Política
Estado de exceção
Em Brasília e na Lava Jato, a guerra dos marajás
Os senhores engalfinham-se na capital federal e com a república de Curitiba, e complicam a vida de Temer
Miguel Schincariol/AFP e Carlos Humberto/STF
Grande tensão às vésperas da delação da Odebrecht. Mais confusões à vista
Brasília e a Operação Lava Jato estão em guerra, uma disputa entre os marajás do setor público pelo amor dos contribuintes brasileiros, renda per capita mensal de 1,1 mil reais, e da mídia, destinatária de verbas oficiais milionárias. Sobra emoção por esses dias.
Um ministro do Supremo Tribunal Federal prega contra a Lava Jato e por uma lei de abuso de autoridade, é rebatido pela república de Curitiba, que aponta ameaça às investigações e à magistratura, e acusado no Ministério Público.
A presidenta do STF recusa-se a encontrar o presidente do Congresso e ainda marca um julgamento delicado para ele, que revida ao pedir pressa na votação de uma lei que enterra uma mordomia do Judiciário.
O mesmo parlamentar ataca a Polícia Federal e o ministro da Justiça, furioso com uma operação policial no Senado. Tudo às vésperas da delação premiada da Odebrecht, prenúncio de mais confusão e incertezas sobre o futuro do governo e suas medidas impopulares.
O clima de caos, que o presidente Michel Temer tentou maquiar na sexta-feira 28 ao juntar os chefes dos Poderes na discussão de um plano de segurança pública, instalara-se uma semana antes com a apreensão de uma parafernália do Senado capaz de descobrir escutas ambientais clandestinas e a prisão de quatro policiais da Casa.
As varreduras teriam socorrido até um ex-senador, José Sarney. Batizada de Métis, a operação baseou-se em revelações de um policial do Senado, Paulo Igor Bosco Silva, alvo de sindicância interna. O juiz titular da 10a Vara Federal de Brasília, Vallisney Oliveira, 39 mil de contracheque em outubro, entendeu que “os fatos são gravíssimos” e autorizou a batida.
Entre os detidos, estava o chefe da polícia do Senado, Pedro Ricardo Carvalho, proventos de 38 mil reais em outubro. Afastado do cargo por ordem judicial mesmo depois de solto na quarta-feira 26, estava no posto há 12 anos, sempre com as bênções do PMDB, rei do recanto há tempos. Alvo de uma penca de inquéritos no STF, o presidente da Casa, Renan Calheiros, desbordou. Classificou a operação de “espetáculo inusitado que nem a ditadura militar o fez”, disse que a PF usa “métodos fascistas” e chamou Oliveira de “juizeco”.
Para o peemedebista, um juiz de primeira instância não poderia ter autorizado uma ação dessas no Senado, só o Supremo, embora nenhuma autoridade dona de foro privilegiado tenha sido atingida, conforme anotou o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, José Robalinho Cavalcanti, 41 mil de remuneração em outubro. Na quinta-feira 27, o STF suspendeu a operação e pediu o material recolhido.
A presidenta da Corte, Cármen Lúcia, 37 mil de vencimentos em outubro, não gostou da reação de Calheiros e também foi ao ataque. Na abertura de uma sessão do Conselho Nacional de Justiça, decretou: “Onde um juiz for destratado, eu também sou. Qualquer um de nós, juízes, é”.
Mais: negou-se a participar de uma reunião com Temer e Calheiros, ideia soprada ao presidente pelo senador com o objetivo de discutir a relação entre os Poderes. E ainda resolveu botar em julgamento na quinta-feira 3 de novembro um processo constrangedor para o alagoano, sobre se presidentes da Câmara e do Senado podem assumir provisoriamente a Presidência da República caso sejam réus.
Calheiros está a um passo de virar réu, em um processo no qual é acusado de defender interesses da empreiteira Mendes Júnior em troca do pagamento de despesas pessoais de uma ex-amante, Monica Veloso.
