23/11/2016 11:16 - Copyleft
Victor FarinelliChile: a saúde tratada como mercadoria
O atual debate chileno sobre a saúde se concentra no aspecto que afeta mais diretamente os usuários: o financiamento do sistema.
Embora o modelo neoliberal instalado no Chile durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) tenha sofrido diversas reformas maquiadoras nas últimas décadas, suas bases principais continuam plenamente vigentes, e o sistema de saúde do país é um dos exemplos desta realidade.
Há muitos diferentes problemas a se analisar a respeito da saúde pública no Chile, e a maioria deles não difere muito do que se vê no Brasil: filas enormes nos hospitais públicos, falta de médicos (sobretudo especialistas), falta de infraestrutura, investimentos insuficientes, etc.
A grande diferença está no desenho, que trata a saúde não como um direito, mas sim como uma mercadoria. No Chile, a qualidade da atenção que uma pessoa receberá depende diretamente da sua capacidade de pagamento. Os que pagam mais têm uma atenção excelente, os que pagam menos sofrem com uma atenção insuficiente e aos que não pagam nada não resta alternativa a não ser enfrentar toda a precariedade da rede pública.
Para o cidadão que mora no Chile aceder ao sistema de saúde, seja por hospitais ou centros de saúde controlados pela administração pública, ou por clínicas e consultórios privados, precisa ter um plano de saúde, que pode ser através de um serviço privado – as chamadas “isapres” – ou público – oferecido pelo Fundo Nacional de Saúde, também conhecido como “Fonasa”.
O sistema “Fonasa”, por ser público, apresenta maiores vantagens para a população em geral, pois não pode discriminar por nenhum fator e porque é o principal responsável por garantir a maior amplitude possível à cobertura. O cidadão que utiliza o Fonasa deve destinar 7% da sua renda mensal para financiar seu seguro de saúde. Evidentemente, nem todos têm dinheiro para pagar as mensalidades, nem mesmo as dos planos mais baratos oferecidos pelo Fonasa, e por isso existe uma modalidade do fundo que permite usar o sistema de saúde sem pagar nada.
Já os clientes dos seguros de saúde “isapres” pagam bastante mais e têm acesso a clínicas e consultas médicas privadas, sendo que alguns desses serviços são exclusivos, dependendo do tipo de plano. O valor mensal para pelos usuários de isapres varia de acordo com o gênero, (as mulheres pagam mais), a idade (encarecendo o custo para os mais idosos) e em caso de doenças crônicas, como hipertensão ou diabetes.
Aqui nasce a principal crítica dos próprios usuários aos modelo: o fato de que a capacidade de pagamento determinar a qualidade da atenção médica. Uma situação que ocorre mesmo os clientes do fundo público: dentro do Fonasa existem quatro categorias diferentes, sendo a categoria A a dos que não contribuem mensalmente com nada, e acabam sendo os que recebem atendimento mais precário.
Desta forma, o sistema absorve a desigualdade social já existente no país – apesar da retórica neoliberal gostar de usar o Chile como exemplo para o resto do continente, o país é um dos mais desiguais do mundo, considerando a brecha entre os mais ricos e os mais pobres do país –, fazendo com que grande parte da população seja mal atendida. Um panorama que pode se tornar ainda mais dramáticos em casos de famílias pobres com um parente que carece de uma cirurgia ou padece de um câncer ou uma doença rara de caro tratamento.
É por causa desse impacto social que muitos analistas consideram que o Chile precisa repensar um novo conceito de saúde pública, que não seja baseado na lógica do mercado, como acontece com o modelo atual. Um deles é Matías Goyenechea, diretos da fundação Creando Salud (“Criando Saúde”) e um dos maiores especialistas em saúde pública do Chile, que há tempos denuncia um desequilíbrio no funcionamento do sistema: “este é um sistema pensado para favorecer o mercado e o lucro das empresas. Mais de 50% dos recursos usados no país em saúde vão para o sistema privado, sendo que a grande maioria da população (quase um 70%) utiliza os serviços públicos, que sofre assim com uma falta de investimentos por parte do Estado”.
