Franceses debatem e condenam o golpe
'A democracia é o nosso bem comum mais precioso. Sua fragilização num país tão grande e poderoso quanto o Brasil é um problema global.'
04/7/2016
Franceses e brasileiros se debruçaram na semana passada para analisar o golpe institucional em curso no « gigante da América Latina », como o país costuma ser designado na imprensa. Em um colóquio e uma mesa–redonda, os participantes não se entregaram a nenhuma disputa semântica quanto à definição do que vive o Brasil : é golpe.
Na segunda, 27 de junho, a mesa-redonda na École des Hautes Études en Sciences Sociales, organizada pela historiadora Maud Chirio _ especialista da ditadura brasileira e da repressão _ reuniu sociólogos e historiadores para analisar o país que depois de 14 anos de governos progressistas mergulha num golpe de Estado institucional, que segue o modelo de outros recentes em Honduras, em 2009, e no Paraguai, em 2012.
Para o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, da UFMG, a crise é fruto, entre outras coisas, dos acertos dos governos petistas e de seus projetos de inclusão social. O sociólogo Breno Bringel, da UERJ, ressaltou que é importante decifrar o que foi junho de 2013 com « uma explosão de manifestações heterogêneas e ambivalentes que mostravam o fim de um mundo e a emergência de novos atores ».
A historiadora Juliette Dumont analisou a política externa do PT no poder, na qual Lula brilhou por seu protagonismo afirmando a soberania dos interesses nacionais e reforçando as instituições multilaterais. A escalada do conservadorismo que se expressa no programa « Escola sem partido » foi examinada pela historiadora Angélica Muller.
No Senado, na sexta-feira, 1° de julho, um colóquio com os senadores Laurence Cohen, Antoine Karam e Marie-Christine Blandin (do PC, PS e Partido EELV-ecologista) questionava a mobilização popular após o golpe. O encontro foi realizado em parceria com o coletivo de Solidariedade France-Brasil, “Os amigos do movimento sem terra”, o Núcleo do PT de Paris, a Associação « Autres Brésils » e o Movimento Democrático 18 de março. A iniciativa foi da senadora comunista Laurence Cohen, presidente do grupo inter-parlamentar Amizade França-Brasil.
Por considerarem o impeachment como um golpe institucional, os três senadores repudiaram o governo interino. Como os brasileiros mais informados já perceberam, o governo do vice-presidente é um retrocesso em todos os avanços sociais e na política externa soberana que o Brasil vinha construindo.
O representante do MST, João Paulo Rodrigues, fez uma longa e didática exposição sobre os últimos meses agitados da política brasileira e apontou o perigo do novo modelo de golpe institucional que coloca na mira os governos progressistas da Bolívia, do Equador e da Venezuela. Ele pensa que a comunidade internacional “precisa pressionar o Senado que vai agora decidir o destino da democracia brasileira”.
Solicitar ao governo francês o não reconhecimento do governo Temer será o próximo passo que os três senadores prometeram dar, buscando apoio entre seus pares. Para isso, devem escrever uma carta coletiva de parlamentares juntamente com movimentos sociais e sindicatos para manifestar solidariedade à democracia brasileira e a seu governo legítimo.
A seguir, a entrevista exclusiva com a historiadora Maud Chirio, que esteve presente e falou em todos os encontros :
CARTA MAIOR : Esta semana houve diversas ocasiões em que o golpe no Brasil foi discutido: na mesa-redonda organizada por você na École des Hautes Études en Sciences Sociales, dia 27 de junho. Na quarta-feira, dia 29, quando você foi informar deputados franceses do grupo socialista na Assembléia e hoje, no colóquio no Senado. Como foi seu encontro com os deputados franceses e quantos estavam presentes? Eles pareciam bem informados sobre o que se passa no Brasil?
MAUD CHIRIO : Os parlamentares franceses só agora estão começando a tomar consciência da existência de um problema com a democracia no Brasil. Quem resolveu se mobilizar são pessoas já bastante informadas, seja porque têm uma relação pessoal com o Brasil (é o caso do deputado Eduardo Rihan-Cypel, franco-brasileiro e presidente do Grupo de Amizade França-Brasil na Câmara), seja porque têm relações fortes e antigas com associações de solidariedade com a América Latina (é o caso das senadoras Laurence Cohen, do Partido Comunista francês, e Marie-Christine Blandin, ecologista, do Grupo interparlamentar de Amizade França-Brasil). Na quarta-feira, encontrei 5 deputados. Na sexta, havia 3 senadores no colóquio: são pouca gente, mas doravante muito preocupados e dispostos a divulgar a informação junto aos seus colegas parlamentares, atravessando as fronteiras entre as duas câmaras e os partidos. A meu ver, esses encontros vão possibilitar uma tomada de consciência mais ampla, ao menos na esquerda e no centro.