O peemedebista reservou palavras especiais para o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, tucano que anda em baixa no Palácio do Planalto após anunciar de véspera, em setembro, uma batida da PF, razão de uma sindicância contra ele na Comissão de Ética da Presidência, por ora sem conclusão. Calheiros tachou-o de “chefete” dos federais, disse que ele “não tem se portado como um ministro de Estado” e que teria “muita dificuldade” de estar na mesma sala que o tucano.
O alvo final da ira do senador é o diretor-geral da PF, Leandro Daiello, 40 mil reais de vencimentos em outubro. Experiência em derrubar diretor-geral Calheiros tem. Foi ministro da Justiça de 1998 a 1999, na gestão Fernando Henrique.
Em março de 1999, exonerou o chefe da PF, Vicente Chelotti, apontado como intocável e alguém que tinha FHC “nas mãos”. Missão cumprida, logo deixou o cargo. Calheiros até tem argumentos para negociar o assunto com Temer. A aprovação do congelamento de verba social por 20 anos, proposta do presidente, agora está no Senado e depende do presidente da Casa.
Quem poderia ir para a vaga de Daiello? O PMDB de Calheiros e Temer conta com uma opção na praça, se quiser. Um delegado federal experiente e de sólidas relações com o partido, José Maria Beltrame, secretário de Segurança Pública do estado do Rio por quase dez anos em gestões peemedebistas e que se demitiu recentemente. Há quem veja nele a figura ideal para liderar uma guinada na PF de interesse do Planalto: priorizar o combate dos homicídios e do tráfico de drogas, um meio de desidratar o enfrentamento da corrupção.
Com seus ataques ao “abuso de poder”, Calheiros estabeleceu uma aliança com o ministro do STF Gilmar Mendes, ideólogo jurídico da cruzada, iniciada pelo magistrado apenas após a deposição de Dilma Rousseff.
Parceria conveniente para o senador, alvo de processos no STF, e para lá de sólida. Outro dia Calheiros engavetou dois pedidos de impeachment de Mendes apresentados por juristas renomados, um por crime de responsabilidade, outro por partidarismo disfarçado (anti-PT e pró-PSDB).
Agora apoia o candidato do ministro a uma vaga no Conselho Nacional de Justiça, órgão encarregado de fiscalizar tribunais, o jovem advogado Henrique Ávila, sócio em Brasília da mesma banca que a mulher de Mendes, Guiomar Feitosa, no escritório de Sergio Bermudes.
O CNJ é um lugar capaz de complicar juízes, daí Calheiros querer apadrinhar alguém por lá e ter denunciado o juiz Vallisney Oliveira ao órgão. De quebra, o senador agora defende pressa na votação de uma mudança da Constituição para acabar com uma regalia no Judiciário e no MP, aposentadoria compulsória com salário integral para juiz e promotor que cometa crime.
Quem deve ter gostado da denúncia contra Oliveira foi o deputado cassado Eduardo Cunha. Enquanto o senador tomava a providência, Oliveira, 39 mil de holerite em outubro, convertia em réus por corrupção Cunha e Henrique Alves, ex-ministro do Turismo de Temer. A dupla é acusada, juntamente com um ex-dirigente da Caixa Econômica Federal, Fabio Cleto, apadrinhado de Cunha, de cobrar propina na liberação de empréstimos do banco.
De volta ao abuso de autoridade. Calheiros propôs uma lei sobre o assunto em julho, cópia fiel de uma apresentada inutilmente em 2009 pelo deputado Raul Jungmann, hoje ministro da Defesa de Temer. Essa, por sua vez, nascera sob a inspiração de Mendes, então à frente do STF.
O projeto prevê cadeia para quem manda prender por motivos fúteis e sem cumprir certas formalidades, constrange presos com ameaça ou violência, ofende intimidade e honra de pessoa alvo de inquérito e impõe o uso de algemas. Ideias talhadas para impedir a repetição de situações como a prisão do banqueiro Daniel Dantas em julho de 2008 na Operação Satiagraha.
