domingo, 18 de setembro de 2016

O IMPEACHMENT DO MINISTRO E A PANTOMIMA DE CURITIBA

O impeachment do ministro e a pantomima de Curitiba
Roberto Amaral
Um dos elementos mais constrangedores da grave crise político-institucional de nossos dias, que ameaça engolfar de vez os fundamentos da democracia representativa, é a partidarização em curso do Poder Judiciário, instituição já de si pouco republicana e que, não obstante, pretende pairar acima dos demais poderes, exatamente ele, o único que não deriva da soberania popular. Protegidos seus membros por uma vitaliciedade injustificável, foge o Judiciário como um todo e o Supremo Tribunal Federal em particular, de qualquer transparência, blindando-se, anacrônico Olimpo, em uma irresponsabilidade monárquica e em um corporativismo autoprojetor que estimula comportamentos não condizentes com o exercício da magistratura.
Essa partidarização do Poder Judiciário é tanto mais assustadora quando se soma à presente partidarização do Ministério Público, de que são exemplo as peripécias dos procuradores que atuam na denominada operação Lava-Jato.
A quem cabe chamar ‘as partes’ ao bom-senso?
A Corte Suprema pode ser avaliada pelo que fazem e deixam de fazer seus membros, julgando e deixando de julgar, silenciando e falando. Última instância à qual pode recorrer o cidadão, a judicatura suprema, exige, por isso mesmo, de seus pares, imparcialidade, integridade, prudência e decoro. O Código de Ética da Magistratura condena a incontinência verbal, o prejulgamento e a revelação de inclinação ou voto futuro em causa sujeitam a julgamento, e veda a um só tempo a filiação partidária e a expressão de preferências políticas.
A Constituição Federal (Art.95, parágrafo único, III) refere-se a “atividade político-partidária” para estabelecer seu crivo à hipótese mais larga de filiação política que é a filiação programática, a associação de interesses político-eleitorais e finalmente, a judicatura comprometida, de que é/tem sido contundente exemplo o comportamento do ministro Gilmar Mendes.
Conhecido pela imprensa como “aquele que não disfarça”, o ministro, atua, tanto no STF quanto no TSE, como em suas entrevistas, em suas palestras, em suas aulas, em seu Instituto, como líder de uma facção partidária, agredindo os princípios constitucionais da impessoalidade e da imparcialidade, além de desafiar permanente e deliberadamente os limites comportamentais estabelecidos pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional.
No exercício do cargo de ministro do STF, Gilmar Mendes eiva de parcialidade um Tribunal que por definição constitucional deve perseguir a isenção e que chega mesmo a reivindicar o papel de ‘poder moderador’ da República. Na presidência do TSE é ameaça à lisura da Justiça. Ameaça antecipada por Dalmo de Abreu Dallari no artigo “Degradação do Judiciário” (FSP de 8 de maio de 2002). Escrevia o antigo professor da Faculdade de Direito da USP: “Se essa indicação [a de Gilmar Mendes para o STF] vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional”.
Como se vê, Dallari não estava exagerando.
Pode um ministro do STF antecipar seu voto mediante declarações à imprensa sobre questão sob julgamento do STF, agredindo o art. 36 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que proíbe o magistrado “manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério”?
Pode um juiz agredir o Código de Ética da Magistratura que exige (art. 1º) de seus membros conduta norteada “pelos princípios da independência, da imparcialidade, do conhecimento e capacitação, da cortesia, da transparência, do segredo profissional, da prudência, da diligência, da integridade profissional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro”?
Pode o ministro Gilmar falar sobre questões sob julgamento e votar como líder do antipetismo e como líder, no STF, da oposição ao governo da presidente Dilma Rousseff?
Gilmar Mendes permitiu-se buscar os holofotes no episódio da indicação de Lula para o ministério de Dilma, por ele acusada de estratagema que visava a inviabilizar eventual julgamento do ex-presidente. Foi pródigo em diatribes, que a imprensa registrou. Não obstante, nomeado relator de discutível mandado de segurança interposto pelo PSDB e seu satélite PPS contra a posse de Lula na Casa Civil, não se sentiu impedido, não teve o pejo de conceder liminar sustando a nomeação – ajuizada, aliás, por advogado que atua em escritório integrado por seu cônjuge.
Foi-se o tempo em que o juiz só falava nos autos.
Em artigo publicado na imprensa (“Judicatura e dever de recato”, Folha de SP, 13/9/2015), Ricardo Lewandowski, então presidente do STF, escrevia: “A circunspecção e discrição sempre foram consideradas qualidades intrínsecas dos bons magistrados, ao passo que a loquacidade e o exibicionismo eram – e continuam sendo – vistas com desconfiança, quando não objeto de franca repulsa por parte de colegas, advogados, membros do Ministério Público e jurisdicionados”.
Foi-se o tempo em que os ministros, essencialmente recatados, só recebiam as partes em seus gabinetes. Evandro Lins e Silva estranhava a promiscuidade de juízes, partes e advogados nos bares e restaurantes de Brasília, onde se trava e muitas vezes se decide a campanha eleitoral dos candidatos aos tribunais superiores. É ‘o protagonismo extramuros’, que Mendes também desenvolve em palestras para empresários, agenciadas por instituto de que é dono, e participando de convescotes reunindo políticos com interesses notórios no STF e no TSE.
