O Poder Judiciário no epicentro da
crise política
Roberto Amaral
Os destinos da República se assentam sobre Poderes
fragilizados. Esta é a grande crise, por se revelar de corpo inteiro. Sua fonte
é a carência de legitimidade que se abate, a um só tempo, sobre o Executivo, o
Legislativo e o Judiciário.
Não obstante havermos conseguido, até aqui, e ainda que a
duras penas, preservar a ordem institucional, são graves e seguidos os ataques
ao pacto constitucional de 1988, do qual nos distanciamos dia a dia, e quanto
mais nos distanciamos mais nos apartamos da democracia representativa, do povo
e da Nação. Presos a uma História que teima em não se libertar do passado,
sempre visitado, adiamos, sistematicamente, o sonho de uma sociedade
comprometida com o combate às desigualdades econômicas, sociais e políticas, e
nos deixamos esmagar pela realidade perversa do catecismo neoliberal, cujos
princípios estão no projeto e na ação do governo interino (interino e
ilegítimo) que luta por se prorrogar, para, ainda mais desenvolto, levar a cabo
as políticas de restrições sociais. É a recidiva do modelo neoliberal que, após
haver fracassado em todo o mundo, nos ameaça com a concentração de riqueza, o
desmantelamento do Estado, a desorganização econômica e o comprometimento de
nossa soberania, já em adiantado curso.
Repita-se mil vezes: o golpe de Estado que visa à destituição
de Dilma Rousseff não é um fim em si, mas o instrumento, até aqui necessário,
de que se valem os setores hegemônicos da classe dominante para impor a regressão
neoliberal, em sua versão ultraconservadora e antinacional, anunciada pelo
governo títere. Ele se finca na aliança fática e ostensiva dos três poderes, em
crise, costurada pelos interesses do grande capital, que se estrutura na
Avenida Paulista e se expressa mediante o monopólio ideológico da mídia
oligopolizada, a seu serviço.
Não é por serem marionetes que mal camuflam os cordéis que os
comandam à distância, que esses poderes são menos responsáveis, pois nos
governam em nome do grande capital financeiro, em nome da elite econômica,
antidesenvolvimentista e antinacional, antipovo e antiprogresso, elite alienada
que pensa poder sobreviver à destruição do país, cuja pobreza não a assusta e
em cujo desenvolvimento não investe, por dele não depender.
Desgraçadamente, estamos à mercê de um Executivo sem
legitimidade, de um Legislativo sem representação (ademais de dominado por
procurados pela Justiça, como o ex-presidente da Câmara dos Deputados) e de um
Poder Judiciário que não cumpre adequadamente o dever de julgar, e nele de um
STF que atropela as competências dos demais poderes e desrespeita a
Constituição, que seus membros juraram cumprir e fazer cumprir. Como o
Executivo, hoje mais do que nunca, e como o Legislativo, o Poder Judiciário, em
todos os seus escalões, está a serviço dos interesses de classe dominantes.
Este é o fato objetivo. O resto, são suas consequências.
Mais do que nunca o país precisa ser ‘passado a limpo’, e a
proclamação de Darcy Ribeiro mais se torna atual, e inadiável, na medida em que
mais se enraízam os valores negativos representados pela dupla Cunha-Temer.
Segundo as mais variadas premissas e de acordo com os mais distintos objetivos,
a comunidade de juristas, constitucionalistas, analistas políticos e políticos
concordam com a defesa das reformas, que, no entanto não se realizam. Mais do
que nunca precisamos de uma reforma política que restabeleça a legitimidade dos
mandatos e nos aparte da falência do presidencialismo de coalizão, e de uma
reforma tributária que privilegie impostos sobre a renda e o patrimônio e não,
como hoje, atrelados ao consumo e a serviços, uma reforma que estimule a
produção e aponte para um novo equilíbrio da Federação. A mais importante das
reformas de que carecemos, porém, nela pouco se cogita. Refiro-me à inadiável
reforma do Poder Judiciário, porque sem ela não sobreviverá a opção
democrático-popular de que resultou a Constituição de 1988, o alvo preferencial
do golpismo conservador, que se vale do processo desse escabroso impeachment
sem crime de responsabilidade, em curso, para impor um regime autoritário já em
ensaio.
Em meio ao golpe de Estado de novo tipo, consagrado ele,
ingressaremos em uma ‘ditadura constitucional’.
Já hoje o próprio STF agride a Constituição, seja julgando
contra sua letra e seu espírito, seja imitindo-se de forma autoritária,
prepotente e inconstitucional, no papel de legislador constituinte. Ei-lo
legislando sobre fidelidade partidária, sobre culpabilidade sem trânsito em
julgado e autorizando o encarceramento antes da decisão final; ei-lo discutindo
regimentos internos do Legislativo; ei-lo decidindo sobre união estável e
aborto. Não se discute o mérito. Denuncia-se a invasão de competência que
agride a ordem constitucional, à qual todos os poderes estão submetidos. Agressões
que o STF perpetua dizendo-se ‘instrumento do clamor das ruas’, um populismo de
cabo de esquadra.