Carta Maior : Como os franceses e os brasileiros de Paris podem influir no andamento da crise politica no Brasil?
M.C. :De diversas maneiras: sensibilizando seus parlamentares, sejam eles de esquerda ou de direita, porque a defesa da democracia pode mobilizar além dessa fronteira. Ficando atentos às orientações da imprensa francesa, porque a mídia não vinha fazendo seu papel de informar de maneira imparcial a opinião pública aqui, repetindo a propaganda da Globo e do Estadão, sem checar os fatos, contextualizá-los ou multiplicar as fontes de informação, como deveria ter sido o caso.
Participando e dando visibilidade a protestos. Podem parecer ações distantes e sem muita consequência sobre o andamento da crise no Brasil, mas acho que o pior perigo é o da « normalização »: a aceitação de que « tudo bem, a constituição não foi exatamente respeitada; tudo bem, não foi bem democrático; mas… há a crise econômica, as olimpíadas, etc, outra coisa importa ». Ora, a democracia é o nosso bem comum mais precioso. Sua fragilização num país tão grande e poderoso quanto o Brasil é um problema global.
Carta Maior : Na sua fala no Senado, você ressaltou que todos os golpes no Brasil foram, historicamente, realizados em nome da democracia, inclusive o de 1964, que se autodenominou "Revolução democràtica" ou "redentora". Além disso, como historiadora, você lembrou que o STF nunca se distinguiu por defender as instituições. O que esperar de um governo Dilma, na hipótese de uma derrota do campo golpista na votação de 27 de agosto?
M.C : Acho que esse impeachment, que eu chamo de golpe, é um momento para o Brasil olhar para ele mesmo: seu sistema democrático, sua classe política, a permanência de estruturas autoritárias na sociedade. Em particular, olhar para uma certa « fachada » de democracia institucionalmente estabelecida, porém incapaz de não defender interesses particulares em situações de crise violenta.
Eu continuo torcendo para que Dilma volte ao poder em agosto, porque independentemente de tudo, um golpe de Estado deve ser derrotado. Contudo, eu acho que ela deverá virar a mesa e conseguir uma base política fora desse sistema que instrumentalizou a constituição para demiti-la: uma base nos movimentos sociais, na rua, na consulta direta do povo sobre pontos chaves do sistema político. Eu não sou geralmente a favor de uma « democracia plebiscitária », menos ainda antiparlamentar, eu confio no sistema representativo. Entretanto, no Brasil a democracia deve ser refundada.
Carta Maior : Por que o governo francês não condenou ainda o golpe em curso no Brasil? Pode-se esperar que ele venha a fazê-lo ou poderia parecer ingerência na política interna de um parceiro comercial, o que justificaria o silêncio?
M . C. : O governo francês teme, obviamente, acusações de ingerência. Além disso, o fato dos negócios brasileiros, e provavelmente de parte dos meios financeiros transnacionais, apoiarem a saída golpista, deve levar a uma vontade de cautela. O golpe foi também bem disfarçado: é mais fácil condenar carros de combate na rua, do que um impeachment mencionado na constituição, votado pela maioria dos parlamentares, apoiado pela opinião pública e por manifestações de rua… ainda que sem motivo legal. Por fim, temos de lembrar que condenações abertas de golpes foram raras na história das relações entre França e América Latina: nenhuma instauração de uma « ditadura de segurança nacional », nos anos 60 e 70, no mundo bipolar na época, foi formalmente condenada. A política estrangeira e a diplomacia respondem a outras lógicas que não são a ética e a defesa da democracia.
Eu acho, aliás, que devemos abrir o debate em outros campos: a França não tem interesse em um Brasil que desiste de uma estratégia de potência média, que desiste do multilateralismo, que volte à área de influência dos Estados Unidos. Quem tem visão pode perceber que a França não é mais uma grande potência e deve valorizar a construção de um mundo de potências médias. Isso é só um exemplo. Um outro é a necessidade de combater a onda neoliberal e ultra-conservadora numa escala global: deveria ser entendido como uma responsabilidade dos partidos progressistas na Europa, apesar de terem se afastado muito de suas origens de esquerda.