Senão, vejamos. Após almoço com líderes do PSDB, o ministro Gilmar Mendes pede abertura de processo visando à cassação do registro do Partido dos Trabalhadores.
Apesar de o Regimento do STF precisar em 30 dias o prazo para devolução dos autos sob pedido de vista, Mendes sentou-se por longos dezoito meses sobre o processo que julgava a ADI interposta pelo Conselho Federal da OAB para declarar inconstitucional o financiamento privado das eleições. Em seu voto de longas e cansativas cinco horas, o ministro anuncia que estava tentando impedir o que qualificou de “manobra” do PT mancomunado com a OAB! Recentemente, permitiu-se declarar, em mais um arroubo de sua conhecida incontinência verbal, que considera a chamada ‘Lei da Ficha Limpa’, originária de iniciativa popular, obra de bêbados, e criticar a lei eleitoral que, como presidente do TSE tem a obrigação funcional de fazer respeitada.
Justamente preocupada com tanto atentado à ordem jurídica, a Folha de São Paulo cobrou mais responsabilidade do STF. Após registrar sinais de comprometimento de Gilmar Mendes com os interesses do presidente do PSDB e ex-candidato Aécio Neves, aconselha os ministros a evitar “atitudes que destoem das práticas do Judiciário” (editorial “Seguir a cartilha”, 30/05/2016). O jornal não esconde seu alvo: “Isso vale especialmente para o ministro Gilmar, que agora acumula a presidência do Tribunal Superior Eleitoral com a da segunda turma do Supremo, responsável por julgar os processos da Lava-Jato”.
O ministro com nada disso se importa, e por nada disso se emenda.
Atentos a tantos descaminhos um grupo de juristas brasileiros – Celso Antônio Bandeira de Melo, Fábio Konder Comparato, Álvaro Ribeiro da Costa, Sérgio Sérvulo da Cunha, Eny Moreira e este escriba – ingressaram na presidência do Senado Federal com pedido de impeachment do ministro Gilmar Ferreira Mendes, nos termos do Art. 52, inciso II, da Constituição Federal, e da lei nº 1079/1950. Acusamos formalmente o ministro de comportamento partidário, pois no exercício de suas funções judicantes tem-se mostrado extremamente leniente com relação a casos do interesse do PSDB e de seus filiados, tanto quanto rigoroso (mas desprimoroso em seu linguajar pouco canônico) no julgamento de casos de interesse do Partido dos Trabalhadores e de seus filiados, nomeadamente os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, não escondendo, pois se considera acima das leis, sua simpatia por aqueles e sua ojeriza por estes.
São nossas testemunhas o escritor Fernando Morais, a historiadora Isabel Lustosa, o jornalista e escritor José Carlos de Assis, o ex-deputado Aldo Arantes, o historiador e professor Lincoln Pena. O dr. Marcelo Lavenère, ex-presidente do Conselho Federal da OAB, é o advogado que acompanhará o processo no Senado Federal. O recebimento da denúncia depende de decisão pessoal do presidente do Senado, senador Renan Calheiros, ameaçado, como outros senadores, por diversos processos correndo no STF. Se o presidente do Senado sentir-se constrangido em face da decisão que haverá de adotar, como não se sentirão os magistrados brasileiros e seus jurisdicionados de um modo geral? A ação, pois, não é contra um ministro determinado, mas em defesa da magistratura e do direito brasileiro, ora achincalhado.
Teatro burlesco – A imprensa foi chamada nesta última quarta-feira (14/9) para entrevista coletiva mediante a qual seria anunciada, como o foi, a de há muito prometida denúncia contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pois, ao fim e ao cabo é esse o desideratum de toda a faina policialesca corrente: assassinar politicamente o ex-presidente Lula. No centro do histrionismo digno da fase mais decadente dos teatrinhos da velha Lapa, no Rio de Janeiro, sobressaíram as dificuldades cênicas do procurador Deltan Dallangnol, tentando suprir a ausência de elementos com uma retórica canhestra e uma adjetivação de bar de esquina, que está a cobrar uma palavra de seu chefe, o Procurador Rodrigo Janot. Faltaram aos procuradores as provas que o direito pede, e sobraram as convicções que certo fundamentalismo estimula.
Mas acusar sem provas é mais do que irresponsabilidade, pois se transforma em crime de difamação. Similar à pantomina da República de Curitiba vem à lembrança aquela outra do esquecido coronel Job Lorena de Sant’Anna, apresentando o resultado do IPM sobre o ‘atentado do Riocentro’, quando um sargento morreu no exato momento em que auxiliava um oficial do exército (na chefia da operação) na montagem de uma ação terrorista felizmente fracassada. O coronel, valendo-se também de projeções e muitos desenhos e muita inventividade e adjetivos a granel, anunciou em entrevista para a qual também foi chamada a grande mídia, que lhe deu os espaços requeridos, que os responsáveis pelo atentado frustrado e pela morte do militar ‘eram os comunistas’, milhares de jovens que no interior do Riocentro – um gigantesco Centro de Convenções na Barra da Tijuca, RJ, se preparavam para ouvir Chico Buarque de Holanda. Jovens que seriam assassinados se a bomba não tivesse explodido no colo do sargento auxiliar do capitão terrorista.
O que estamos a ver, e viver, porém, não passa de mais um capítulo na sucessão de episódios lamentáveis que caracterizam, após o golpe continuado, a gradual implantação da ‘ditadura constitucional’. A tentativa de eliminação de Lula é apenas mais um episódio, violento, mas apenas mais um numa sucessão de agressões planejadas.
Outras virão.


Fonte: Blog do Roberto Amaral

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