O mundo e o enigma Trump
Roberto Amaral
A ameaça reacionária não é fato nem novo nem isolado, mas
agora se instala no cume do poder mundial.
Diante de dois péssimos candidatos, o eleitorado
norte-americano, dividido ideologicamente como jamais esteve, escolheu, após
campanha do mais baixo nível, aquele que lhe pareceu a negação do
establishment, exatamente Donald Trump, figura heterodoxa do sistema (não fora
ele um bilionário de Walt Street), o único ‘não político’, multimilionário
desde o berço, outsider na política, devedor do fisco e ao mesmo tempo defensor
de menos impostos para os ricos, e militante contra a política de saúde social
de seu antecessor.
O 45ª presidente norte-americano, depois de derrotar de forma
avassaladora o Partido Republicano e suas lideranças mais conspícuas,
impondo-se como candidato contra a vontade da máquina, fez de sua campanha uma
plataforma do reacionarismo mais primário, da xenofobia e do protecionismo (uma
ameaça não só à União Europeia, mas a países como o Brasil, a Índia e a China,
entre outros grandes exportadores).
Mas prometeu isolacionismo, o que soa como música aos ouvidos
de todos, porque pode ser traduzido como menos intervencionismo político na
América Latina (apesar de suas ameaças ao México) e menos invasões militares no
resto do mundo. A propósito, nos últimos anos de Bush e Obama, os EUA
intervieram e destruíram o Iraque, a Líbia e a Síria, depois de destruírem o
Afeganistão, e por essas tragédias estamos todos pagando – enquanto cada vez
mais aufere lucros a miserável indústria da guerra.
De outra parte, na disputa dentro do Partido Democrata, a
ex-secretária de Estado, que sempre simbolizou o continuísmo (com republicanos
ou democratas), era o nome da máquina contra o senador Bernie Sanders, que
representava, ele sim, o sentimento de mudança.
A vitória de Trump representa, nas circunstâncias, a derrota
do neoliberalismo ortodoxo, da financeirização da economia, a derrota da mídia
americana (segundo ele, “desonesta e enviesada”) e da mídia mundial, como dos
institutos de pesquisa em todo o globo.
Mas o presidente eleito é, ao mesmo tempo, o candidato
grotesco que desmoralizou os partidos, a política, seus ritos, seus fins, sua
teleologia, reduzindo-a à insignificância da inutilidade. Esse Trump, antes das
eleições rejeitado por 59% do eleitorado, candidato populista de
extrema-direita que nos lembra uma composição que misturasse Maluf e um
Bolsonaro qualquer com uma pitada de Sílvio Santos, não é, porém, obra do
acaso, fruto que é da crise política dos EUA, da crise econômica e da crise
ética, e de seu sistema político; é a falência do processo eleitoral e da
democracia representativa nos EUA, o esgotamento de um ciclo que se encerra sem
anunciar novos tempos, senão a promessa de muita apreensão.
É a falência do sistema eleitoral, inepto, como demonstrou a
eleição do Bush filho, fundada na fraude e no desrespeito à vontade
majoritária, desrespeito que se repete nas pouco representativas eleições deste
mês: 231 milhões de eleitores numa população de 320 milhões; 46,9% dos
habilitados não votaram; 25,6% votaram em Hillary e 25,5%, em Trump.
A derrotada recebeu 250 mil votos a mais que o vencedor. É a
agonia do bipartidarismo, a falência do Partido Democrata, derrotado na
política e nas urnas, e a derrota do Partido Republicano, que teve que
assimilar um candidato imposto de fora para dentro e com o qual não se
identificou na campanha.
Mas essa eleição não pode ficar no grotesco nem demonizar o
poder da soberania do voto, como querem analistas apressados dos dois lados do
Atlântico. Como em nossa crise cabocla, é preciso considerar ingredientes
tradicionais como o desemprego, a queda da renda individual, a pauperização das
grandes massas (hoje, 46 milhões de norte-americanos dependem do Food Stamp, o
‘Bolsa Família’ deles) o endividamento, a moradia precária, a violência e, em
país beligerante, permanentemente em guerra, o cansaço ante tantas intervenções
e tantas invasões e tantas bases militares cobrindo a Terra.
Além disso, o medo em face do terrorismo difuso, o legado dos
16 anos de Bush-Obama, por seu turno a continuidade política da beligerância de
Clinton, sucessor de Bush-pai, herdeiro de Nixon e Reagan, herdeiro de Johnson,
herdeiro de Kennedy.
É evidente que está sob comentário o fenômeno recente, embora
há muito anunciado, da aguda guinada direitista dos EUA, e qualquer análise não
passará de tentativa de antevisão, com todos os riscos inerentes. Se é possível
antever o frustrado governo Hillary – preeminência do establishment, do
complexo militar-industrial, dos falcões da política externa, do fortalecimento
da OTAN e do crescimento das dificuldades com a Rússia e tudo o que de tudo
isso é mero desdobramento –, relativamente a Trump qualquer previsão é mais
insegura.