Na segunda, 27 de junho, a mesa-redonda na École des Hautes Études en Sciences Sociales, organizada pela historiadora Maud Chirio _ especialista da ditadura brasileira e da repressão _ reuniu sociólogos e historiadores para analisar o país que depois de 14 anos de governos progressistas mergulha num golpe de Estado institucional, que segue o modelo de outros recentes em Honduras, em 2009, e no Paraguai, em 2012.
Para o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, da UFMG, a crise é fruto, entre outras coisas, dos acertos dos governos petistas e de seus projetos de inclusão social. O sociólogo Breno Bringel, da UERJ, ressaltou que é importante decifrar o que foi junho de 2013 com « uma explosão de manifestações heterogêneas e ambivalentes que mostravam o fim de um mundo e a emergência de novos atores ».
A historiadora Juliette Dumont analisou a política externa do PT no poder, na qual Lula brilhou por seu protagonismo afirmando a soberania dos interesses nacionais e reforçando as instituições multilaterais. A escalada do conservadorismo que se expressa no programa « Escola sem partido » foi examinada pela historiadora Angélica Muller.
No Senado, na sexta-feira, 1° de julho, um colóquio com os senadores Laurence Cohen, Antoine Karam e Marie-Christine Blandin (do PC, PS e Partido EELV-ecologista) questionava a mobilização popular após o golpe. O encontro foi realizado em parceria com o coletivo de Solidariedade France-Brasil, “Os amigos do movimento sem terra”, o Núcleo do PT de Paris, a Associação « Autres Brésils » e o Movimento Democrático 18 de março. A iniciativa foi da senadora comunista Laurence Cohen, presidente do grupo inter-parlamentar Amizade França-Brasil.
Por considerarem o impeachment como um golpe institucional, os três senadores repudiaram o governo interino. Como os brasileiros mais informados já perceberam, o governo do vice-presidente é um retrocesso em todos os avanços sociais e na política externa soberana que o Brasil vinha construindo.
O representante do MST, João Paulo Rodrigues, fez uma longa e didática exposição sobre os últimos meses agitados da política brasileira e apontou o perigo do novo modelo de golpe institucional que coloca na mira os governos progressistas da Bolívia, do Equador e da Venezuela. Ele pensa que a comunidade internacional “precisa pressionar o Senado que vai agora decidir o destino da democracia brasileira”.
Solicitar ao governo francês o não reconhecimento do governo Temer será o próximo passo que os três senadores prometeram dar, buscando apoio entre seus pares. Para isso, devem escrever uma carta coletiva de parlamentares juntamente com movimentos sociais e sindicatos para manifestar solidariedade à democracia brasileira e a seu governo legítimo.
A seguir, a entrevista exclusiva com a historiadora Maud Chirio, que esteve presente e falou em todos os encontros :
CARTA MAIOR : Esta semana houve diversas ocasiões em que o golpe no Brasil foi discutido: na mesa-redonda organizada por você na École des Hautes Études en Sciences Sociales, dia 27 de junho. Na quarta-feira, dia 29, quando você foi informar deputados franceses do grupo socialista na Assembléia e hoje, no colóquio no Senado. Como foi seu encontro com os deputados franceses e quantos estavam presentes? Eles pareciam bem informados sobre o que se passa no Brasil?
MAUD CHIRIO : Os parlamentares franceses só agora estão começando a tomar consciência da existência de um problema com a democracia no Brasil. Quem resolveu se mobilizar são pessoas já bastante informadas, seja porque têm uma relação pessoal com o Brasil (é o caso do deputado Eduardo Rihan-Cypel, franco-brasileiro e presidente do Grupo de Amizade França-Brasil na Câmara), seja porque têm relações fortes e antigas com associações de solidariedade com a América Latina (é o caso das senadoras Laurence Cohen, do Partido Comunista francês, e Marie-Christine Blandin, ecologista, do Grupo interparlamentar de Amizade França-Brasil). Na quarta-feira, encontrei 5 deputados. Na sexta, havia 3 senadores no colóquio: são pouca gente, mas doravante muito preocupados e dispostos a divulgar a informação junto aos seus colegas parlamentares, atravessando as fronteiras entre as duas câmaras e os partidos. A meu ver, esses encontros vão possibilitar uma tomada de consciência mais ampla, ao menos na esquerda e no centro.
