28/10/2016 16:20 - Copyleft
Christophe Ayad, Le Monde'Os americanos entenderam que a mudança era irreversível'
Mesmo que Hillary Clinton seja eleita, a campanha eleitoral de 2016 ficou marcada pelo 'tsunami Trump' e pelo 'tornado Sanders'.
Depois de oito anos na Casa Branca, Barack Obama pode fazer um balanço no mínimo satisfatório: o fantasma da recessão foi afastado, o crescimento está de volta, o país, mal ou bem, saiu de duas guerras em que estava mergulhado – no Afeganistão e no Iraque. No entanto, os americanos ainda estão angustiados pelo declínio e indignados com as injustiças e desigualdades.
Mesmo que Hillary Clinton seja eleita a 45ª presidenta americana, a campanha eleitoral de 2016 ficou marcada pelo "tsunami Trump" e pelo "tornado Sanders”. Donald Trump, especialmente, deu um rosto e uma voz ao desconforto e às obsessões de parte do país. Seu nacionalismo reacionário e xenófobo está de volta à cena política americana. Para Clifford Young, especialista em pesquisas de opinião, esse fenômeno vai perdurar.
A raiva é o sentimento dominante, hoje, nos Estados Unidos?
Diria que os sentimentos que dominaram a campanha eleitoral foram sobretudo o medo, especialmente medo do futuro, e o sentimento profundo de ter sido traído. Hoje, nos Estados Unidos, predomina a sensação de que o sistema está com defeito e é manipulado, e que os partidos e os políticos não se preocupam com as pessoas comuns.
O que origina este medo e ressentimento? Como não os vimos surgir?
É um processo de acúmulo de longa data. O mesmo fenômeno pode ser visto na Europa. Há razões econômicas e culturais. Economicamente, há uma longa estagnação. O desemprego – ou subemprego – é alto por causa da globalização e da uberização do mundo atual. Entre 30% e 40% da população não enxergam um futuro melhor do ponto de vista econômico.
Enquanto isso, profundas mudanças demográficas afetam os Estados Unidos: estamos deixando de ser uma sociedade branca do tipo europeu para nos tornarmos uma sociedade não-branca. Se tomamos a geração de baby boomers nascidos durante a guerra do Vietnã, 76% são brancos. Se analisamos a população entre 0 e 5 anos, 50% são brancos. Estas duas tendências de longo prazo combinadas conduziram ao cenário que vemos hoje.
De todo modo, este pessimismo é paradoxal, uma vez que a economia dos EUA saiu da recessão, após a crise de 2008, muito mais rápido do que os outros países ocidentais.
As pessoas entenderam que não estamos mais em ciclos econômicos regulares, com altos e baixos, mas em um fenômeno inexorável, uma mudança irreversível. Os cidadãos economicamente ativos hoje não vivem melhor do que seus pais e sabem que seus filhos vão viver pior do que eles. A noção de que as coisas sempre iam melhorar é um componente fundamental do "sonho americano". Hoje, não existe esta certeza. Talvez a economia dos EUA seja mais flexível, mais reativa, mais adaptável, mas esse sentimento de que a mobilidade social acabou não está relacionado com a crise dos subprimes. Vem de mais longe.
Quem é mais afetado por esta sensação de depreciação?
A classe média e a classe média baixa. Trata-se, é claro, dos operários, dos trabalhadores manuais, ou mesmo profissões como médicos do interior, cujo prestígio não é mais o mesmo. Esta pequena classe média era a mais tocada pelo "sonho americano": a possibilidade de ganhar bons salários e de se sentir parte de algo maior. É isso que está mudando. As pessoas já não têm a impressão de serem especiais só porque são americanos. Mesmo quem foi para a universidade e que possui cargos administrativos está sendo substituído por trabalhadores mais baratos de outro lugar, ou por máquinas, algoritmos.
Concorda que o cenário político americano se parece cada vez mais com o da Europa, com o surgimento de uma extrema direita populista e xenófoba e de uma esquerda radical?
Uma coisa é certa: os Estados Unidos vão se parecer cada vez mais com a Europa em termos de valores da sociedade e liberdades individuais. A geração mais jovem é mais progressista do que a anterior neste aspecto. É mecânico: em uma meia geração, não haverá mais nenhuma diferença nesta área. No entanto, os americanos continuam não acreditando e sendo resistentes ao estado de bem-estar social.Os princípios libertários do país permanecem fortes.
Outro ponto que nos aproxima da Europa é o nacionalismo reacionário e xenófobo de parte dos republicanos. A principal questão agora é o que vai acontecer após a eleição e a provável derrota de Trump. O que vai acontecer com o Partido Republicano? Trump representa hoje metade da base do partido.
Qual é o espaço dos valores religiosos? Não parecem ter desempenhado um papel importante nesta campanha.
