O assalto à soberania popular
Roberto Amaral
A deposição não realiza o golpe todo: ela é o ponto de
partida para uma mudança contra o pronunciamento majoritário da soberania
brasileira
O relatório do irrelevante deputado Jovair Arantes, do pouco
ilibado PTB de Roberto Jeferson – um símbolo da miséria da política brasileira,
recentemente redescoberto pela grande mídia graças à sua tenaz campanha pelo
impeachment, no que, aliás tem a companhia ínclita do notabilíssimo Paulo Maluf
– não é um raio caído de um céu azul.
Isto pois responde a momento crucial do processo de captura
sem voto do Estado, dirigido de fora, com o propósito, entre outros, de
abocanhar o Pré Sal, a maior descoberta de petróleo das últimas décadas no
planeta, com o apoio da inefável FIESP e seus acólitos, desde sempre
comprometida com tudo que é antinacional e antipovo.
A cisão direita x esquerda, mais uma vez, e repetindo 1954,
1961 e 1964, se deu por iniciativa da direita, inconformada, agora como sempre,
com as ameaças que passou a ver na emergência das massas, proporcionada pelos
governos de centro-esquerda liderados pelo Partido dos Trabalhadores.
Em face daqueles episódios de violência institucional, há,
porém, hoje, duas distinções fundamentais: o silêncio das Forças Armadas –
antes chamadas a intervir, realizando o golpe maquinado pela classe dominante —
e a disposição dos de baixo de não mais aceitarem passivamente a ruptura da
ordem constitucional que visa à supressão de seus direitos e conquistas recentes.
A história não se repete, a não ser a primeira vez como
tragédia, a segunda como farsa. No Brasil, porém, a história é recorrente. O
processo de impeachment a serviço do atraso, comandado a ferro e fogo por um
meliante deputado-réu poderosíssimo, é a farsa que pretende dar contornos
constitucionais – a obediência a ritos que se alteram como as nuvens nos céus –
a um golpe de Estado de novo tipo, cujo objetivo é a implantação de um governo
autoritário, antinacional e antipovo.
Repitamos mil vezes: o conflito, mais profundo do que
aparenta, não se encerrará com o eventual impeachment – que a sociedade, os
movimentos sociais e os trabalhadores desta feita não assimilarão – pois esse
expediente é pura e simplesmente o biombo que escamoteia o verdadeiro golpe,
cujo objetivo declarado é a construção de um governo necessariamente repressivo
porque essencialmente reacionário, antipovo e antinacional, a serviço do grande
capital internacional, do qual os rentistas da FIESP são meros e secundários
contribuintes, desprezíveis serviçais do restabelecimento da hegemonia do
neoliberalismo, com toda a sua carga de redução de direitos sociais e contenção
do desenvolvimento nacional independente.
Seu catálogo de terror está nas propostas do candidato Aécio
Neves, repaginadas pelo ‘Ponte para o
futuro’, peça de campanha de Michel Temer, o vice sem honra, que preside um
PMDB desonrado que, depois de liderar a luta democrática contra a ditadura (o
MDB de Ulisses Guimarães, Teotônio Vilela e Tancredo Neves), se resigna em
morrer como empresa de interesses escusos de políticos menores. A história é
assim: depois de Ulisses Guimarães na presidência da Câmara dos Deputados,
Eduardo Cunha. Depois dos vices Itamar Franco e José Alencar, Michel Temer.
O projeto neoliberal, uma vez levado a cabo, retomaria o
sonho frustrado de FHC de enterrar ‘a era Vargas’, revogando direitos dos
trabalhadores, a começar pela política de valorização do salário mínimo. E uma
vez mais enfrentaria a resistência popular. É, pois, sua simples possibilidade,
que não pode ser descartada, o anúncio de dois anos de instabilidade política e
caos social.
O papelucho que mandaram o senhor Jovair ler apenas cumpre o
rito da trama golpista articulada pelo menos desde 2013 – embora mais
ostensivamente só a partir de 2014 com o insucesso eleitoral da direita — que
visa à deposição da presidente Dilma Rousseff, mediante processo de impeachment
ilegítimo, ilegal e inconstitucional, porque a presidente, consabidamente, não
cometeu qualquer crime de responsabilidade, única justificativa constitucional
para o remédio extremo.
Aliás, o impeachment visa a muito mais do que a cassação de
um mandato legítimo conquistado em eleições legítimas, insisto na tese, porque
a deposição não realiza o golpe todo: ela é o ponto de partida essencial,
inafastável (mas sempre apenas ponto de partida) para uma mudança fundamental a
realizar-se contra o pronunciamento majoritário da soberania brasileira que
falou nas eleições de 2014 depositando 54,5 milhões de votos na candidata Dilma
Rousseff.
Essa votação, para além da derrota do candidato da direita –
vale dizer a rejeição de suas teses – era, de igual forma, a aprovação dos
quatro primeiros anos de governo da presidente reeleita.
