A luta contra o golpe é internacional
Diante da mais grave crise do capitalismo desde 1929, o capital financeiro não pode se dar mais ao luxo de conviver com formas de soberania popular.
Ainda em meio à celebração de sua vitória, os golpistas brasileiros mal puderam disfarçar seu desconforto diante das repercussões do golpe de Estado parlamentar e da posse do governo de Michel Temer na imprensa estrangeira. Um jornal como o The New York Times, insuspeito de quaisquer simpatias esquerdizzantes não apenas deu espaço para a grande manifestação do dia 12/05 na Avenida Paulista – silenciada pela mídia local – como ainda soltou um editorial bastante crítico. Mesmo evitando caracterizar o impeachment como golpe, o jornal não apenas afirmou que o afastamento de Dilma Rousseff iria agravar a crise brasileira, como questionou a legitimidade de uma coalizão composta por tantos acusados de corrupção para depor uma mandatária que não é ré em processo algum. Além disso, a foto do novo ministério, exclusivamente masculino e branco, correu o mundo, gerando uma forte reação negativa.
No plano do reconhecimento diplomático, a situação de Temer não é necessariamente mais confortável. Se a Argentina de Macri, deixando de lado o jogo de sena, apressou-se em reconhecer o novo governo e o Uruguai, El Salvador e Venezuela, de modo igualmente previsível, negaram o reconhecimento, o que prevaleceu até agora foi um grande silêncio. No caso dos EUA, após as recentes revelações do Wekeleakss de telegramas diplomáticos de 2006 sobre as relações de Temer com o consulado estadunidense em São Paulo, parece claro que a Casa Branca só estaria esperando a condenação definitiva de Dilma para reconhecer o novo governo, precavendo-se em relação a uma inesperada reviravolta. Já no caso da União Europeia, a cautela talvez tenha outras fontes, já que os governos europeus dificilmente teriam uma posição consensual a respeito. Por fim, a postura da Rússia e da China, que aparentemente não reconheceram o novo governo, é bastante compreensível, uma vez que ambos os países teriam muito a perder com a eventual saída do Brasil do BRICS e seu realinhamento automático com Washington.
Seja como for, cautela e expectativa parecem ser as palavras de ordem que orientam as atitudes, ou melhor, a falta delas, das chancelarias dos principais Estados no grande jogo internacional. Até porque, dado o caráter interino do novo governo e as incertezas do processo político brasileiro, qualquer movimentação drástica seria arriscada e comprometedora. Contudo, é justamente nesse cenário de relativo silêncio da diplomacia oficial, que ganham relevo outros tipos de atores e espaços, os quais constituem o que poder-se-ia chamar de uma “sociedade civil internacional”. Uma ampla gama de meios de comunicação – corporativos ou alternativos -, de universidades, partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais e ONGs, sem falar na própria internet e nas redes sociais – que conectam centenas de milhões de indivíduos ao redor do mundo – constituem uma arena de disputa pela narrativa do que está acontecendo no Brasil.
Nesse sentido, a avassaladora vitória da reação interna gerou, no front externo, um espaço favorável e receptivo à narrativa democrática que, internamente, dada a conjugação de boicote midiático com as primeiras ações de intimidação jurídico-policial, tem encontrado dificuldade para se expressar dentro do país, para além dos círculos de esquerda. Afinal, já ficou patente que, muito mais do que uma troca de guarda em Brasília, o que está em curso é uma autêntica mudança de regime político, com a destruição de facto, embora ainda não de jure, da Constituição de 1988, e sua substituição por uma nova forma ditatorial, que alguns têm denominado como “jurídico-midiática”, outros como “jurídico-midiático-empresarial”. Os próprios militares, os quais até agora vinham mantendo um papel discreto, talvez acabem por assumir um lugar de maior destaque em um regime que, carente de legitimidade, precisará mais do que nunca da força, como sugere a nomeação do general Sérgio Etchegoyen para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
Também não pode haver dúvida quanto ao caráter internacional da conspiração golpista. Para além do que sugerem os telegramas diplomáticos recém vazados, ou o papel já claro das redes de Think-tanks neoliberais no financiamento e organização das mobilizações da direita local – com destaque para o papel dos magnatas do petróleo Charles e David Kosh - , há outros sinais preocupantes no horizonte.
