O
impeachment do ministro e a pantomima de Curitiba
Roberto Amaral
Um dos elementos mais constrangedores da grave crise
político-institucional de nossos dias, que ameaça engolfar de vez os
fundamentos da democracia representativa, é a partidarização em curso do Poder
Judiciário, instituição já de si pouco republicana e que, não obstante,
pretende pairar acima dos demais poderes, exatamente ele, o único que não
deriva da soberania popular. Protegidos seus membros por uma vitaliciedade
injustificável, foge o Judiciário como um todo e o Supremo Tribunal Federal em
particular, de qualquer transparência, blindando-se, anacrônico Olimpo, em uma
irresponsabilidade monárquica e em um corporativismo autoprojetor que estimula
comportamentos não condizentes com o exercício da magistratura.
Essa partidarização do Poder Judiciário é tanto mais
assustadora quando se soma à presente partidarização do Ministério Público, de
que são exemplo as peripécias dos procuradores que atuam na denominada operação
Lava-Jato.
A quem cabe chamar ‘as partes’ ao bom-senso?
A Corte Suprema pode ser avaliada pelo que fazem e deixam de
fazer seus membros, julgando e deixando de julgar, silenciando e falando.
Última instância à qual pode recorrer o cidadão, a judicatura suprema, exige,
por isso mesmo, de seus pares, imparcialidade, integridade, prudência e decoro.
O Código de Ética da Magistratura condena a incontinência verbal, o
prejulgamento e a revelação de inclinação ou voto futuro em causa sujeitam a
julgamento, e veda a um só tempo a filiação partidária e a expressão de
preferências políticas.
A Constituição Federal (Art.95, parágrafo único, III)
refere-se a “atividade político-partidária” para estabelecer seu crivo à
hipótese mais larga de filiação política que é a filiação programática, a
associação de interesses político-eleitorais e finalmente, a judicatura
comprometida, de que é/tem sido contundente exemplo o comportamento do ministro
Gilmar Mendes.
Conhecido pela imprensa como “aquele que não disfarça”, o
ministro, atua, tanto no STF quanto no TSE, como em suas entrevistas, em suas
palestras, em suas aulas, em seu Instituto, como líder de uma facção
partidária, agredindo os princípios constitucionais da impessoalidade e da
imparcialidade, além de desafiar permanente e deliberadamente os limites
comportamentais estabelecidos pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional.
No exercício do cargo de ministro do STF, Gilmar Mendes eiva
de parcialidade um Tribunal que por definição constitucional deve perseguir a
isenção e que chega mesmo a reivindicar o papel de ‘poder moderador’ da
República. Na presidência do TSE é ameaça à lisura da Justiça. Ameaça
antecipada por Dalmo de Abreu Dallari no artigo “Degradação do Judiciário” (FSP
de 8 de maio de 2002). Escrevia o antigo professor da Faculdade de Direito da
USP: “Se essa indicação [a de Gilmar Mendes para o STF] vier a ser aprovada
pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a
proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade
constitucional”.
Como se vê, Dallari não estava exagerando.
Pode um ministro do STF antecipar seu voto mediante
declarações à imprensa sobre questão sob julgamento do STF, agredindo o art. 36
da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que proíbe o magistrado “manifestar,
por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento,
seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de
órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no
exercício do magistério”?
Pode um juiz agredir o Código de Ética da Magistratura que
exige (art. 1º) de seus membros conduta norteada “pelos princípios da
independência, da imparcialidade, do conhecimento e capacitação, da cortesia,
da transparência, do segredo profissional, da prudência, da diligência, da
integridade profissional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro”?
Pode o ministro Gilmar falar sobre questões sob julgamento e
votar como líder do antipetismo e como líder, no STF, da oposição ao governo da
presidente Dilma Rousseff?
Gilmar Mendes permitiu-se buscar os holofotes no episódio da
indicação de Lula para o ministério de Dilma, por ele acusada de estratagema
que visava a inviabilizar eventual julgamento do ex-presidente. Foi pródigo em
diatribes, que a imprensa registrou. Não obstante, nomeado relator de
discutível mandado de segurança interposto pelo PSDB e seu satélite PPS contra
a posse de Lula na Casa Civil, não se sentiu impedido, não teve o pejo de
conceder liminar sustando a nomeação – ajuizada, aliás, por advogado que atua
em escritório integrado por seu cônjuge.
Foi-se o tempo em que o juiz só falava nos autos.
Em artigo publicado na imprensa (“Judicatura e dever de
recato”, Folha de SP, 13/9/2015), Ricardo Lewandowski, então presidente do STF,
escrevia: “A circunspecção e discrição sempre foram consideradas qualidades
intrínsecas dos bons magistrados, ao passo que a loquacidade e o exibicionismo
eram – e continuam sendo – vistas com desconfiança, quando não objeto de franca
repulsa por parte de colegas, advogados, membros do Ministério Público e
jurisdicionados”.
Foi-se o tempo em que os ministros, essencialmente recatados,
só recebiam as partes em seus gabinetes. Evandro Lins e Silva estranhava a
promiscuidade de juízes, partes e advogados nos bares e restaurantes de
Brasília, onde se trava e muitas vezes se decide a campanha eleitoral dos
candidatos aos tribunais superiores. É ‘o protagonismo extramuros’, que Mendes
também desenvolve em palestras para empresários, agenciadas por instituto de
que é dono, e participando de convescotes reunindo políticos com interesses notórios
no STF e no TSE.
Senão, vejamos. Após almoço com líderes do PSDB, o ministro
Gilmar Mendes pede abertura de processo visando à cassação do registro do
Partido dos Trabalhadores.