Trata-se, pois, o impeachment, de tentativa de golpe contra a
soberania popular.
Ao mesmo tempo conjurada nas entranhas do poder e nas páginas
da grande imprensa, a maquinação golpista é a congregação de forças
poderosíssimas, que compreendem, tanto setores da alta burocracia estatal (a
facção operativa), quanto setores patronais congregados pela FIESP (estima-se
que, para o que for necessário a Avenida Paulista arrecadou R$ 500 milhões)
quanto o capital internacional, vivamente interessado em retomar a preeminência
que sempre exerceu em nossa economia tradicionalmente dependente, e que, para a
fruição de seus interesses, dependente precisa permanecer.
Dentro de casa atuam com desenvoltura desconhecida o
Ministério Público Federal — e o senhor Janot é a “inteligência’’ do processo –
setores da Polícia Federal e do Poder Judiciário, as corporações patronais
financiadas pelo ‘sistema S’, e a grande imprensa, numa unanimidade do tamanho
de seu desvario ético.
O mote para as grandes massas, o discurso aparente, é o
combate à corrupção, ficção que a ninguém pode enganar, pois, de Eduardo Cunha
e seus acólitos, como dos Skafs da vida, tudo se pode esperar, menos a
motivação do interesse público. Alguém neste mundo acreditará que Veja,
Isto é, o Sistema Globo e os sonegadores da FIESP estão nesta campanha
ferocíssima pensando no país e em seu povo?
A propósito do patriotismo da Avenida Paulista: o Sindicado
dos Procuradores da Fazenda Nacional (SINPROFAZ) calcula que a sonegação de
impostos representa para a União um prejuízo anual de 500 bilhões de reais.
A operação Lava Jato foi transformada em instrumento
essencial de repressão e propaganda, com os destemperos verbais do senhor
Gilmar Mendes (o ministro que agride o decoro do STF), as arbitrariedades do
juiz Sérgio Moro e os pareceres oportunistas do Procurador Geral da República (elementos
de um conjunto harmônico) alimentando o fim de semana da imprensa
partidarizada, com o evidente objetivo de tático de deter os avanços da
campanha contra o golpismo.
Vê-se a intolerável invasão de competência dos poderes, com o
STF judicializando a política e, com o concurso da Câmara dos Deputados,
impedindo o governo de governar: chega-se ao cúmulo de a presidente da
República ver suprimido seu direito de nomear um ministro de Estado, atributo
indeclinável que lhe confere o presidencialismo!
O combate à corrupção transforma-se assim e claramente em
instrumento político de uma conspiração golpista em marcha acelerada que passa
por cima de todas as cautelas jurídicas, pois compreende a relação promíscua de
um juiz de primeira instância — mas com inusitada jurisdição nacional — com
investigadores, procuradores e policiais, quando Polícia Federal, Ministério
Público e Poder Judiciário não podem andar de mãos dadas, em relação de
cumplicidade, como andam agora, pois cada instituição precisa controlar os
excessos da outra.
Procuradores no papel de agentes de policia agem sobre réus
para obter a narrativa de que carecem para fundamentar a condenação prévia; os
instrumentos da prisão provisória e da prisão preventiva, violando todos os
prazos judiciais e razoáveis, são utilizados para forçar delações premiadas
dirigidas contra os acusados que o consórcio MP-PF-Judiciário quer condenar.
A associação juízes-mídia assegura a espetacularização das
operações judiciais, alimentadas por vazamentos seletivos de delações
selecionadas, essencialmente políticas, para construir junto à sociedade um
clima de aprovação a toda sorte de arbitrariedade, como se o combate à
corrupção pudesse justificar a corrupção da Constituição.
A oligarquia quer o poder. Na expectativa de derrota do
pedido de impeachment no plenário da Câmara, já outros expedientes estão nos
laboratórios de seus alquimistas, e compreendem desde a convocação extemporânea
de eleições gerais ainda neste 2016, à implantação de um parlamentarismo à la
1961, ou uma ‘parlamentarização’ do atual presidencialismo, nas duas últimas
hipóteses a fórmula universal que visa a reduzir a preeminência das massas na
luta pela hegemonia.
No bolso do colete está a possiblidade golpista de uma
intervenção do Superior Tribunal Federal, cassando o mandato da presidente e de
seu vice. Nenhuma possibilidade de assalto à vontade da soberania do voto está
descartada.
O fato objetivo é que a direita não faz concessões à
democracia, porque o sistema de propriedade e concentração de renda é
incompatível com o exercício durável da democracia formal, daí o golpismo
cíclico. Nesse contexto, quando a Constituição não é abolida, ela é estuprada.
Na tragédia de nossos dias com o concurso de um STF nascido para por ela velar.
Blog do Roberto Amaral, 13/04/2016
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