terça-feira, 15 de novembro de 2016

O perigo da pseudoatividade

14/11/2016 14:41 - Copyleft

O perigo da pseudoatividade

Neste artigo publicado na semana anterior às eleições estadunidenses, Zizek afirma que o mais conveniente para a esquerda seria uma vitória de Trump.


Slavoj Zizek *
reprodução
José Saramago, em sua novela “Ensaio sobre a lucidez”, conta a história de fatos estranhos numa cidade capital sem nome, num país democrático não identificado. Quando, na manhã do dia das eleições, a cidade enfrenta uma chuva torrencial, a participação dos eleitores é surpreendentemente baixa, mas o clima melhora durante a tarde e as pessoas vão em massa aos centros de votação. O alívio do governo, porém, dura pouco, já que a apuração mostra que mais de 70% dos votos emitidos na capital foram em branco. Perplexo por este aparente lapso cívico, o governo dá à cidadania uma oportunidade para se redimir uma semana depois, com outro dia de eleições. E o novo resultado é ainda pior: os votos em branco chegam aos 83%… Será isso uma conspiração organizada para derrubar não só o governo senão todo o sistema democrático? Se é assim, quem são os que estão por trás disso e como conseguiram organizar centenas de milhares de pessoas em semelhante subversão sem serem percebidos? A cidade continua funcionando quase normalmente, com o povo suportando cada um dos golpes do governo, numa inexplicável união e com um nível verdadeiramente gandhiano de resistência não violenta… A lição deste experimento mental é clara: o perigo hoje não é a passividade, mas sim a pseudoatividade, a necessidade de “estar ativo”, de “participar” daquilo que servirá para desmascarar a vacuidade do que sucede. As pessoas intervém o tempo todo, “faça algo”, os acadêmicos participam de debates sem sentido, etc. O que é verdadeiramente difícil é dar um passo atrás, se retirar. Aqueles que estão no poder sempre preferem uma participação crítica, um diálogo de silêncios – só para que nos comprometamos com um “diálogo”, para assegurar que nossa ameaçadora passividade está quebrada. A abstenção dos votantes é, portanto um verdadeiro ato político: nos confronta forçadamente com a vacuidade das democracias de hoje.
 
É exatamente assim que os cidadãos devem atuar quando se enfrentam com a eleição entre Hillary Clinton e Donald Trump. Quando perguntaram a Stalin, no final dos Anos 20 do século passado, que desvio é pior, o da direita ou o da esquerda, ele respondeu: “ambos são piores!”. Não acontece o mesmo nesta disputa eleitoral estadunidenses de 2016? Donald Trump é, obviamente, “o pior”, já que promete uma guinada à direita e promulga uma decadência da moralidade pública. Entretanto, ele ao menos promete uma mudança. Por sua parte, Hillary Clinton é “pior” porque faz que o não mudar nada pareça desejável. Neste cenário, não devemos perder a calma, para escolher o “pior” que significa a mudança – inclusive se é uma mudança perigosa, já que abre espaço para uma mudança diferente, mais autêntica. O ponto não é, portanto, votar por Trump – não se trata de sugerir que as pessoas votem tal escória, que sequer deveria participar destas eleições. O ponto é abordar friamente a pergunta: qual é a vitória mais adequada para o destino do projeto emancipatório radical, o de Clinton ou o de Trump?
 
Trump quer “devolver à grandeza aos Estados Unidos”, frase que Obama respondeu dizendo que os Estados Unidos já são uma grande nação. Mas, realmente é? Pode um país onde uma pessoa como Trump tem a oportunidade de se tornar presidente ser considerado realmente grande? Os perigos de uma presidência de Trump são óbvios: não somente promete nomear juízes conservadores à Corte Suprema, não só mobilizou os mais obscuros círculos da supremacia branca e flerta abertamente com o racismo e a xenofobia. Não só se burla das regras básicas da decência e simboliza a desintegração das noções mais básicas de ética, enquanto advoga em favor da miséria das pessoas comuns, promove efetivamente uma agenda neoliberal brutal, que inclui benefícios fiscais para os mais ricos, maior desregulação, etc. Trump é um oportunista vulgar, mas ainda assim é um espécime humano – diferente de sujeitos como Ted Cruz ou Rick Santorum, os quais eu suspeito que são extraterrestres. O que Trump definitivamente não é: um capitalista produtivo e inovador de sucesso. Ele apenas se destaca por entrar sempre em bancarrota, e logo fazer com que os contribuintes cubram suas dívidas.
 