Segundo o Informe de Desenvolvimento Humano de 2012, a maioria dos chilenos (54%) sente que o Estado deveria cumprir um papel social e proteger a saúde dos cidadãos em geral e o bem-estar da terceira idade. O atual sistema é altamente privatizado: assim como acontece na educação, muitos dos hospitais públicos ou centros de saúde comunitários são administrados por entes privados, fundações ou cooperativas. Isto significa que um enorme obstáculo na hora de fazer com que a cobertura alcance toda a população, especialmente os mais pobres.
Esta situação alimenta um mal-estar que também se registra nos sistemas educacional e previdenciário – estes dois, curiosamente, os responsáveis pelas mobilizações mais importantes e numerosas organizadas pelos movimentos sociais no país nesta década, uma reação que o sistema de saúde ainda não despertou –, e que leva a uma discussão mais profunda a respeito do modelo socioeconômico chileno e a necessidade de transição de uma sociedade contributiva – onde os cidadãos são responsáveis, através de suas contribuições individuais, pelos serviços públicos e pela qualidade dos mesmos, de acordo com sua capacidade de pagamento – para uma de direitos, onde todos podem receber um serviço garantido universalmente, pelo simples fato de serem cidadãos.
Contudo, o atual debate chileno sobre a saúde vem se concentrando ainda no aspecto que afeta mais diretamente os usuários: o financiamento do sistema. Primeiro, porque os investimentos governamentais para enfrentar os equívocos do sistema geralmente se traduzem em melhorias temporárias – afinal, esses investimentos tampouco são permanentes.
Segundo, porque o gasto público em saúde no Chile é muito baixo com relação aos países desenvolvidos: 3,5% do PIB em 2011, enquanto a média dos países da OCDE é de 8%. Segundo a Organização Mundial da Saúde, um país como o Chile deveria ter um gasto público nesta área de ao menos 6% do PIB. O deficit faz com que grande parte do financiamento seja responsabilidade dos próprios usuários. Um modelo no qual coexistem duas realidades bastante diferentes de sistemas de saúde: um para os mais ricos, mais jovens e menos propensos a doenças crônicas, que podem obter seguros de saúde “isapres” e serem atendidos em clínicas privadas, com estrutura similar à de países desenvolvidos, e outro sistema para os pobres, os mais velhos e os que possuem doenças crônicas, a maioria dos quais são filiados ao Fonasa e atendidos pelos centros da rede pública, com pior qualidade – mesmo os que são administrados por privados.
O terceiro motivo pelo qual o financiamento tem sido um tema tão crucial no debate sobre a saúde é que o nível mundial dos custos em saúde vem mostrando um nível crescente nos últimos anos. Por isso, os gastos do setor vêm apresentando um incremento anual superior ao do crescimento econômico em alguns países, o que leva a supor uma carga fiscal cada vez mais custosa. Esta situação acaba tendo efeitos muito maiores aos chilenos, já que são os próprios usuários do sistema os responsáveis por arcar com boa parte deste aumento dos custos.
Porém, mais importante que o tema do financiamento é o do modelo em si. O que torna a discussão sobre o modelo ainda mais importante é o fato de que ele está presente também nos casos do sistema educacional e previdenciário, e causa o mesmo efeito de tornar o financiamento daqueles o dilema mais visível para as famílias. Assim, já acumulamos três enormes dilemas cotidianos que oprimem a maioria das famílias chilenas.
Logo, a sociedade chilena precisa debater mais profundamente os efeitos que essa combinação entre público e privado tem sobre a economia familiar. Este debate se torna mais urgente agora que o país passa por um processo de elaboração de uma nova constituição, para substituir finalmente a imposta pela ditadura, em 1980. Se bem conduzido, uma discussão como esta pode render um maior compromisso real do Estado com a saúde, a educação e a proteção social dos seus cidadãos.
No caso da saúde, o debate passa por analisar como a arquitetura do sistema na maioria dos países desenvolvidos (principalmente os europeus, e com mais destaque ainda para os escandinavos, que lideram índice de desenvolvimento humano) dá maior peso ao Estado, o que permite tratar a saúde como um direito universal dos cidadãos – nesses modelos, o financiamento deste direito é garantido, geralmente, através de modelos de arrecadação progressivos, ou seja, impostos onde o mais rico paga mais e o mais pobre paga menos.
