Roberto Amaral
O golpe de Estado
que confiscou o mandato da presidente Dilma Rousseff e feriu de morte a
soberania do voto, pedra angular da democracia representativa, não se consumou
no dia 31 de agosto, quando o Senado Federal, prostrando-se de cócoras para
ficar no mesmo nível da Câmara dos Deputados do dia 17 de abril, votou o
impedimento. A arquitetura do processo golpista remonta ao final das eleições
de 2014, quando o PSDB primeiro tenta eivar de fraude o processo eleitoral, e
em seguida, interpõe recurso junto ao TSE visando à cassação da chapa
Dilma-Temer, o que, não sabiam os tucanos naquele então, poderá brevemente lhes
trazer sérias dores de cabeça. Outra peça dessa articulação golpista, que não
foi obra dos céus nem produto do acaso, foi a eleição de Eduardo Cunha (o líder
efetivo do PMDB) e, na sequência, a utilização da Câmara dos Deputados como
instrumento de desestabilização do governo. O presidente defenestrado da
Câmara, líder do baixo clero e de seus pleitos nada republicanos, não tinha
estatura para ser sujeito nesse projeto, não contasse, como efetivamente
contou, com o apoio do PMDB e nele do seu presidente Michel Temer, além dos
partidos que se coligaram na oposição (PSDB, DEM, PSB, PPS, PP etc.).
Financiando a uns e a outros, e muitas vezes investindo diretamente, atuaram as
grandes corporações, como a FIESP – o grande clube dos sonegadores de impostos
– e a mídia, monopolizada política e ideologicamente: os grandes jornais se
reproduzem nos jornais de província, e o telespectador assiste à rede Globo
mesmo quando sintoniza a Bandeirantes ou a Record ou o SBT, ou essa ou aquela
emissora. A conspiração (que sempre contou com agentes dentro do próprio
governo) sai da escuridão quando o vice perjuro deixa à mostra suas garras ao
pretextar motivos para abandonar a coordenação política do governo e ingressar,
a partir daí abertamente, na conjuração. Registre-se: a liderança do golpe é
assumida à luz do dia pelo ex-coordenador político do governo, vice-presidente
da República e beneficiário direto do impeachment.
O primeiro grande
lance, porém, é desferido pelo STF, quando o ministro Gilmar Mendes (sempre
ele) concede liminar nos autos de mandado de segurança virtualmente proibindo –
um escândalo no presidencialismo – a presidente da República de nomear o ministro
chefe de sua Casa Civil.
Minoritária no
Congresso, acossada por um STF partidarizado, sabotada internamente sua
administração, a presidente Dilma tinha a governança seguidamente ferida. Com
esse pano de fundo caminhava na Câmara o pedido de impeachment. A longa
tramitação nas duas Casas, e, afinal, o decreto cassatório no Senado Federal,
tanto quanto a campanha de imprensa e as mobilizações de rua, são peças de um
processo único e ainda não concluído, pois seu objetivo de longo prazo é um
governo antipopular e antinacional, no qual será possível reprimir a emergência
político-social das massas. O ponto de partida é o ‘ajuste’ imposto pela banca
internacional e operado pelo banqueiro goiano Henrique Meirelles, com o apoio
da Avenida Paulista.
Os golpistas, tendo
claro o objetivo final, adotaram uma metodologia de implantação gradual, e não
recuarão até terem completado a implantação do novo regime. Não se deve,
portanto, tê-lo (o golpe), hoje, como obra finda e acabada. Trata-se de golpe
de implantação peça a peça; trata-se de ‘golpe continuado’ em operação
contínua. Noutras palavras, muitas operações ainda estão por surpreender os que
não acompanham o processo histórico.
A burocrática
presença do ministro Ricardo Lewandosky na presidência da sessão do Senado, e a
liturgia barroca do ‘julgamento’ de cartas marcadas, tinham por objetivo
simplesmente passar para a opinião pública nacos de formalismo legal,
encobrindo uma pantomima desde a origem, carente de legitimidade. Nem a
liturgia era séria, nem os senadores são julgadores (de ‘juízes’ foram chamados
pelo presidente do STF) no sentido estrito do vocábulo, nem o STF é isento,
como não se cansa de demonstrar o inefável ministro Gilmar Mendes.
O formalismo vazio
e a pompa démodé foram levados com extremo rigor, mas em vão, pois o país sabe
que a confirmação pelo Senado do impeachment anunciado com tanta antecedência
(e carente de requisito indispensável em tal processo, que é a evidência de crime de responsabilidade, como exige a
Constituição) consiste num golpe de Estado, atípico, vestibular da regressão
social que pede o Estado policial.