Na noite da quarta-feira, dia 11/5, enquanto o Senado Federal iniciava o desfecho do golpe, o deputado Jair Bolsonaro era batizado pelo Pastor Everaldo nas águas do Rio Jordão, em Israel. Ora, para além de um gesto demagógico para com sua nova base neopetencostal, é difícil crer que Bolsonaro tenha ido tão longe apenas para deixar-se imergir em águas sagradas. É sabido como os neopetencostais são virulentamente sionistas, mantendo fortes vínculos com a direita israelense. Everaldo, diga-se de passagem, foi o único candidato a atacar Dilma Rousseff nas eleições de 2014 com um tema puramente de política externa, acusando-a, às vésperas do 1º. Turno, de transigir com o terrorismo islâmico. O elo entre a direita evangélica brasileira e o sionismo, claro está, passa por seus homólogos norte-americanos, de onde vem, inclusive, a combinação de políticas ultraliberais e conservadorismo moral que caracterizou a última campanha do Pastor Everaldo e hoje parece definir o perfil do governo Temer.
Os exemplos poderiam se suceder, apontando como a coalizão golpista busca e obtém um importante respaldo no exterior. Contudo, as relações internacionais, que interligam não apenas Estados e empresas, mas, como acima indiquei, uma heterogênea rede de atores sociais, é tudo menos um espaço política e ideologicamente uniforme. O que mais desagrada os próceres do novo regime é sua incapacidade de controlar as narrativas da mídia estrangeira como fazem por aqui. Temer não pode dizer ao Times, como diz à Globo, que “agora é hora de esquecer a crise”. Por fim, tudo que um governo novo, de origem contestada e com legitimidade interna claudicante não pode é ignorar as correntes de opinião internacionais que, de um modo ou de outro, podem impactar as decisões de diferentes governos na hora de reconhece-lo ou não.
Nessa direção e justamente quando parecem se apertar as cravelhas repressivas do Estado brasileiro, a denúncia internacional do golpe se faz urgente. O recurso aos meios de comunicação, sobretudo aos eletrônicos, às redes sociais, as comunidades acadêmica e artística internacionais e às redes de militância transnacionais são peças importantes em uma estratégia de deslegitimação externa do governo Temer e seus aliados. Essa campanha ganharia muito com a retomada e o reforço de espaços como o do Fórum Social Mundial (FSM), que na virada do século tanta importância tiveram para a articulação das esquerdas latino-americanas então em ascensão.
No cerne da disputa está a caracterização do impedimento da presidenta brasileira como constituindo um golpe. Afinal, não havendo nenhum crime de responsabilidade comprovado, o Brasil não é um país parlamentarista para admitir a remoção de um governo pela instituição do “voto de desconfiança” do legislativo, tampouco possui em seu ordenamento constitucional, como a Venezuela, a figura do recall ou “referendo revogatório”. Assim, o uso do instituto do impeachment para, sem base jurídica, destituir o governo configura clara usurpação da soberania popular, sendo, sem meias palavras, golpe. Foi a difusão dessa narrativa do campo democrático brasileiro na opinião pública internacional que tanto incomodou nossos usurpadores de plantão.
Mas há ainda um motivo mais profundo para encarar essa luta como parte de algo muito maior. O golpe parlamentar no Brasil está longe de ser um fenômeno isolado. Muito já se falou sobre como os golpes contra Manuel Zelaya em Honduras (2009) e Fernando Lugo no Paraguai (2012) serviram de “ensaios gerais” para a grande estreia do neogolpismo latino-americano na deposição de Dilma Rousseff. Mas a verdade é que a guinada abertamente antidemocrática e autoritária do neoliberalismo vai muito além das fronteiras de Nuestra América. Basta pensar na frase de Wolfgang Chauble, ministro das finanças alemão, “a democracia não está acima dos contratos”, que serviu de lema para a operação, conduzida pela Comissão Europeia, de cerco e esmagamento do governo do SIRISA na Grécia, no primeiro semestre de 2015.
Diante da mais grave crise do capitalismo desde 1929, o capital financeiro hegemônico não pode se dar mais ao luxo de conviver com formas ainda que atenuadas de soberania popular. É como se os neoliberais voltassem a seu primeiro laboratório no Chile de Pinochet, escancarando o seu desprezo pela democracia que esteve presente desde os escritos seminais de Friedrich Von Hayeck nos anos 1940. Não por acaso, em diversas partes do mundo, a defesa das políticas de livre mercado tem sido acompanhada por apelos xenófobos, racistas e fundamentalistas, como ilustra a bem –sucedida campanha de Donald Trump, a qual acabou derrotando a própria máquina republicana.
O casamento entre democracia e capitalismo de livre mercado, celebrado pelo “Consenso de Washington” sob os escombros do Muro de Berlim, parece ter mesmo chegado a seu termo. Abre-se no mundo um período incerto e perigoso de luta entre a democracia, crescentemente associada a perspectivas anticapitalistas, e um neoliberalismo cada vez mais fascistizante. Dessa maneira, a ampla frente democrática e popular que vem se forjando no Brasil precisa ter a clara consciência de que a luta contra o golpe não diz respeito apenas aos brasileiros mas será, em grande medida, travada e decidida também no plano internacional. No dia 10/05, às vésperas da votação no Senado, um grupo de manifestantes brasileiros e paraguaios se encontraram na entrada da Ponte da Amizade em Foz do Iguaçu para repudiar o golpe contra Dilma, repetindo o gesto de quatro anos antes, quando da deposição de Lugo. Assim se vê como a amizade entre os povos, para além da construção de pontes, ou da assinatura de tratados, se constrói na solidariedade cotidiana e nas lutas comuns por um mundo mais justo e democrático.