Claro que essa dinâmica implica em um tipo de relacionamento entre o Estado, o mercado e a sociedade civil que para ser implantado no Chile ultraneoliberal significaria toda uma revolução de conceitos. Ainda assim, ou talvez por essa mesma razão, é um debate do qual os chilenos não podem fugir.
Há muitos diferentes problemas a se analisar a respeito da saúde pública no Chile, e a maioria deles não difere muito do que se vê no Brasil: filas enormes nos hospitais públicos, falta de médicos (sobretudo especialistas), falta de infraestrutura, investimentos insuficientes, etc.
A grande diferença está no desenho, que trata a saúde não como um direito, mas sim como uma mercadoria. No Chile, a qualidade da atenção que uma pessoa receberá depende diretamente da sua capacidade de pagamento. Os que pagam mais têm uma atenção excelente, os que pagam menos sofrem com uma atenção insuficiente e aos que não pagam nada não resta alternativa a não ser enfrentar toda a precariedade da rede pública.
Para o cidadão que mora no Chile aceder ao sistema de saúde, seja por hospitais ou centros de saúde controlados pela administração pública, ou por clínicas e consultórios privados, precisa ter um plano de saúde, que pode ser através de um serviço privado – as chamadas “isapres” – ou público – oferecido pelo Fundo Nacional de Saúde, também conhecido como “Fonasa”.
O sistema “Fonasa”, por ser público, apresenta maiores vantagens para a população em geral, pois não pode discriminar por nenhum fator e porque é o principal responsável por garantir a maior amplitude possível à cobertura. O cidadão que utiliza o Fonasa deve destinar 7% da sua renda mensal para financiar seu seguro de saúde. Evidentemente, nem todos têm dinheiro para pagar as mensalidades, nem mesmo as dos planos mais baratos oferecidos pelo Fonasa, e por isso existe uma modalidade do fundo que permite usar o sistema de saúde sem pagar nada.
Já os clientes dos seguros de saúde “isapres” pagam bastante mais e têm acesso a clínicas e consultas médicas privadas, sendo que alguns desses serviços são exclusivos, dependendo do tipo de plano. O valor mensal para pelos usuários de isapres varia de acordo com o gênero, (as mulheres pagam mais), a idade (encarecendo o custo para os mais idosos) e em caso de doenças crônicas, como hipertensão ou diabetes.
Aqui nasce a principal crítica dos próprios usuários aos modelo: o fato de que a capacidade de pagamento determinar a qualidade da atenção médica. Uma situação que ocorre mesmo os clientes do fundo público: dentro do Fonasa existem quatro categorias diferentes, sendo a categoria A a dos que não contribuem mensalmente com nada, e acabam sendo os que recebem atendimento mais precário.
Desta forma, o sistema absorve a desigualdade social já existente no país – apesar da retórica neoliberal gostar de usar o Chile como exemplo para o resto do continente, o país é um dos mais desiguais do mundo, considerando a brecha entre os mais ricos e os mais pobres do país –, fazendo com que grande parte da população seja mal atendida. Um panorama que pode se tornar ainda mais dramáticos em casos de famílias pobres com um parente que carece de uma cirurgia ou padece de um câncer ou uma doença rara de caro tratamento.
É por causa desse impacto social que muitos analistas consideram que o Chile precisa repensar um novo conceito de saúde pública, que não seja baseado na lógica do mercado, como acontece com o modelo atual. Um deles é Matías Goyenechea, diretos da fundação Creando Salud (“Criando Saúde”) e um dos maiores especialistas em saúde pública do Chile, que há tempos denuncia um desequilíbrio no funcionamento do sistema: “este é um sistema pensado para favorecer o mercado e o lucro das empresas. Mais de 50% dos recursos usados no país em saúde vão para o sistema privado, sendo que a grande maioria da população (quase um 70%) utiliza os serviços públicos, que sofre assim com uma falta de investimentos por parte do Estado”.
Segundo o Informe de Desenvolvimento Humano de 2012, a maioria dos chilenos (54%) sente que o Estado deveria cumprir um papel social e proteger a saúde dos cidadãos em geral e o bem-estar da terceira idade. O atual sistema é altamente privatizado: assim como acontece na educação, muitos dos hospitais públicos ou centros de saúde comunitários são administrados por entes privados, fundações ou cooperativas. Isto significa que um enorme obstáculo na hora de fazer com que a cobertura alcance toda a população, especialmente os mais pobres.