Gilmar Mendes conseguiu melar a Satiagraha com a colaboração de um personagem que agora invoca contra a Lava Jato, o ex-senador goiano Demóstenes Torres, cassado em 2012 sob a acusação de usar o mandato em favor do bicheiro Carlinhos Cachoeira.
Em agosto de 2008, noticiou-se que um telefonema entre Mendes e Torres, de teor banal e a indicar velhos amigos, teria sido gravado ilegalmente pela Agência Brasileira de Inteligência, cujo chefe, Paulo Lacerda, teria dado apoio à investigação sobre Dantas. Jamais apareceu prova do tal grampo, mas Mendes chamou o ex-presidente Lula “às falas”, e Lacerda foi degolado.
Na terça-feira 25, por iniciativa de Mendes, o Supremo livrou Torres da condição de réu em uma ação penal por corrupção aberta em 2014 no Tribunal de Justiça de Goiás. A ação disseca as relações promíscuas de Torres e Cachoeira, documentadas em escutas telefônicas feitas entre 2008 e 2012 com aval de um juiz de primeira instância.
O ex-senador recorreu ao STF com a alegação de que tinha mandato no momento dos grampos, portanto, somente o Supremo poderia ter autorizado as gravações. O STF concordou e mandou o tribunal goiano retirar do processo os áudios com Torres. Este só será réu se a promotoria reunir provas outras que não as gravações.
O recurso de Torres foi examinado em uma das duas turmas de cinco membros do STF, justamente aquela comandada por Mendes, responsável por definir a pauta. O magistrado de Diamantino, 37 mil reais de remuneração em outubro, chegou à sessão perto do fim, mas em tempo de o caso entrar como último item.
E deixou claro que sua intenção era aproveitá-lo contra a Lava Jato. Afirmou ser um “caso de escola”, “um caso muito feliz”, por reunir elementos de abuso de autoridade e por permitir debater um pacote de dez medidas anticorrupção propostas ao Congresso pela república de Curitiba.
Com a voz trêmula, ameaçadora, virou-se para a representante do Ministério Público na sessão, Ela Wiecko, sub-procuradora-geral, e tascou: “Esse caso ficou um ano e meio na Procuradoria. É um bom caso de abuso de autoridade”.
A luta de Mendes pelo coração da mídia no tema “Lava Jato” é um xadrez a opor dois artistas na manipulação da imprensa. Seu oponente é o juiz federal Sergio Moro, para quem a veiculação cotidiana há dois anos e meio de informações sobre as investigações é o que garante o avanço da Lava Jato contra poderosos do PIB e da política.
Em um análise de 2004 sobre a Operação Mãos Limpas, ocorrida na Itália nos anos 1990, Moro citava o “largo uso da imprensa” como vital para os resultados lá alcançados. Quando em agosto passado surgiu a notícia de que, na delação negociada na Lava Jato, a OAS implicaria o ministro do STF Dias Toffoli, ex-petista e seu neopupilo, Mendes reuniu jornalistas em seu gabinete e comentou: “A mídia está hoje em relação aos investigadores como um viciado em droga em relação ao fornecimento da substância entorpecente”.
Foi por aqueles mesmos dias que Mendes deu o tom de “guerra de marajás” na disputa com a Lava Jato, ao atacar juízes pelo salário recebido, um “pequeno assalto”, segundo ele, frequentemente acima do teto legal existente no serviço público, 33,7 mil reais. No ano passado, os 17 mil togados embolsaram em média 46,1 mil mensais.
Em nota de seu presidente, o juiz estadual João Ricardo Costa, 46 mil reais de proventos em outubro, a Associação dos Magistrados Brasileiros insinuou que Mendes ganhava dinheiro indevido com atividades empresariais. O ministro voltou à carga salarial em outubro, com a mira no Ministério Público, chamado por ele reduto de “ricos procuradores”.