Os liberais, em pânico com o fenômeno de Trump, descartam a ideia de que uma vitória eventual de Trump pode iniciar um processo pelo qual surgiria uma esquerda autêntica, e o contra argumento é uma referência a Hitler. Muitos comunistas alemães celebraram a chegada dos nazis ao poder, como uma nova oportunidade para a esquerda radical, que seria a única força capaz de derrotá-los. Mas, como sabemos, cometeram um erro catastrófico. A pergunta é: a situação é a mesma agora com Trump? Seria o empresário um perigo capaz de reunir uma frente ampla, assim como Hitler provocou a união entre os conservadores decentes e os libertários, para lutarem juntos com os progressistas liberais tradicionais e com o que resta da esquerda radical? Fredric Jameson tinha razão ao advertir que a designação precipitada do movimento Trump como novo fascismo é um erro: “as pessoas estão dizendo que tal coisa é o novo fascismo, e a minha resposta sobre isso é: ainda não!” (Incidentalmente, o termo “fascismo” é usado hoje como uma expressão vazia, cada vez que algo obviamente perigoso aparece na cena política, mas carecemos de uma compreensão adequada do termo: os populistas de hoje não são simplesmente fascistas). E por que ainda não?





 
Primeiro, o temor de que uma vitória de Trump transforme os Estados Unidos num país fascista é um exagero ridículo. Os Estados Unidos têm uma textura tão rica de divergentes instituições cívicas e políticas que seu gleichschaltung não poderia ser promulgado. De onde provém então este temor? Sua função é claramente a de unificar as forças contra Trump, e assim ofuscar as verdadeiras divisões políticas que ocorrem entre a esquerda ressuscitada por Bernie Sanders e o partido que sempre preferiu Hillary Clinton, que é A candidata do establishment, apoiada por uma ampla coalizão arco-íris, que inclui velhos guerreiros frios como Paul Wolfowitz e a Arábia Saudita. Em segundo lugar, Trump se apoiou na mesma raiva que usou Bernie Sanders para mobilizar os seus partidários. Por isso, ele é percebido pela maioria de seus partidários como o candidato anti establishment, e não devemos esquecer que a ira popular nunca está flutuando livremente ar, e pode ser redirecionada. O temor dos liberais sobre uma vitória de Trump não tem a ver com uma possível guinada radica à direita. O que realmente temem é simplesmente uma mudança social radical. Como disse Robespierre, os liberais admitem e sinceramente se preocupam pelas injustiças da nossa vida social, mas pretendem curá-las com uma “revolução sem revolução” (em paralelo exato ao consumismo atual, que oferece café sem cafeína, chocolate sem açúcar, multiculturalismo sem enfrentamentos violentos, etc): uma visão de mudança social sem mudança real, uma mudança na que não lastima realmente ninguém, onde os liberais bem intencionados permanecem protegidos em seus enclaves seguros. Em 1937, George Orwell escreveu: “todos somos contra as distinções de classe, mas pouquíssimas pessoas realmente aboli-las Assim, chegamos à importante conclusão de que cada opinião revolucionária tira parte de sua força de uma convicção secreta de que nada pode ser mudado”.
 
O ponto de Orwell é que os radicais invocam a necessidade de uma mudança revolucionária como uma espécie de símbolo supersticioso que deve obter o contrário, ou seja, EVITAR que a única mudança que realmente importa, a mudança dos que nos governam, se produza. Quem realmente governa os Estados Unidos? Já não estamos ouvindo o burburinho das reuniões secretas nas quais os membros das elites financeiras e quejandos “estão negociando a distribuição dos cargos mais importantes da administração Clinton”? Para se ter uma ideia de como funcionam estas negociações nas sombras, basta ler emails de John Podesta ou de Hillary Clinton. Sua vitória será a vitória de um status quo obscurecido pela perspectiva de uma nova guerra mundial (e ela definitivamente é uma democrata típica, fria e tolerante às guerras), uma situação que, gradual porém inevitavelmente, começa a afetar a ecologia, a economia, a humanidade e outras tragédias. Por isso, considero extremamente cínica a crítica “esquerdista” da minha postura, ao afirmar que: “para intervir numa crise, a esquerda deve estar organizada, preparada e ter apoio da classe operária e dos oprimidos. Não podemos, de nenhuma maneira, respaldar o vil racismo e o sexismo que nos divide e debilita a nossa luta. Devemos estar sempre do lado dos oprimidos, e devemos ser independentes, lutando por uma verdadeira saída da crise pela esquerda. Ainda que Trump seja catastrófico para a classe dominante, também será uma catástrofe para nós, se não conseguimos cimentar os caminhos da nossa própria intervenção”.
 