Apesar de o Regimento do STF precisar em 30 dias o prazo para
devolução dos autos sob pedido de vista, Mendes sentou-se por longos dezoito
meses sobre o processo que julgava a ADI interposta pelo Conselho Federal da
OAB para declarar inconstitucional o financiamento privado das eleições. Em seu
voto de longas e cansativas cinco horas, o ministro anuncia que estava tentando
impedir o que qualificou de “manobra” do PT mancomunado com a OAB!
Recentemente, permitiu-se declarar, em mais um arroubo de sua conhecida
incontinência verbal, que considera a chamada ‘Lei da Ficha Limpa’, originária
de iniciativa popular, obra de bêbados, e criticar a lei eleitoral que, como
presidente do TSE tem a obrigação funcional de fazer respeitada.
Justamente preocupada com tanto atentado à ordem jurídica, a Folha de São Paulo cobrou mais
responsabilidade do STF. Após registrar sinais de comprometimento de Gilmar
Mendes com os interesses do presidente do PSDB e ex-candidato Aécio Neves,
aconselha os ministros a evitar “atitudes que destoem das práticas do
Judiciário” (editorial “Seguir a cartilha”, 30/05/2016). O jornal não esconde
seu alvo: “Isso vale especialmente para o ministro Gilmar, que agora acumula a
presidência do Tribunal Superior Eleitoral com a da segunda turma do Supremo,
responsável por julgar os processos da Lava-Jato”.
O ministro com nada disso se importa, e por nada disso se
emenda.
Atentos a tantos descaminhos um grupo de juristas brasileiros
– Celso Antônio Bandeira de Melo, Fábio Konder Comparato, Álvaro Ribeiro da
Costa, Sérgio Sérvulo da Cunha, Eny Moreira e este escriba – ingressaram na
presidência do Senado Federal com pedido de impeachment do ministro Gilmar
Ferreira Mendes, nos termos do Art. 52, inciso II, da Constituição Federal, e
da lei nº 1079/1950. Acusamos formalmente o ministro de comportamento
partidário, pois no exercício de suas funções judicantes tem-se mostrado
extremamente leniente com relação a casos do interesse do PSDB e de seus
filiados, tanto quanto rigoroso (mas desprimoroso em seu linguajar pouco
canônico) no julgamento de casos de interesse do Partido dos Trabalhadores e de
seus filiados, nomeadamente os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma
Rousseff, não escondendo, pois se considera acima das leis, sua simpatia por
aqueles e sua ojeriza por estes.
São nossas testemunhas o escritor Fernando Morais, a
historiadora Isabel Lustosa, o jornalista e escritor José Carlos de Assis, o
ex-deputado Aldo Arantes, o historiador e professor Lincoln Pena. O dr. Marcelo
Lavenère, ex-presidente do Conselho Federal da OAB, é o advogado que
acompanhará o processo no Senado Federal. O recebimento da denúncia depende de
decisão pessoal do presidente do Senado, senador Renan Calheiros, ameaçado,
como outros senadores, por diversos processos correndo no STF. Se o presidente
do Senado sentir-se constrangido em face da decisão que haverá de adotar, como
não se sentirão os magistrados brasileiros e seus jurisdicionados de um modo
geral? A ação, pois, não é contra um ministro determinado, mas em defesa da
magistratura e do direito brasileiro, ora achincalhado.
Teatro burlesco – A imprensa foi chamada nesta última
quarta-feira (14/9) para entrevista coletiva mediante a qual seria anunciada,
como o foi, a de há muito prometida denúncia contra o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, pois, ao fim e ao cabo é esse o desideratum de toda a faina
policialesca corrente: assassinar politicamente o ex-presidente Lula. No centro
do histrionismo digno da fase mais decadente dos teatrinhos da velha Lapa, no
Rio de Janeiro, sobressaíram as dificuldades cênicas do procurador Deltan
Dallangnol, tentando suprir a ausência de elementos com uma retórica canhestra
e uma adjetivação de bar de esquina, que está a cobrar uma palavra de seu
chefe, o Procurador Rodrigo Janot. Faltaram aos procuradores as provas que o
direito pede, e sobraram as convicções que certo fundamentalismo estimula.
Mas acusar sem provas é mais do que irresponsabilidade, pois
se transforma em crime de difamação. Similar à pantomina da República de
Curitiba vem à lembrança aquela outra do esquecido coronel Job Lorena de
Sant’Anna, apresentando o resultado do IPM sobre o ‘atentado do Riocentro’,
quando um sargento morreu no exato momento em que auxiliava um oficial do
exército (na chefia da operação) na montagem de uma ação terrorista felizmente
fracassada. O coronel, valendo-se também de projeções e muitos desenhos e muita
inventividade e adjetivos a granel, anunciou em entrevista para a qual também
foi chamada a grande mídia, que lhe deu os espaços requeridos, que os
responsáveis pelo atentado frustrado e pela morte do militar ‘eram os
comunistas’, milhares de jovens que no interior do Riocentro – um gigantesco
Centro de Convenções na Barra da Tijuca, RJ, se preparavam para ouvir Chico
Buarque de Holanda. Jovens que seriam assassinados se a bomba não tivesse
explodido no colo do sargento auxiliar do capitão terrorista.
O que estamos a ver, e viver, porém, não passa de mais um
capítulo na sucessão de episódios lamentáveis que caracterizam, após o golpe
continuado, a gradual implantação da ‘ditadura constitucional’. A tentativa de
eliminação de Lula é apenas mais um episódio, violento, mas apenas mais um numa
sucessão de agressões planejadas.
Outras virão.
Fonte: Blog do Roberto Amaral
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