do PSDB e do DEM –, parece restar pouca dúvida de que, deduzido na forma como os principais advogados do impeachment o têm feito, qualquer movimento em direção ao impeachment está profundamente contaminado do ponto de vista jurídico.
 
Assim é que, se o processo for aberto, Dilma poderá e deverá buscar o amparo do STF. E assim é que, tal como fez a Suprema Corte americana em Powell v. McCormack, o Tribunal deverá ordenar a medida adequada para interromper o andamento do processo ou anular o seu resultado.
 
Isso sim, ao contrário do que dizem analistas que pedem impeachment a qualquer custo, é que sinalizará para a fortaleza das instituições brasileiras. Afinal, se há alguma razão de ser nas instituições é a contenção de ações políticas não condizentes com o direito e que, por isso mesmo, não podem representar senão outra forma de violência.
 
(*) PhD em direito, política e sociedade (Northeastern University)

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