É verdade que a esquerda “deve ser organizada, preparara e ter apoio da classe operária e dos oprimidos”, mas, neste caso, a pergunta deveria ser: qual vitória contribuiria mais com a organização da esquerda e sua expansão? ¿Não está claro que a vitória de Trump ajudaria a “cimentar melhor os caminhos da nossa própria intervenção” muito mais que a de Hillary? Sim, há um grande perigo implícito na vitória de Trump, mas a esquerda SOMENTE se mobilizará através de uma ameaça de catástrofe – se continuamos com a inércia do status quo existente certamente NÃO haverá mobilização esquerdista. Estou tentado citar (o poeta alemão Friedrich) Hölderlin aqui: “só onde há perigo, a força salvadora também aumenta”. Na eleição entre Clinton e Trump, nenhum deles “está do lado dos oprimidos”. Portanto, a verdadeira eleição é: se abster de votar ou escolher qual dos dois candidatos, com os quais não se tem nenhum valor em comum, abre uma maior possibilidade de desencadear uma nova dinâmica política, que pode conduzir a uma massiva radicalização esquerdista.
 
Muitos dos eleitores pobres dizem que Trump fala por eles – como podem se identificar com a voz de um multimilionário cujas especulações e fracassos são uma das causas da sua própria miséria? Assim como os caminhos de Deus, os caminhos da ideologia são misteriosos… (embora alguns dados sugiram que a maioria dos partidários de Trump não são de baixa renda). Quando os eleitores de Trump são qualificados como lixo branco, “é fácil discernir nesta designação o temor das classes baixas, característico da elite liberal”. Eis aqui o título e o subtítulo de um informe do diário britânico The Guardian, sobre uma recente reunião de campanha de Trump: “dentro de um rally de Donald Trump: boa gente num circuito de retroalimentação da paranoia e do ódio. A multidão de Trump está cheia de gente honesta e decente, mas as invectiva republicana tem um efeito assustador sobre os fanáticos do seu one-man show”.
 
Contudo, como Trump se transformou na voz de tantas pessoas honestas e decentes? Trump só arruinou o Partido Republicano, enfrentando o establishment da velha legenda e os fundamentalistas cristãos. O que resta como núcleo do seu apoio são os portadores da ira populista diante do establishment, e este núcleo é rejeitado pelos liberais e pelo “lixo brancos” – mas, não é precisamente aqueles que precisam ser conquistados em favor da causa radical da esquerda? (Não foi isto o que Bernie Sanders conseguir?). Deveríamos tentar nos desfazer dos falsos pânicos, temendo que a vitória de Trump seja o último horror que nos faz apoiar Hillary Clinton, apesar de suas óbvias deficiências. Embora a batalha pareça perdida para Trump, sua vitória poderia criar uma situação política totalmente nova, com possibilidades de uma esquerda mais radical – ou, para citar novamente a Mao: “há desordem sob o céu, e por isso a situação sob o céu é excelente”.
 
Há outro aspecto do duelo entre Trump e Clinton, que se refere à diferença sexual. Um comunista maoista – Alain Badiou, em seu novo livro La Vraie Vie (“A Verdadeira Vida”, em tradução livre) – fez uma surpreendente advertência sobre os perigos da crescente ordem niilista pós-patriarcal, que se apresenta como o domínio das novas liberdades. Vivemos numa época extraordinária, na que não existe uma tradição na qual podamos basear nossa identidade, nenhum marco de vida significativa que nos permita viver uma vida além da reprodução hedonista. Este novo transtorno mundial, esta civilização progressivamente emergente, afeta de forma exemplar os jovens que oscilam entre a intensidade da experiência em êxtase (o gozo sexual, as drogas, o álcool, até a violência) e o esforço resiliente por triunfar (estudar, fazer carreira, ganhar dinheiro dentro da ordem capitalista existente), a única alternativa a ela é uma guinada violenta a alguma tradição artificialmente ressuscitada.
 