No plano do reconhecimento diplomático, a situação de Temer não é necessariamente mais confortável. Se a Argentina de Macri, deixando de lado o jogo de sena, apressou-se em reconhecer o novo governo e o Uruguai, El Salvador e Venezuela, de modo igualmente previsível, negaram o reconhecimento, o que prevaleceu até agora foi um grande silêncio. No caso dos EUA, após as recentes revelações do Wekeleakss de telegramas diplomáticos de 2006 sobre as relações de Temer com o consulado estadunidense em São Paulo, parece claro que a Casa Branca só estaria esperando a condenação definitiva de Dilma para reconhecer o novo governo, precavendo-se em relação a uma inesperada reviravolta. Já no caso da União Europeia, a cautela talvez tenha outras fontes, já que os governos europeus dificilmente teriam uma posição consensual a respeito. Por fim, a postura da Rússia e da China, que aparentemente não reconheceram o novo governo, é bastante compreensível, uma vez que ambos os países teriam muito a perder com a eventual saída do Brasil do BRICS e seu realinhamento automático com Washington.
Seja como for, cautela e expectativa parecem ser as palavras de ordem que orientam as atitudes, ou melhor, a falta delas, das chancelarias dos principais Estados no grande jogo internacional. Até porque, dado o caráter interino do novo governo e as incertezas do processo político brasileiro, qualquer movimentação drástica seria arriscada e comprometedora. Contudo, é justamente nesse cenário de relativo silêncio da diplomacia oficial, que ganham relevo outros tipos de atores e espaços, os quais constituem o que poder-se-ia chamar de uma “sociedade civil internacional”. Uma ampla gama de meios de comunicação – corporativos ou alternativos -, de universidades, partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais e ONGs, sem falar na própria internet e nas redes sociais – que conectam centenas de milhões de indivíduos ao redor do mundo – constituem uma arena de disputa pela narrativa do que está acontecendo no Brasil.
Nesse sentido, a avassaladora vitória da reação interna gerou, no front externo, um espaço favorável e receptivo à narrativa democrática que, internamente, dada a conjugação de boicote midiático com as primeiras ações de intimidação jurídico-policial, tem encontrado dificuldade para se expressar dentro do país, para além dos círculos de esquerda. Afinal, já ficou patente que, muito mais do que uma troca de guarda em Brasília, o que está em curso é uma autêntica mudança de regime político, com a destruição de facto, embora ainda não de jure, da Constituição de 1988, e sua substituição por uma nova forma ditatorial, que alguns têm denominado como “jurídico-midiática”, outros como “jurídico-midiático-empresarial”. Os próprios militares, os quais até agora vinham mantendo um papel discreto, talvez acabem por assumir um lugar de maior destaque em um regime que, carente de legitimidade, precisará mais do que nunca da força, como sugere a nomeação do general Sérgio Etchegoyen para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
Também não pode haver dúvida quanto ao caráter internacional da conspiração golpista. Para além do que sugerem os telegramas diplomáticos recém vazados, ou o papel já claro das redes de Think-tanks neoliberais no financiamento e organização das mobilizações da direita local – com destaque para o papel dos magnatas do petróleo Charles e David Kosh - , há outros sinais preocupantes no horizonte.
Na noite da quarta-feira, dia 11/5, enquanto o Senado Federal iniciava o desfecho do golpe, o deputado Jair Bolsonaro era batizado pelo Pastor Everaldo nas águas do Rio Jordão, em Israel. Ora, para além de um gesto demagógico para com sua nova base neopetencostal, é difícil crer que Bolsonaro tenha ido tão longe apenas para deixar-se imergir em águas sagradas. É sabido como os neopetencostais são virulentamente sionistas, mantendo fortes vínculos com a direita israelense. Everaldo, diga-se de passagem, foi o único candidato a atacar Dilma Rousseff nas eleições de 2014 com um tema puramente de política externa, acusando-a, às vésperas do 1º. Turno, de transigir com o terrorismo islâmico. O elo entre a direita evangélica brasileira e o sionismo, claro está, passa por seus homólogos norte-americanos, de onde vem, inclusive, a combinação de políticas ultraliberais e conservadorismo moral que caracterizou a última campanha do Pastor Everaldo e hoje parece definir o perfil do governo Temer.