Juízes, procuradores e policiais federais foram protagonistas do impeachment de Dilma Rousseff e são os “verdadeiros marajás do Estado brasileiro”, anota o sociólogo Jessé Souza no livro A Radiografia do Golpe. Curiosidade: um dia após os deputados congelarem por 20 anos as verbas sociais, proposta de Temer, uma comissão especial da Câmara aprovou na quarta-feira 26 um reajuste de salário de delegado da PF, de 22 mil para 28 mil reais. Outra proposta do governo.
Na disputa pelo favor dos meios de comunicação, Moro e a força-tarefa da Lava Jato insistiram que as teses de “abuso de autoridade” espraiadas desde Brasília são uma ameaça às investigações. Dono de um holerite de 43 mil reais em outubro, o juiz federal deu uma palestra no Tribunal de Justiça do Paraná na quinta-feira 20 na qual apontou um “atentado à independência da magistratura”.
Dias depois, em uma audiência pública feita em Curitiba pela Câmara sobre o pacote de dez medidas anticorrupção, disse que era preciso “o Congresso demonstrar de que lado ele está nessa equação”. Em São Paulo, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, 35 mil de proventos em outubro e um dos líderes da força-tarefa, apontava uma “tentativa do status quo de se manter no poder”.
A campanha contra a Lava Jato já custou a Mendes uma queixa ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Para associações de juízes e de procuradores, o ministro pode ter cometido crime contra as duas categorias, ao acusá-las de “chantagem”.
Mendes soltou o verbo em uma sessão na quarta-feira 19 do Tribunal Superior Eleitoral. Ali ele contou uma história ouvida de um governador – era Francisco Dornelles, do Rio, tio-primo do tucano Aécio Neves, mas isso o ministro não falou. Dornelles teme peitar juízes e promotores por medo de que ele e seus aliados políticos sejam retaliados com a Lei da Ficha Limpa.
“E não querem a lei de abuso de autoridade, porque praticam às escâncaras o abuso de autoridade (…) para fazer esse tipo de chantagem”, disse Mendes.
Será que Janot, 39 mil reais de holerite em outubro, aproveitará a chance para dar o troco em Mendes, autor de bordoadas verbais no procurador-geral por causa de pedidos de prisão de senadores e da história sobre Toffoli e a OAS?
Na Procuradoria, há quem duvide. Janot, que em 2014 viajou aos Estados Unidos e repassou informações estratégicas a vários órgãos do governo de Washington sobre as investigações na Petrobras e na Eletronuclear, não estaria disposto a aborrecer o STF com um pedido para investigar Mendes.
Com Brasília em polvorosa, a ONU informou na quarta-feira 26, véspera do aniversário de 71 anos do ex-presidente Lula, ter dado início formal ao exame da denúncia apresentada em julho pela defesa do petista contra o juiz Sergio Moro e a Lava Jato em razão de alegados abusos, excessos e parcialidade.
A queixa lista, por exemplo, a divulgação de conversas telefônicas dele com a então presidenta Dilma Rousseff por parte de Moro, em março. Um caso flagrante de excesso diante do qual Gilmar Mendes guardou silêncio de monge tibetano. A ONU já pediu ao Brasil informações preliminares sobre o caso “Lula x Moro”, processo que pode levar até cinco anos para ter um desfecho.
O embaraço do ex-presidente chama a atenção de um jornalista e escritor italiano, Gianni Barbacetto, autor, com dois colegas, do recém-lançado livro Operação Mãos Limpas – A verdade sobre a operação italiana que inspirou a Lava Jato. Ele esteve em meados de outubro em Buenos Aires para divulgar a obra e lá conversou com um repórter do jornal gaúcho Zero Hora.
Na entrevista Barbacetto apontou o que seria uma diferença acentuada. Segundo ele, após a Mãos Limpas desapareceram na Itália cinco partidos do governo, enquanto um de oposição mudava de nome e programa. “Estou surpreso que apareçam acusações só contra o PT e seu líder Lula, porque me parece que todo o sistema está envolvido pela corrupção”, disse. “Parece-me que desde o início o sistema continua como antes e será apenas Lula a pagar.”
Se depender de Gilmar Mendes e do governo Temer, será isso mesmo.
Fonte: Carta Capital
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