Badiou observa de forma perspicaz que estamos recebendo uma versão decadente e reativa do distanciamento do Estado anunciado por Marx: o Estado de hoje é cada vez mais um regulador administrativo do egoísmo do mercado, sem autoridade simbólica, carente do que Hegel percebeu como a essência do Estado – a comunidade abarcadora pela que estamos dispostos a nos sacrificar. Esta desintegração da substância ética está claramente demonstrada pela abolição do recrutamento militar universal em muitos países desenvolvidos: a mesma noção de estar disposto a arriscar a vida por um exército de causa comum parece cada vez más inútil, quando não diretamente ridículo, já que as forças armadas, de ser um corpo no qual todos os cidadãos participam igualitariamente, está gradualmente se transformando numa força mercenária.
 
Esta desintegração de uma substância ética compartida afeta de maneira diferente os dois sexos: os homens gradualmente se convertem em adolescentes perpétuos, sem um claro ritual de iniciação que promulgaria a sua entrada na madurez (serviço militar, a aquisição de uma profissão ou mesmo o alcançar um nível educacional específico). Não é de se estranhar, portanto, que para suplantar esta carência vejamos a proliferação das gangues juvenis pós-paternais, proporcionando uma iniciação substituta e uma identidade social. Em contraste com os homens, as mulheres são hoje mais e mais precocemente maduras, tratadas como pequenos adultos, e se espera que controlem suas vidas, que planifiquem sua carreira… Nesta nova versão da diferença sexual, os homens são adolescentes lúdicos, foragidos da realidade, enquanto as mulheres são maduras, sérias, legalistas e punitivas. A ideologia governante não espera hoje que as mulheres sejam subordinadas. Ela espera que sejam as juízas, as administradoras, ministras, CEOs, professoras, e inclusive policiais ou soldados. Uma cena paradigmática que ocorre cotidianamente em nossas instituições de segurança é a de uma professora / juíza / psicóloga cuidando a um delinquente masculino jovem, antissocial e imaturo… Assim surge uma nova figura do Uno: um agente frio, ávido por competir pelo poder, sedutor e manipulador, que testemunha o paradoxo de que “nas condições impostas pelo capitalismo, as mulheres podem funcionar melhor que os homens” – segundo Badiou. Isto, evidentemente, não transforma as mulheres em agentes do capitalismo. Simplesmente demonstra que o capitalismo contemporâneo inventou sua própria imagem ideal da mulher.
 
Há uma tríade política que retrata perfeitamente a situação descrita por Badiou: Hillary-Duterte-Trump. Hillary Clinton e Donald Trump formam a dicotomia política definitiva de hoje: Trump é o adolescente eterno, um hedonista imprudente propenso aos impulsos irracionais que podem prejudicar suas possibilidades eleitorais, enquanto Hillary exemplifica o novo Uno feminino, uma manipuladora impiedosa, autocontrolada, que explora imprudentemente sua feminilidade e se apresenta como guardiã dos marginalizados e das vítimas – sua feminilidade a torna mais eficiente na manipulação. Desta forma, o público não deveria ser seduzido por sua imagem de vítima de um Bill que anda flertando por aí alegremente, enquanto permite que as mulheres o chupem em seu escritório – ele era o verdadeiro palhaço, enquanto ela é era o dominante na relação, que permite aos seus serventes prazeres irrelevantes… O que dizer então sobre Rodrigo Duterte, o presidente filipino que solicita abertamente o assassinato de usuários de drogas e traficantes, em medidas extrajudiciais, chegando a se comparar com Hitler? Duterte defende a decadência do império da lei, a transformação do poder estatal numa regra extralegal que governa sua selvagem justiça, fazendo o que ainda não está abertamente permitido nos países ocidentais “civilizados”. Se condensamos os três em um só, obteremos uma imagem ideal do político de hoje: Hillary Duterte Trump.
 
* Filósofo e crítico cultural esloveno.
 
Tradução: Victor Farinelli


Créditos da foto: reprodução




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