Os exemplos poderiam se suceder, apontando como a coalizão golpista busca e obtém um importante respaldo no exterior. Contudo, as relações internacionais, que interligam não apenas Estados e empresas, mas, como acima indiquei, uma heterogênea rede de atores sociais, é tudo menos um espaço política e ideologicamente uniforme. O que mais desagrada os próceres do novo regime é sua incapacidade de controlar as narrativas da mídia estrangeira como fazem por aqui. Temer não pode dizer ao Times, como diz à Globo, que “agora é hora de esquecer a crise”. Por fim, tudo que um governo novo, de origem contestada e com legitimidade interna claudicante não pode é ignorar as correntes de opinião internacionais que, de um modo ou de outro, podem impactar as decisões de diferentes governos na hora de reconhece-lo ou não.
Nessa direção e justamente quando parecem se apertar as cravelhas repressivas do Estado brasileiro, a denúncia internacional do golpe se faz urgente. O recurso aos meios de comunicação, sobretudo aos eletrônicos, às redes sociais, as comunidades acadêmica e artística internacionais e às redes de militância transnacionais são peças importantes em uma estratégia de deslegitimação externa do governo Temer e seus aliados. Essa campanha ganharia muito com a retomada e o reforço de espaços como o do Fórum Social Mundial (FSM), que na virada do século tanta importância tiveram para a articulação das esquerdas latino-americanas então em ascensão.
No cerne da disputa está a caracterização do impedimento da presidenta brasileira como constituindo um golpe. Afinal, não havendo nenhum crime de responsabilidade comprovado, o Brasil não é um país parlamentarista para admitir a remoção de um governo pela instituição do “voto de desconfiança” do legislativo, tampouco possui em seu ordenamento constitucional, como a Venezuela, a figura do recall ou “referendo revogatório”. Assim, o uso do instituto do impeachment para, sem base jurídica, destituir o governo configura clara usurpação da soberania popular, sendo, sem meias palavras, golpe. Foi a difusão dessa narrativa do campo democrático brasileiro na opinião pública internacional que tanto incomodou nossos usurpadores de plantão.
Mas há ainda um motivo mais profundo para encarar essa luta como parte de algo muito maior. O golpe parlamentar no Brasil está longe de ser um fenômeno isolado. Muito já se falou sobre como os golpes contra Manuel Zelaya em Honduras (2009) e Fernando Lugo no Paraguai (2012) serviram de “ensaios gerais” para a grande estreia do neogolpismo latino-americano na deposição de Dilma Rousseff. Mas a verdade é que a guinada abertamente antidemocrática e autoritária do neoliberalismo vai muito além das fronteiras de Nuestra América. Basta pensar na frase de Wolfgang Chauble, ministro das finanças alemão, “a democracia não está acima dos contratos”, que serviu de lema para a operação, conduzida pela Comissão Europeia, de cerco e esmagamento do governo do SIRISA na Grécia, no primeiro semestre de 2015.
Diante da mais grave crise do capitalismo desde 1929, o capital financeiro hegemônico não pode se dar mais ao luxo de conviver com formas ainda que atenuadas de soberania popular. É como se os neoliberais voltassem a seu primeiro laboratório no Chile de Pinochet, escancarando o seu desprezo pela democracia que esteve presente desde os escritos seminais de Friedrich Von Hayeck nos anos 1940. Não por acaso, em diversas partes do mundo, a defesa das políticas de livre mercado tem sido acompanhada por apelos xenófobos, racistas e fundamentalistas, como ilustra a bem –sucedida campanha de Donald Trump, a qual acabou derrotando a própria máquina republicana.
O casamento entre democracia e capitalismo de livre mercado, celebrado pelo “Consenso de Washington” sob os escombros do Muro de Berlim, parece ter mesmo chegado a seu termo. Abre-se no mundo um período incerto e perigoso de luta entre a democracia, crescentemente associada a perspectivas anticapitalistas, e um neoliberalismo cada vez mais fascistizante. Dessa maneira, a ampla frente democrática e popular que vem se forjando no Brasil precisa ter a clara consciência de que a luta contra o golpe não diz respeito apenas aos brasileiros mas será, em grande medida, travada e decidida também no plano internacional. No dia 10/05, às vésperas da votação no Senado, um grupo de manifestantes brasileiros e paraguaios se encontraram na entrada da Ponte da Amizade em Foz do Iguaçu para repudiar o golpe contra Dilma, repetindo o gesto de quatro anos antes, quando da deposição de Lugo. Assim se vê como a amizade entre os povos, para além da construção de pontes, ou da assinatura de tratados, se constrói na solidariedade cotidiana e nas lutas comuns por um mundo mais justo e democrático.
Créditos da foto: Marcello Casal / Agência Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário