terça-feira, 20 de setembro de 2016

Renegociação tributária e política fiscal As águas só correm para o mar!

20/09/2016 10:43 - Copyleft

Renegociação tributária e política fiscal

Solicita-se de todos um enorme sacrifício para evitar o caos, mas as camadas do alto da pirâmide são sistematicamente poupadas de suas perdas.


Paulo Kliass*
Lula Marques
O Ministro Marcos Pereira lançou a senha na esteira da viagem do Presidente Temer e de sua vasta equipe para a Assembleia Geral da ONU em Nova Iorque. De acordo com declarações do responsável pela pasta renomeada como “Indústria, Comércio Exterior e Serviços”, o governo estaria preparando um novo pacote do chamado REFIS. É bem verdade que o antes todo-poderoso MDIC ficou bem mais minguado depois da chegada do PMDB ao Palácio do Planalto: o BNDES foi para o Ministério do Planejamento e a área de comércio exterior foi, de fato, para o Itamaraty sob os (des)cuidados de José Serra.
 
Isso significou uma estrutura ministerial mais fraca, com menos atribuições e competências, com menor poder de pressão e barganha. Talvez tenha sido essa a razão para mais um vazamento de informações à imprensa, bem à maneira desastrada que vem caracterizando o atual governo. Afinal, todo mundo sabe que assuntos de natureza tributária dizem respeito exclusivamente à competência do Ministério da Fazenda. E tudo o que a equipe econômica não quer para o momento são complicações no difícil equacionamento de medidas da política fiscal. Henrique Meirelles tem suado um bocado a camisa para convencer os membros do Congresso Nacional a respeito da necessidade de aprovação das novas etapas de sua estratégia de austericídio como caminho para retomar o crescimento. É forçoso reconhecer que tem enfrentado um sem número de obstáculos nessa hercúlea missão.
 
Há muito tempo que o mantra da busca incansável do equilíbrio macroeconômico tem lançado suas luzes exclusivamente sobre a necessidade de geração de superávit primário no balanço das contas públicas. Assim, toda e qualquer medida que envolva redução da capacidade arrecadatória significa a diminuição do volume de receitas orçamentárias a serem obtidas pelo Estado. Com isso, o esforço desse superávit viesado termina por recair de forma ainda mais pesada sobre o ajuste nas despesas primárias, ou seja, sobre a contenção dos gastos de natureza social e os investimentos. É dentro dessa lógica que deve ser analisada a sugestão do dublê de pastor e ministro do PRB, atualmente responsável por parte da agenda governamental associada a temas da indústria, do comércio e dos serviços. 
 
Refis: bondade para o capital.





 
O Programa de Recuperação Fiscal (Refis) tem uma de suas origens em uma lei aprovada em 2000,ainda durante o governo FHC, quando foram estabelecidas as regras mais gerais para o reconhecimento explícito da sonegação empresarial e o anúncio oficial de seu perdão por parte do fisco. A partir de então, esse tipo de medida tornou-se uma prática de frequência quase anual, estimulando o não pagamento das obrigações tributárias por parte das grandes empresas. À medida que o próprio governo sinaliza com a edição de um nova versão do Refis a cada ano, os consultores especializados em “planejamento tributário” orientam seus clientes a não pagarem os valores devidos. É melhor esperar e decidir depois.
 
Dentro de tal lógica, o mais racional e indicado é aguardar o novo pacote de salvamento e aplicar os recursos devidos ao Tesouro em títulos da dívida pública. Dessa forma, obtém-se a maior remuneração financeira do mundo às custas do setor público e depois paga-se o valor sonegado com altíssimo abatimento de multas e juros, incluindo um generoso parcelamento do principal com prazo a perder de vista. Na grande maioria dos caos o sonegador é presenteado com a possibilidade de dividir o pagamento em 180 meses, ou seja, 15 anos de bondades. Com esse tipo de expectativa sempre correspondida por alguma medida a ser anunciada pelo Ministério da Fazenda, institucionalizou-se o convite generalizado à sonegação. O detalhe é que tal prática só reforça a natureza da desigualdade e da concentração, tão marcantes e agudas em nossa sociedade. Afinal, só têm acesso a esse tratamento tributário privilegiado as grandes corporações, não por acaso exatamente aquelas que mais devem ao erário.
 