O STF, aliás, é, em nosso ordenamento constitucional, o único
dos poderes sem raiz na soberania popular, alheio que está à esfera política,
cumprindo-lhe, sem o poder de iniciativa (atributo dos demais poderes) a função
eminentemente técnica de vigiar a constitucionalidade das leis. Assim a letra
constitucional. Sua transformação em contrafação de poder politico, como
pretende a maioria de hoje e como anuncia orgulhoso seu presidente ("CNJ,
transparência e diálogo", Folha de SP, 25/7/2016), sua aspiração de
transformar-se em poder moderador, um anacronismo monárquico, é, pois, mais do
que uma exorbitância, uma agressão à história do direito brasileiro e uma aberração
constitucional cuja sobrevivência deriva da anemia político-moral do Congresso.
De outra parte, o Poder Judiciário é poder autoblindado, que
refuga a transparência e a responsabilidade, fugindo a qualquer sorte de
fiscalização da sociedade, na contramão dos demais poderes, políticos e animados
em sua gênese pelo sopro da soberania popular. E de forma pouco ética: quando
os funcionários públicos sofrem as consequências do ‘ajuste fiscal’, impõe o
reajuste dos altíssimos salários (considerada a realidade brasileira) de juízes
e ministros. Desses não pode o contribuinte saber quanto percebem de outras
fontes, e não são poucas, e é negado aos advogados conhecer a intimidade do
processo eletrônico que orientaria a distribuição dos processos no STF.
Perseguindo o protagonismo político que não está em sua
alçada, o STF, olímpico, inalcançável, leva alguns ministros mais afoitos (e à
lembrança vem sempre o inefável Gilmar Mendes – aquele que ‘não disfarça’ como
bem observa o jornalista Bernardo Mello Franco), esquecendo a circunspecção, a
discrição, o recato e a moderação – exigências do Código de Ética da
Magistratura – para aderir ao exibicionismo, à verbosidade irresponsável, à
incontinência verbal, em episódios seguidos de prejulgamento, de pronunciamentos
políticos que desvendam preferências politicas expressamente vedadas pela Constituição
Federal (Artigo 95, parágrafo único, inciso III). A velha máxima de que ‘juiz
só fala nos autos’ foi revogada entre nós. Lamentavelmente.
Na sua desmedida ânsia de protagonismo – que o leva a tomar
partido na crise política -, o STF termina por perder a aura de isenção e
respeitabilidade que seu papel constitucional exige.
Por tudo quanto dito e sabido, resulta um STF feito agente da
insegurança jurídica, pois destrói o primado da ordem constitucional e altera
sua jurisprudência, seguidamente, em função de maiorias ocasionais. Assim age
principalmente quando – por razões político-policiais – rasga o inciso LVII do
art. 5º da C.F. (“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória”); quando assim procede, a Corte diz que, sob o
pretexto de interpretar o que não carece de interpretação, assume contrariar o
texto da Constituição. E dito isto e feito isto, o cidadão ofendido, vítima do
abuso de direito, não tem a quem recorrer, a quem pedir proteção. É
inadmissível que um ministro claramente associado a um partido político (seja
feita justiça ao Sr. Gilmar Mendes, ‘ele não disfarça’), tenha condições de
interromper um julgamento já decidido (já se haviam pronunciado seis ministros
no colégio de 11), pedindo vistas dos autos e trancando-os em suas gavetas por
mais de um ano, com o único e confessado propósito de evitar a eficácia da
decisão, que, no seu entender faccioso, beneficiaria um determinado partido
politico. É igualmente inadmissível que, em pleno presidencialismo, a
presidente da República seja impedida de nomear o ministro chefe da Casa Civil,
sob o pretexto insustentável, porque subjetivo, de que a nomeação teria a
intenção de proteger o ex-presidente Lula com o foro privilegiado.
Essas observações chamam para a necessidade de uma profunda
reforma judiciária (e nela do STF), pois, sem poder judiciário íntegro e
democrático, não há a menor possibilidade de exercício real da democracia. Essa
reforma – quando seu objetivo é o fortalecimento da democracia – deverá
compreender, no que tange ao STF, entre muitas outras medidas mais ou menos
profundas, o fim da vitaliciedade, substituída pelo mandato não renovável de 10
anos. Qualquer reforma deverá construir instrumentos eficazes de fiscalização
do Poder Judiciário (que está longe de ser cumprida pelo Conselho Nacional de
Justiça), e nele do STF e dos demais tribunais superiores, e dentre essas
reformas estará a facilitação dos julgamentos dos ministros por crimes de
responsabilidade, hoje dependentes da coragem ou da tibieza de um presidente do
Senado ameaçado de processo pelo próprio STF.
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