Dir-se-á, e apostamos nessa hipótese, que a complexidade do
sistema político governante, com seus pesos e contrapesos que promovem o
controle social e político, absorvendo as crises – o complexo
militar-industrial de que nos falava Eisenhower, o Congresso, Wall Street, o
Pentágono, CIA e FBI, a Suprema Corte – estaria vacinada contra aventureiros.
Mas nada disso impediu a loucura democrata no Vietnã nem a
irresponsabilidade republicana no Iraque. De outra parte, Trump assume contando
com o apoio (que faltou a Obama) tanto da Câmara dos Representantes quanto do
Senado (o Partido Republicano renovou sua maioria em ambas as Casas) e com
reais possibilidades (preencherá três vagas) de influir na composição da
Suprema Corte.
Diz um comentarista nativo que Trump venceu por haver
convencido o eleitorado de que era sincero, ou seja, que ele próprio acreditava
em suas ideias, mais precisamente nas ideias que expunha como suas.
Ora, a questão central é o fato de essas ideias impregnadas
de ódio e discriminação (sinceras ou não, bem ou mal transmitidas), haverem
encontrado eco profundo nos EUA: o discurso contra os latinos, de um modo geral,
e os mexicanos de forma particular (“Quando o México envia suas pessoas para os
EUA, eles não estão mandando seus melhores […] Eles estão trazendo drogas,
crime. São estupradores. […] Eu vou construir um grandioso muro em nossas
fronteiras. E vou fazer o México pagar por ele”), o discurso contra os
imigrantes, de um modo geral (promete expulsar 11 milhões de imigrantes em
situação irregular, mas contra os muçulmanos de um modo particular, dos
deficientes, dos intelectuais, das mulheres ‘modernas’, pós-feministas e
independentes, a ladainha contra aliados políticos e militares dos EUA e da
OTAN em especial; as ameaças (por enquanto comerciais) à China, a quem acusa de
haver deflagrado uma espécie de guerra econômica contra seu país.
Observe-se, de passagem, que a China, com um caixa de US$
1,224 trilhão de títulos da dívida publica dos EUA, é seu principal credor.
Como já foi observado, o problema não é Donald Trump, mas o
fato de parcela considerável do eleitorado dos EUA, após quase dois anos de
campanha eleitoral, se haverem convencido de que tal personagem podia ser presidente
da República.
O problema não é esse personagem, mas a fragilidade do
sistema democrático dos EUA que – depois de Reagan e Bush – enseja sua
emergência, a partir de uma campanha fundada no ódio, na exclusão, na divisão,
na segregação, na política de terra arrasada (para anunciar um novo EUA teve de
primeiro decretar a derrocada do atual).
O fato objetivo, desagradável, mas real, é que o novo
presidente reflete uma sociedade dividida, clivada em seus valores mais
profundos, falando mais alto que todos (nas eleições) os valores majoritários
do americano branco classe-média, principalmente aquele que vive na América
rural, a qual assegurou a Trump vitórias decisivas em Estados chamados
“pêndulo” (por indicarem nas eleições uma tendência para a qual se inclinaria o
eleitorado nacional), como Flórida, Ohio e Carolina do Norte, ressentido com os
efeitos da globalização e da imigração.
Não é fato novo, porém, esse avanço da direita e da
extrema-direita em sociedades desenvolvidas: assim marcha a política na
Alemanha, na Polônia, na França, na Áustria, na Hungria, na Turquia e no Reino
Unido, de que constitui eloquente sintoma a rejeição inglesa à Comunidade
Europeia, como símbolo de unificação e globalização. Em ambos os casos, nas
vitórias de Trump e do Brexit, houve a clara derrota das elites locais.
Mesmo entre nós, inclusive na América do Sul (a eleição de
Macri, na Argentina, o “não” ao acordo de Paz na Colômbia, a crise na
Venezuela) e no Brasil, essa ameaça reacionária não é fato nem novo nem
isolado. E agora se instala no cume do poder político mundial, do poder
econômico e do poder militar (tudo isso ao mesmo tempo), compreendendo o
controle do mais poderoso arsenal atômico jamais conhecido pela humanidade.
Não é, pois, uma ameaça trivial. A questão não é Donald
Trump, mas os EUA que estão emergindo desse 8 de novembro (o resultado chocante
veio a lume em 9/11 o que sugere um curioso, e um tanto sinistro, espelhamento
com o 11/9).
Donald Trump, porém, na presidência, poderá ser algo diverso
do candidato grotesco, e dessa metamorfose já deu sinais em seu discurso logo
após o reconhecimento da eleição. Metade dele foi de uma frivolidade e de um
vazio dolorosos. Outra é ambígua: ele faz o discurso conciliatório de todo
vencedor (e não menos de alguém preocupado com o bom funcionamento dos
mercados), mas ao mesmo tempo cria imagens de reconstrução de um país
devastado. Poderá mesmo ser um acelerador do processo histórico, acentuando
contradições.
Há ainda poucos indicadores de como será Donald Trump
instalado no salão oval da Casa Branca, aí então à mercê de suas
circunstâncias. Por enquanto, um enigma.
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