Carta Maior : Como os franceses e os brasileiros de Paris podem influir no andamento da crise politica no Brasil?
M.C. :De diversas maneiras: sensibilizando seus parlamentares, sejam eles de esquerda ou de direita, porque a defesa da democracia pode mobilizar além dessa fronteira. Ficando atentos às orientações da imprensa francesa, porque a mídia não vinha fazendo seu papel de informar de maneira imparcial a opinião pública aqui, repetindo a propaganda da Globo e do Estadão, sem checar os fatos, contextualizá-los ou multiplicar as fontes de informação, como deveria ter sido o caso.
Participando e dando visibilidade a protestos. Podem parecer ações distantes e sem muita consequência sobre o andamento da crise no Brasil, mas acho que o pior perigo é o da « normalização »: a aceitação de que « tudo bem, a constituição não foi exatamente respeitada; tudo bem, não foi bem democrático; mas… há a crise econômica, as olimpíadas, etc, outra coisa importa ». Ora, a democracia é o nosso bem comum mais precioso. Sua fragilização num país tão grande e poderoso quanto o Brasil é um problema global.
Carta Maior : Na sua fala no Senado, você ressaltou que todos os golpes no Brasil foram, historicamente, realizados em nome da democracia, inclusive o de 1964, que se autodenominou "Revolução democràtica" ou "redentora". Além disso, como historiadora, você lembrou que o STF nunca se distinguiu por defender as instituições. O que esperar de um governo Dilma, na hipótese de uma derrota do campo golpista na votação de 27 de agosto?
M.C : Acho que esse impeachment, que eu chamo de golpe, é um momento para o Brasil olhar para ele mesmo: seu sistema democrático, sua classe política, a permanência de estruturas autoritárias na sociedade. Em particular, olhar para uma certa « fachada » de democracia institucionalmente estabelecida, porém incapaz de não defender interesses particulares em situações de crise violenta.
Eu continuo torcendo para que Dilma volte ao poder em agosto, porque independentemente de tudo, um golpe de Estado deve ser derrotado. Contudo, eu acho que ela deverá virar a mesa e conseguir uma base política fora desse sistema que instrumentalizou a constituição para demiti-la: uma base nos movimentos sociais, na rua, na consulta direta do povo sobre pontos chaves do sistema político. Eu não sou geralmente a favor de uma « democracia plebiscitária », menos ainda antiparlamentar, eu confio no sistema representativo. Entretanto, no Brasil a democracia deve ser refundada.
Carta Maior : Por que o governo francês não condenou ainda o golpe em curso no Brasil? Pode-se esperar que ele venha a fazê-lo ou poderia parecer ingerência na política interna de um parceiro comercial, o que justificaria o silêncio?
M . C. : O governo francês teme, obviamente, acusações de ingerência. Além disso, o fato dos negócios brasileiros, e provavelmente de parte dos meios financeiros transnacionais, apoiarem a saída golpista, deve levar a uma vontade de cautela. O golpe foi também bem disfarçado: é mais fácil condenar carros de combate na rua, do que um impeachment mencionado na constituição, votado pela maioria dos parlamentares, apoiado pela opinião pública e por manifestações de rua… ainda que sem motivo legal. Por fim, temos de lembrar que condenações abertas de golpes foram raras na história das relações entre França e América Latina: nenhuma instauração de uma « ditadura de segurança nacional », nos anos 60 e 70, no mundo bipolar na época, foi formalmente condenada. A política estrangeira e a diplomacia respondem a outras lógicas que não são a ética e a defesa da democracia.
Eu acho, aliás, que devemos abrir o debate em outros campos: a França não tem interesse em um Brasil que desiste de uma estratégia de potência média, que desiste do multilateralismo, que volte à área de influência dos Estados Unidos. Quem tem visão pode perceber que a França não é mais uma grande potência e deve valorizar a construção de um mundo de potências médias. Isso é só um exemplo. Um outro é a necessidade de combater a onda neoliberal e ultra-conservadora numa escala global: deveria ser entendido como uma responsabilidade dos partidos progressistas na Europa, apesar de terem se afastado muito de suas origens de esquerda.
Créditos da foto: reprodução
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