Assim, parcelamento de dívida tributária virou uma espécie de rotina na administração financeira das empresas. Todo ano surge uma nova regra, inclusive com abertura para “ramos especializados” e eventos especiais - Refis da Copa, Refis Rural, Refis da crise e por aí vai. Já os assalariados que têm seu imposto recolhido na folha de pagamento, as empresas de menor porte que recolhem seus tributos corretamente, os consumidores que pagam imposto no momento da compra de mercadorias ou serviços, bem esses não são atingidos por nenhuma medida de benevolência.  Pelo contrário, sobre eles paira a ameaça permanente da punição severa pelo não cumprimento da obrigação tributária. 
 
Sonegação para poucos e perdas para muitos.
 
A situação atual está realmente bastante difícil para todos em nosso país e os setores que apresentam maior capacidade de exercer seu “lobby” na Esplanada dos Ministérios tentam emplacar as conhecidas medidas suavizadoras. Parece ser bem o caso do eventual Refis, em sua versão 2016. Estudos realizados pelas associações dos auditores fiscais apontam para os prejuízos irreparáveis causados aos cofres públicos por esse tipo de medida. De acordo com a Unafisco, as perdas associadas à sistemática do Refis são superiores a R$ 50 bilhões a cada ano posterior à divulgação da bondade. A Receita Federal deixa de arrecadar uma quantia enorme de recursos, fato que se torna ainda mais expressivo em períodos de baixa da capacidade de arrecadação.
 
O discurso do financismo a respeito da incapacidade estrutural de se continuar com a atual estrutura de receitas e despesas nas contas públicas costuma esconder os elementos essenciais desse debate necessário. A narrativa oficial incorpora essa mesma visão fomentada pelos chamados “especialistas financeiros” e a adota como sendo sua. Voltam-se as mesmas baterias contra os vilões de sempre: as despesas relacionadas a itens como previdência social, seguro desemprego, auxílio doença e similares. Nenhuma palavra é dedicada à conta que apresenta a maior insustentabilidade no curto, médio e longo prazos: as despesas de natureza, voltadas para o pagamento de juros e serviços da dívida pública. Ao longo dos últimos 12 meses, por exemplo, esse tipo de gasto parasita consumiu o equivalente a R$ 427 bilhões das rubricas orçamentárias. Trata-se da conta que mais recursos dispende individualmente e que menos receita recolhe sob a forma de impostos. E sobre ela nenhuma medida de teto, limite ou contingenciamento é aventada.
 
O mesmo pode ser dito a respeito da estrutura arrecadadora em seu conjunto. Os meios de comunicação só fazem repercutir o tradicional “chororô” a respeito da suposta elevada carga tributária brasileira. Pouco se menciona a enormidade da prática generalizada da sonegação, em ambiente cultural e institucional marcado pela impunidade. Há cálculos que estimam o volume sonegado como sendo superior a R$ 500 bi por ano. O conhecido “sonegômetro”, por exemplo, aponta para R$ 390 bi apenas para o período que vai de primeiro de janeiro até o dia 20 de setembro do presente ano. Essa impressionante quantia de dinheiro ainda conta com o apoio de órgãos como o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), que costuma anistiar ou perdoar os valores devidos pelas grandes empresas. Os escândalos recentemente divulgados a respeito do Conselho só fazem reforçar as hipóteses de conluio para favorecer o grande capital.
 
Por essas e outras é que o discurso chamando o conjunto da população a contribuir com sua cota de rigor para assegurar o sucesso do ajuste fiscal é falacioso. Como sempre, solicita-se de todos um enorme sacrifício para evitar o caos e a quebradeira do país, mas as camadas do alto da pirâmide e as grandes corporações são sistematicamente poupadas em suas perdas. Na verdade, elas são tratadas de forma privilegiada, pois terminam por faturar ainda mais no cenário de crise, a exemplo dos lucros bilionários apresentados pelos bancos e demais instituições financeiras.




* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.


Créditos da foto: Lula Marques

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