Esta situação alimenta um mal-estar que também se registra nos sistemas educacional e previdenciário – estes dois, curiosamente, os responsáveis pelas mobilizações mais importantes e numerosas organizadas pelos movimentos sociais no país nesta década, uma reação que o sistema de saúde ainda não despertou –, e que leva a uma discussão mais profunda a respeito do modelo socioeconômico chileno e a necessidade de transição de uma sociedade contributiva – onde os cidadãos são responsáveis, através de suas contribuições individuais, pelos serviços públicos e pela qualidade dos mesmos, de acordo com sua capacidade de pagamento – para uma de direitos, onde todos podem receber um serviço garantido universalmente, pelo simples fato de serem cidadãos.
Contudo, o atual debate chileno sobre a saúde vem se concentrando ainda no aspecto que afeta mais diretamente os usuários: o financiamento do sistema. Primeiro, porque os investimentos governamentais para enfrentar os equívocos do sistema geralmente se traduzem em melhorias temporárias – afinal, esses investimentos tampouco são permanentes.
Segundo, porque o gasto público em saúde no Chile é muito baixo com relação aos países desenvolvidos: 3,5% do PIB em 2011, enquanto a média dos países da OCDE é de 8%. Segundo a Organização Mundial da Saúde, um país como o Chile deveria ter um gasto público nesta área de ao menos 6% do PIB. O deficit faz com que grande parte do financiamento seja responsabilidade dos próprios usuários. Um modelo no qual coexistem duas realidades bastante diferentes de sistemas de saúde: um para os mais ricos, mais jovens e menos propensos a doenças crônicas, que podem obter seguros de saúde “isapres” e serem atendidos em clínicas privadas, com estrutura similar à de países desenvolvidos, e outro sistema para os pobres, os mais velhos e os que possuem doenças crônicas, a maioria dos quais são filiados ao Fonasa e atendidos pelos centros da rede pública, com pior qualidade – mesmo os que são administrados por privados.
O terceiro motivo pelo qual o financiamento tem sido um tema tão crucial no debate sobre a saúde é que o nível mundial dos custos em saúde vem mostrando um nível crescente nos últimos anos. Por isso, os gastos do setor vêm apresentando um incremento anual superior ao do crescimento econômico em alguns países, o que leva a supor uma carga fiscal cada vez mais custosa. Esta situação acaba tendo efeitos muito maiores aos chilenos, já que são os próprios usuários do sistema os responsáveis por arcar com boa parte deste aumento dos custos.
Porém, mais importante que o tema do financiamento é o do modelo em si. O que torna a discussão sobre o modelo ainda mais importante é o fato de que ele está presente também nos casos do sistema educacional e previdenciário, e causa o mesmo efeito de tornar o financiamento daqueles o dilema mais visível para as famílias. Assim, já acumulamos três enormes dilemas cotidianos que oprimem a maioria das famílias chilenas.
Logo, a sociedade chilena precisa debater mais profundamente os efeitos que essa combinação entre público e privado tem sobre a economia familiar. Este debate se torna mais urgente agora que o país passa por um processo de elaboração de uma nova constituição, para substituir finalmente a imposta pela ditadura, em 1980. Se bem conduzido, uma discussão como esta pode render um maior compromisso real do Estado com a saúde, a educação e a proteção social dos seus cidadãos.
No caso da saúde, o debate passa por analisar como a arquitetura do sistema na maioria dos países desenvolvidos (principalmente os europeus, e com mais destaque ainda para os escandinavos, que lideram índice de desenvolvimento humano) dá maior peso ao Estado, o que permite tratar a saúde como um direito universal dos cidadãos – nesses modelos, o financiamento deste direito é garantido, geralmente, através de modelos de arrecadação progressivos, ou seja, impostos onde o mais rico paga mais e o mais pobre paga menos.
Claro que essa dinâmica implica em um tipo de relacionamento entre o Estado, o mercado e a sociedade civil que para ser implantado no Chile ultraneoliberal significaria toda uma revolução de conceitos. Ainda assim, ou talvez por essa mesma razão, é um debate do qual os chilenos não podem fugir.
Créditos da foto: reprodução
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