quarta-feira, 30 de novembro de 2016

1989: 4 lições de guerra-paz no continente

30/11/2016 12:35 - Copyleft

1989: 4 lições de guerra-paz no continente

A história da América Latina é a da resistência contra os golpes. Todo golpe carrega torturas sob as quais se estruturam violentas construções geracionais.


Roberta Traspadini*
reprodução
Vivemos um momento dramático na história da luta de classes latino-americana. Além do recrudescimento neoliberal, nos deparamos com a morte do comandante Fidel. Os meios de comunicação reproduzem a imagem ditadora frente a liberdade-democracia burguesa liderada por Trump; o sucesso da modernidade do capital, frente as supostas ruinas do socialismo; e a mídia cumpre a função de projetar, o linchamento público dos lutadores sociais do continente que reivindicam a vigência do horizonte revolucionário no continente.
 
A complexidade de Cuba deve ser explicada a partir da relação entre totalidade-particularidade, base sobre a qual suas ações se dão, em um mundo cada vez mais dominado pela dinâmica violenta do capital. Parte de sua pobreza-riqueza precisa ser entendida nos acontecimentos do capitalismo e do socialismo ocorridos fora da ilha entre 1940-1990. 
 
A ofensiva capitalista sobre os Estados latino-americanos que realizaram políticas consideradas mais “brandas” ao longo do século XXI, exige que elucidemos o conteúdo por trás da forma conservadora. Demarcaremos 1989 como um ano central de compreensão sobre a ofensiva do capital financeiro no mundo e na América Latina com incidência marcante sobre o socialismo cubano. 
 
1 - Consenso de Washington. Marco estrutural dos processos de abertura comercial da América Latina e de condução do arrocho na política econômica assentado em elevadas taxas de juros. Condução que nos remete a explicitação da dependência estrutural atrelada à dívida como elemento estrutural dos processos de desenvolvimento no continente. Eric Toussaint em A bolsa ou a vida: a dívida externa do terceiro mundo, nos mostra que a dívida externa da A.L em 1970 era de 33 milhões de dólares, em 1980 passou para 257 milhões, 1985, 389 milhões e chegou em 1990 a 475 milhões. A substância concreta da nova fase do imperialismo após anos 1970 é a da dívida como substância de vinculação desigual entre economias débeis tecnologicamente, mas fortes em força de trabalho e recursos naturais. O consenso de Washington define-se, para América Latina, como a demarcação política da transferência de valor do Sul para o Norte através do pagamento de juros da dívida e de políticas econômicas severas. 





 
2 - Muro de Berlim. O final da segunda guerra mundial trouxe à tona o teor da guerra entre as grandes potências militares. No discurso de paz, delimitado pela economia de guerra, a construção do muro expôs os impactos para a economia mundial de uma retomada da hegemonia pelos supostos vencedores da guerra (EUA, Reino Unido, França e URSS). Em 1945, como faceta expressiva da atual dinâmica de um mundo cindido entre dois projetos societários – capitalismo (EUA) e comunismo (URSS). A separação alemã após a primazia da guerra contra o nazismo, baseou-se na composição de pactos políticos da Guerra Fria, em alusão direta a uma ideia de paz, em plenos contextos de ofensiva tecnológica da indústria armamentista das duas potências. Os protagonistas desse pacto foram Roosevelt e Churchill (EUA) e Stalin (URSS). Na década de 1960 a construção do muro explicitava ao mundo o mito da paz e o real teor termômetro da guerra que nada tinha de fria. Nesse período América Latina vivenciou os processos de desenvolvimento industrial-urbano-moderno, a partir da ofensiva estadunidense no continente, através da construção consensual acerca da ideia de modernidade, ordem do progresso. Onde os EUA e suas forças aliadas burguesas nacionais não conseguiram emplacar sua hegemonia no continente e o avanço comunista se desdobrava, a nação do Norte passou a protagonizar o aquecimento de sua coerção militar sobre o Sul.
 
As ditaduras militares no continente expressavam este duplo movimento: - necessidade de controle económico, político e social do continente latino pelos EUA, como território de projeção direta de seus múltiplos poderes; - a ofensiva das revoluções, em especial a cubana e a nicaraguense, em pleno processo de radicalização das funções sociais dos estados a partir da perspectiva de cada força geopolítica mundial. 
 
