Leonardo Boff*
Toda crise desbasta as gangas e traz à luz o que elas escondiam, pois
sempre eram atuantes nas bases denossa sociedade. Aí estão as raízes últimas de
nossa crise política, nunca superada historicamente; por isso, de tempos em
tempos, afloram com virulência: o desprezo e a humilhação dos pobres. É o outro
lado da cordialidade brasileira, como bem o explicou Sérgio Buarque de Holanda.
Do coração nascem nossa bem-querença e informalidade, mas também nossos ódios.
Talvez, melhor diríamos: o brasileiro, mais que cordial,é um ser sentimental.
Rege-se por sentimentos contraditórios e radicais.
Há que se reconhecer: vigora ódio e profundas dilacerações em nosso
país. Precisamos qualificar este ódio. Ele é ódio contra os filhos e filhas da
pobreza, daqueles que vieram dos fundos da senzala ou das imensas periferias.
Basta ler os historiadores que tentaram ler nossa história a partir das
vítimas, como o acadêmico José Honório Rodrigues ou o mulato Capistrano de
Abreu, ou então o atual diretor do IPEA, o sociólogo Jessé de Souza, para
darmo-nos conta sobre que solo social estamos assentados.
As grandes maiorias empobrecidas eram para as oligarquias econômicas e
as elites intelectuais tradicionais e pelo estado por elas controlado, peso
morto. Não só foram marginalizadas, mas humilhadas e desprezadas. Refere José
Honório Rodrigues:
“A maioria dominante foi sempre alienada, antiprogressista,
antinacional e não contemporânea. A liderança nunca se reconciliou com o povo.
Nunca viu nele uma criatura de Deus, nunca o reconheceu, pois gostaria que ele
fosse o que não é. Nunca viu suas virtudes nem admirou seus serviços ao país. Chamou-o
de tudo - Jeca-Tatu -, negou seus direitos, arrasou sua vida e, logo que o viu
crescer, ela lhe negou, pouco a pouco, sua aprovação, conspirou para colocá-lo
de novo na periferia, no lugar que continua achando que lhe pertence”(Reforma e
conciliação no Brasil p.16).
Não se trata de uma descrição do passado, mas a verificação do que está
ocorrendo no atual momento. Por uma conjunção rara de forças, alguém vindo de
baixo, um sobrevivente, Luiz Inácio Lula da Silva, conseguiu furar a blindagem
promovida pelos poderosos e chegar à presidência. Isso é intolerável para os
grupos poderosos e intelectualizados que negam a qualquer relação com os do
andar de baixo.
Mais intolerável ainda é o fato de que com políticas sociais bem
direcionadas foram incluídos milhões que antes estavam fora da cidadania. Estes
começarama ocupar os lugares antes reservados aos beneficiados do sistema
discricionário. Começaram a consumir, entrar nos shoppings e voar de avião. Sua
presença irrita os do andar de cima e começam a odiá-los.
Podemos criticar que foi uma inclusão incompleta. Criou consumidores,
mas poucos cidadãos críticos. Deixaram de ser famélicos, mas o ser humano não é
apenas um animal faminto. É um ser de múltiplas virtualidades; como todos, um
projeto infinito. Ocorre que não houve um desenvolvimento do capital social
consistente em termos de educação, saúde, transporte, cultura e lazer. Essa
seria outra etapa e mais fundamental que já estava sendo implementada com
escolas profissionais ecom o acesso de milhares de empobrecidos à universidade.
O fato é que quando esses deserdados começaram a se organizar e erguer
a cabeça, foram logo desqualificados e demonizados. Atacaram seu principal
representante e líder, Lula. O fato de ter sido levado sob vara para um
interrogatório, ato desproporcionado e humilhante, visava exatamente isso:
humilhar e destruir sua figura carismática. Junto com ele, liquidar, se for
possível, o seu partido e torná-lo inapto para disputar futuras eleições.
Em outras palavras, os descendentes da Casa Grande estão de volta. A
onda direitista que assola o país possui esse transfundo. Buscar o impedimento
da presidenta Dilma é o último capítulo desta batalha para chegar ao estado
anterior, onde eles, os dominantes, (71 mil super-ricos com seus aliados,
especialmente do sistema financeiro, que representam 0,05 da população)
voltariam a ocupar o estado e fazê-lo funcionar em benefício próprio, excluídas
as maiorias populares.
A aliança deles com a grande mídia, formando um bloco histórico bem articulado,
conseguiu conquistar para a sua causa a muitos dos estratos médios;
progressistas nas profissões, mas conservadores na política. Esses mal sabem da
manipulação e da exploração econômica a que estão submetidos pelos ricos, como
notou recentemente Jessé de Souza.
Mas a consciência dos pobres uma vez despertada, não há mais como
freá-la. Transformações virão, dando outro rumo ao país.
* Leonardo Boff é articulista do
JB online e escritor.
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