As recentes
manifestações populares, a começar pela massiva concentração de São Paulo no
domingo 4 de setembro, antecipando as vaias ao presidente de fato na Parada de
7 de Setembro, em Brasília, e na abertura das Paraolimpíadas no Maracanã,
revelam que a população brasileira não apenas está convencida de que Dilma
Rousseff foi vitima de um golpe de Estado, como o repele da forma a mais
profunda e significativa. E rejeita o governo de seu beneficiário.
‘Diretas, já!’
O ‘Fora, Temer’
percorre hoje o país como verdadeiro rastilho de pólvora e brevemente o
‘Diretas-já’ de 2016 poderá transformar-se numa reivindicação popular de
consequências imprevisíveis.
Esse sentimento foi
renovado, ainda no 7 de setembro, no tradicional ‘Grito dos Excluídos’,
transformado em ação contra Temer, com mobilizações populares, movimentações de
massa que se repetiram em quase todas as capitais do país. E em todas elas,
destacou-se um público majoritariamente jovem, aguerrido, generoso, que,
encontrando o caminho das ruas, dele não deverá afastar-se, tão cedo, e muito
menos de mãos vazias.
Nos seus primeiros
momentos pós-impeachment, Michel Temer era um presidente sem liderança e
desabonado de voto popular. Hoje, ainda mais impopular, é um dirigente
rejeitado, e assim, incapaz de realizar o governo para cuja implantação o golpe
foi dado. As medidas que lhe cobram como pagamento pelo passe aumentarão esse
fosso e essa rejeição, impondo-lhe a opção pelo Estado policial – de que foi
significativa, para quem quiser ver, a repressão brutal da polícia de Geraldo
Alckmin à manifestação ordeira e pacífica do domingo paulistano.
A direita
brasileira não tem, jamais teve, compromissos com a democracia, que muitas
vezes reivindica para poder destruí-la, como fez com o golpe de 1964. Da mesma
forma, essa direita jamais teve compromissos com a legalidade – basta lembrar
1954, 1955, 1961 e 1964 – ou com a ordem constitucional. Tampouco tem
compromisso com o processo eleitoral, que nega, quando não atende aos seus
interesses, como quando tentou impedir a posse de Juscelino Kubitscheck e
agora, quando rasga os mais de 54 milhões de votos dados a Dilma Rousseff. A
trajetória da direita, no Brasil, em toda a nossa História, mas particularmente
na República, está vinculada a regimes de exceção e a golpes de Estado, e este
em implantação é apenas mais um, como a ‘ditadura constitucional’ que
necessariamente implantará para poder cumprir com seus objetivos.
A direita de hoje é
a direita de ontem e agirá como sempre agiu. Estamos apenas no começo do drama.
Mas, ensina a
terceira lei de Newton (do movimento) que “a toda ação corresponde uma ação
contrária da mesma intensidade”. Ou seja, não há uma força isolada, mas sempre
uma interação. Assim na Física como na vida social. A ação reacionária, com
suas ameaças, trouxe o povo de volta às ruas e o reconciliou com as lideranças
de esquerda, e, como se cumprisse um ofício pedagógico, está ensinando que a
ação é possível e necessária.
Não nos esqueçamos,
porém, de que a ação, a descoberta da possiblidade da ação, não é tudo, embora
importe em grande avanço. Ela cobra um salto de qualidade, que se chama Organização.
Ademais, como se
cumprisse um ofício pedagógico, está ensinando que a ação não só é possível
como é necessária. A experiência do movimento social traz à tona, mais uma vez,
o imperativo da unidade e da política de frente conduzindo a ação. Está, pois,
colocada para as forças populares, para as forças sindicais, para os assalariados
de um modo geral e para a juventude – que retoma seu papel de sujeito – a
grande oportunidade da inadiável revisão de procedimentos e de práticas, sem
prejuízo da intervenção imediata. A crise de hoje questiona a primazia do
eleitoralismo sobre o processo revolucionário, e questiona o pragmatismo como a
melhor via de construção partidária.
Quando nossos
partidos farão a necessária autocrítica?
Os partidos da
esquerda organizada – que recém perderam o papel de condutores do processo –
têm, agora, a oportunidade do reencontro com as grandes massas. O contraponto à
ofensiva da direita pode ser o grande instrumento de politização das massas e
de retomada, pela esquerda, dos princípios da democracia plena.
Fonte: Blog do Roberto Amaral 10/09/2016
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