Entre 1945 e 1989, América Latina vivenciou tanto a nova ofensiva do capital financeiro, como a tentativa de freio a dita hegemonia pelo socialismo real. Mas em 1989, a partir do impacto mundial das novas tecnológicas, da concentração-centralização do capital e das novas disputas territoriais, a destruição do muro de Berlim torna-se um símbolo de projeção do poder dos EUA e de seus leais representantes mundiais, frente a todo tipo de ofensiva vermelha. A TV anunciava o fim do comunismo e o início de uma nova fase ditada pela invasiva e permanente força da automação no cotidiano da sociedade mundial.
 
3 - Invasão do Panamá. Em 1989, com a escusa de “limpeza” ética e moral contra o narcotráfico, os EUA deflagram uma ofensiva coercitiva de ocupação do Panamá, com o objetivo de capturar um importante protagonista do suposto crime organizado mundial: Manuel Antonio Noriega. Desta justificativa produzida intencionalmente como forma de territorialização não somente de suas bases militares, mas de sua cadeia logística sobre o território, os EUA foram responsáveis por uma operação que culminou em mais de 3500 mortos segundo o relatório dos direitos humanos do Panamá de 1990. Em nome da defesa dos direitos humanos, os EUA enraizaram seu poder pelo continente e transformaram o Panamá em um dos principais pontos de referência logística de sua ação de exportar e importar para o mundo.
 
4 - Eleições diretas no Brasil. Demarcadas por um processo de implementações importantes de reformas constitucionais, 1988, estas primeiras eleições se apresentavam como a disputa entre dois projetos societários: pela direita, a modernidade dos EUA e do consenso de Whashington expressa por Collor, pela esquerda, o nacional desenvolvimentismo revigorado de Brizola, e a luta operário-camponesa demarcada por Lula. Foi a primeira vez na história da política brasileira que a mídia aparecia de forma explícita seu papel protagonista na construção de imagens midiáticas capazes de eleger, ou não, um candidato. Bastam segundos para disseminar como verdades imagens, narrativas e estereótipos intencionalmente produzidos. As eleições no Brasil encarnaram a polaridade histórica vivida em todo o mundo entre 1945-1989, como se reproduzissem posições que havia ficado no passado. A ditadura tornou pequenos capitais nacionais midiáticos em gigantes conglomerados financeiros bancados pelo Estado nacional. Os meios de comunicação, deixavam de ser apenas veículos do poder internacional e local e passavam a encarnar o próprio poder do capital financeiro concentrado e centralizado em poucas mãos. Cabe destacar as novelas do ano de 1989, O salvador da Pátria, em que um matuto personagem se transforma em presidente da república e Vale tudo, em que a ideia da ética e da moral se apresentavam como princípios a serem defendidos pela nascente democracia do País.
 
Foi contra a ofensiva capitalista que a Cuba socialista lutou ao longo de todo o período em que comandou Fidel. A morte de Fidel é vendida pelo capital como o fim do socialismo. No entanto, as lutas de resistências e revoluções seguem vivas no continente. O que faz de seu legado um processo vivo e permanente. O exemplo cubano, com seus acertos e erros, deve nos provocar para o dever militante de lutar por uma sociedade justa e igualitária. Isto exige a crítica e a autocrítica como princípios da práxis. Lutar contra o capitalismo, denunciar suas desigualdades e violências estruturais e anunciar, enquanto se luta, outros projetos de poder necessários e possíveis, sem perder de vista os inúmeros desvios a serem corrigidos ao longo de nosso caminhar tático que acumule para o horizonte socialista. 
 
A história da América Latina é a das resistências e das revoluções contra a permanência dos golpes. Todo golpe carrega torturas sob as quais se estruturam violentas construções geracionais que precisam revigorar o horizonte revolucionário nas lutas sociais.  Enquanto houverem muitos trabalhadores condicionados à superexploração pelos pouquíssimos gigantes que decidem como lucrar às custas destes muitos, haverá luta de classes. Isto permite que a tristeza com a morte do Fidel seja superada pela beleza cotidiana dos povos em luta, verdadeiros guardiães da resistência mundial. Ante à violência da dependência estrutural, somente a luta organizada da classe trabalhadora será capaz de criar processos societários para além do capital.
 
Professora do curso de Relações Internacionais da UNILA. Professora Militante da Escola Nacional Florestan Fernandes


Créditos da foto: reprodução




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