Quem quer que seja o presidente e sua orientação política, deve ser cristão. É da natureza da política americana. É uma questão moral pública. Em um nível partidário, os republicanos se valem mais do trunfo religioso durante as últimas três décadas, centrando-se em valores, através de questões como o direito ao aborto, casamento e orientação sexual. Trump não é um conservador religioso, e a religião esteve ausente da campanha eleitoral.
Mas a partir do momento em que teve problemas com a moralidade tradicional, a religião passou a importar. Parte do eleitorado conservador atribui grande importância à retidão moral. Estes se afastaram de Trump, visto como amoral, e esta será uma das razões de sua provável derrota.
Qual é a relação entre o movimento Tea Party, que tem dominado o Partido Republicano durante os dois mandatos de Obama, e o "Trumpismo"?
Trump literalmente depenou o Tea Party, que foi absorvido pelo "Trumpismo". Muito do que ele diz – que o sistema está defeituoso, que a América era melhor antes, que o governo explora os desfavorecidos – vem do Tea Party. Ele soube encarnar esse discurso. O Tea Party preparou o terreno para Trump.
O medo do terrorismo está de volta aos Estados Unidos, junto com uma onda de desconfiança sem precedentes em relação aos muçulmanos?
A segurança é tema um importante, mas não central: está em segundo lugar em nossas pesquisas. A primeira preocupação é a situação econômica, o emprego. O medo do terrorismo e as preocupações com a segurança estão relacionados com a situação internacional, particularmente aos ataques terroristas em solo americano. Por exemplo, os ataques na França tiveram um forte impacto sobre a opinião pública americana, mas por pouco tempo.
O Occupy Wall Street parecia um movimento sem desdobramento político até a chegada de Bernie Sanders. Está surgindo um polo de esquerda, no sentido europeu?
Occupy Wall Street foi um evento menor e isolado, mas expressava o que estava por vir. É como o Tea Party, que se achou que fosse acabar passando. Na verdade, Bernie Sanders e Donald Trump são dois lados da mesma moeda. Há uma maioria, nos dois campos, que pensa que o sistema é falho e fraudulento. A diferença está na forma como a constatação é analisada. Para Sanders, a ideia é que o mundo das finanças, juntamente com o establishment político, manipula o sistema a seu favor. Há uma mensagem equivalente à direita, mas prevalece o discurso contra os imigrantes. Esta narrativa, esta suposição inicial de que o sistema não funciona mais, veio para ficar, pelo menos, ainda pelos próximos dez anos.
Tradução de Clarisse Meireles
Clifford Young é especialista em pesquisas de opinião e dirige o Instituto Ipsos Public Affairs em Washington. É doutor pela Universidade de Chicago e professor nas universidades Johns Hopkins e Columbia.
Mesmo que Hillary Clinton seja eleita a 45ª presidenta americana, a campanha eleitoral de 2016 ficou marcada pelo "tsunami Trump" e pelo "tornado Sanders”. Donald Trump, especialmente, deu um rosto e uma voz ao desconforto e às obsessões de parte do país. Seu nacionalismo reacionário e xenófobo está de volta à cena política americana. Para Clifford Young, especialista em pesquisas de opinião, esse fenômeno vai perdurar.
A raiva é o sentimento dominante, hoje, nos Estados Unidos?
Diria que os sentimentos que dominaram a campanha eleitoral foram sobretudo o medo, especialmente medo do futuro, e o sentimento profundo de ter sido traído. Hoje, nos Estados Unidos, predomina a sensação de que o sistema está com defeito e é manipulado, e que os partidos e os políticos não se preocupam com as pessoas comuns.
O que origina este medo e ressentimento? Como não os vimos surgir?
É um processo de acúmulo de longa data. O mesmo fenômeno pode ser visto na Europa. Há razões econômicas e culturais. Economicamente, há uma longa estagnação. O desemprego – ou subemprego – é alto por causa da globalização e da uberização do mundo atual. Entre 30% e 40% da população não enxergam um futuro melhor do ponto de vista econômico.
Enquanto isso, profundas mudanças demográficas afetam os Estados Unidos: estamos deixando de ser uma sociedade branca do tipo europeu para nos tornarmos uma sociedade não-branca. Se tomamos a geração de baby boomers nascidos durante a guerra do Vietnã, 76% são brancos. Se analisamos a população entre 0 e 5 anos, 50% são brancos. Estas duas tendências de longo prazo combinadas conduziram ao cenário que vemos hoje.
De todo modo, este pessimismo é paradoxal, uma vez que a economia dos EUA saiu da recessão, após a crise de 2008, muito mais rápido do que os outros países ocidentais.
As pessoas entenderam que não estamos mais em ciclos econômicos regulares, com altos e baixos, mas em um fenômeno inexorável, uma mudança irreversível. Os cidadãos economicamente ativos hoje não vivem melhor do que seus pais e sabem que seus filhos vão viver pior do que eles. A noção de que as coisas sempre iam melhorar é um componente fundamental do "sonho americano". Hoje, não existe esta certeza. Talvez a economia dos EUA seja mais flexível, mais reativa, mais adaptável, mas esse sentimento de que a mobilidade social acabou não está relacionado com a crise dos subprimes. Vem de mais longe.
Quem é mais afetado por esta sensação de depreciação?
A classe média e a classe média baixa. Trata-se, é claro, dos operários, dos trabalhadores manuais, ou mesmo profissões como médicos do interior, cujo prestígio não é mais o mesmo. Esta pequena classe média era a mais tocada pelo "sonho americano": a possibilidade de ganhar bons salários e de se sentir parte de algo maior. É isso que está mudando. As pessoas já não têm a impressão de serem especiais só porque são americanos. Mesmo quem foi para a universidade e que possui cargos administrativos está sendo substituído por trabalhadores mais baratos de outro lugar, ou por máquinas, algoritmos.
Concorda que o cenário político americano se parece cada vez mais com o da Europa, com o surgimento de uma extrema direita populista e xenófoba e de uma esquerda radical?
Uma coisa é certa: os Estados Unidos vão se parecer cada vez mais com a Europa em termos de valores da sociedade e liberdades individuais. A geração mais jovem é mais progressista do que a anterior neste aspecto. É mecânico: em uma meia geração, não haverá mais nenhuma diferença nesta área. No entanto, os americanos continuam não acreditando e sendo resistentes ao estado de bem-estar social.Os princípios libertários do país permanecem fortes.
Outro ponto que nos aproxima da Europa é o nacionalismo reacionário e xenófobo de parte dos republicanos. A principal questão agora é o que vai acontecer após a eleição e a provável derrota de Trump. O que vai acontecer com o Partido Republicano? Trump representa hoje metade da base do partido.
Qual é o espaço dos valores religiosos? Não parecem ter desempenhado um papel importante nesta campanha.
Quem quer que seja o presidente e sua orientação política, deve ser cristão. É da natureza da política americana. É uma questão moral pública. Em um nível partidário, os republicanos se valem mais do trunfo religioso durante as últimas três décadas, centrando-se em valores, através de questões como o direito ao aborto, casamento e orientação sexual. Trump não é um conservador religioso, e a religião esteve ausente da campanha eleitoral.
Mas a partir do momento em que teve problemas com a moralidade tradicional, a religião passou a importar. Parte do eleitorado conservador atribui grande importância à retidão moral. Estes se afastaram de Trump, visto como amoral, e esta será uma das razões de sua provável derrota.
Qual é a relação entre o movimento Tea Party, que tem dominado o Partido Republicano durante os dois mandatos de Obama, e o "Trumpismo"?
Trump literalmente depenou o Tea Party, que foi absorvido pelo "Trumpismo". Muito do que ele diz – que o sistema está defeituoso, que a América era melhor antes, que o governo explora os desfavorecidos – vem do Tea Party. Ele soube encarnar esse discurso. O Tea Party preparou o terreno para Trump.
O medo do terrorismo está de volta aos Estados Unidos, junto com uma onda de desconfiança sem precedentes em relação aos muçulmanos?
A segurança é tema um importante, mas não central: está em segundo lugar em nossas pesquisas. A primeira preocupação é a situação econômica, o emprego. O medo do terrorismo e as preocupações com a segurança estão relacionados com a situação internacional, particularmente aos ataques terroristas em solo americano. Por exemplo, os ataques na França tiveram um forte impacto sobre a opinião pública americana, mas por pouco tempo.
O Occupy Wall Street parecia um movimento sem desdobramento político até a chegada de Bernie Sanders. Está surgindo um polo de esquerda, no sentido europeu?
Occupy Wall Street foi um evento menor e isolado, mas expressava o que estava por vir. É como o Tea Party, que se achou que fosse acabar passando. Na verdade, Bernie Sanders e Donald Trump são dois lados da mesma moeda. Há uma maioria, nos dois campos, que pensa que o sistema é falho e fraudulento. A diferença está na forma como a constatação é analisada. Para Sanders, a ideia é que o mundo das finanças, juntamente com o establishment político, manipula o sistema a seu favor. Há uma mensagem equivalente à direita, mas prevalece o discurso contra os imigrantes. Esta narrativa, esta suposição inicial de que o sistema não funciona mais, veio para ficar, pelo menos, ainda pelos próximos dez anos.
Tradução de Clarisse Meireles
Clifford Young é especialista em pesquisas de opinião e dirige o Instituto Ipsos Public Affairs em Washington. É doutor pela Universidade de Chicago e professor nas universidades Johns Hopkins e Columbia.
Créditos da foto: reprodução
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