A derrota dos
terroristas é a derrota dos países que os apoiam
(Entrevista com o presidente Bachar al-Assad)
O
presidente sírio Bachar al-Assad explica em entrevista a Rússia Today como o
Exército Sírio acaba de infligir uma derrota aos terroristas apoiados por
potências imperialistas.
·
Rússia Today:
Senhor presidente, obrigado por nos receber.
Bachar
al-Assad: Sejam bem-vindos a Damasco.
·
Comecemos com Aleppo,
claro. Aleppo passa hoje por combates que talvez sejam os mais ferozes desde o
início da guerra há seis anos aqui na Síria. Mas políticos e jornalistas
ocidentais insistem em posições de forte oposição, com olhar muito negativo
sobre os avanços do exército sírio. Por que acontece assim, na sua avaliação?
Será que veem a derrota dos inimigos da Síria como derrota deles mesmos?
Assad: Faz sentido, depois de terem fracassado em Damasco,
porque o discurso dos três primeiros anos da guerra era “libertar Damasco das
mãos do Estado”. Quando fracassaram, foram para Homs; fracassaram em Homs e
concentraram-se contra Aleppo durante os três últimos anos. E para eles, seria
a grande cartada no campo de batalha sírio.
Claro, sim, sempre houve terroristas nas
várias regiões da Síria, mas não como em Aleppo que é a segunda maior cidade do
país, com dimensão política muito especial, militar, econômica e até moral,
depois que os terroristas foram derrotados.
Assim, para políticos e jornalistas
‘ocidentais’, a derrota dos terroristas é a derrota das forças que o próprio
ocidente mantém ‘por procuração’ na Síria, para dizer claramente. São forças do
‘Ocidente’, mantidas aqui por procuração. Para essas forças, a derrota dos
terroristas é a derrota dos países que supervisionam e abastecem os
terroristas, sejam países regionais ou países ‘ocidentais’ como EUA, em
primeiro lugar, a França e o Reino Unido.
·
Então, eles veem
o que está acontecendo como derrota direta deles?
Assad: Exatamente, é exatamente o que quero dizer. A
derrota dos terroristas é a derrota desses países, porque os terroristas são o
verdadeiro exército daqueles países, em luta aqui na Síria. Esses países não
intervieram diretamente na Síria. A intervenção aconteceu mediante essas forças
‘por procuração’. As coisas têm de ser vistas desse modo, se se quer fazer
análise realista. E, claro, as declarações dos terroristas em nada mudam nesses
fatos.
·
Palmira é agora
mais uma zona problemática, tomada pelo ISIS
(sigla em inglês do chamado Estado Islâmico). Mas não se ouve tanta indignação
‘ocidental’ no caso de Palmira. O motivo é esse que o senhor já expôs?
Assad: Exatamente. Se Palmira tivesse sido invadida pelo
Exército Árabe Sírio, lá estaria em todos os jornais o discurso sobre danos ao
patrimônio histórico. Imediatamente depois que expulsamos os terroristas que
ocupavam Aleppo e a cidade foi libertada, autoridades ‘ocidentais’ e
jornalistas dos veículos das grandes empresas de mídia põem-se a manifestar
preocupação com os civis… Mas não se incomodam desde que os terroristas estejam
no comando, matando civis, massacrando populações inteiras ou atacando Palmira
e destruindo patrimônio cultural da humanidade, e não só na Síria.
Sua avaliação é correta. Se você
considera o momento escolhido para atacarem Palmira, vê-se claramente que está
ligado ao que acontece em Aleppo. É a resposta dos terroristas ao que acontece
em Aleppo, ao avanço do Exército Árabe Sírio. Quiseram minar a vitória em Aleppo
e, ao mesmo tempo, desviar a atenção do Exército Árabe Sírio, afastando-o de Aleppo
e atraindo-o para Palmira para, assim, interromper o avanço em Aleppo. Não
funcionou como os terroristas esperavam.
·
Também há
informações segundo as quais o sítio de Palmira não estaria conectado só à
batalha de Aleppo, mas também ao que se passava no Iraque. A coalizão dirigida
pelos EUA, com cerca de 70 países, teria permitido que os terroristas do ISIS que combatiam em Mossul partissem,
o que teria reforçado o ISIS aqui na Síria. O senhor acredita que tenha
acontecido desse modo?
Assad: É possível, mas exclusivamente para limpar as
pegadas das autoridades norte-americanas e livrá-las da responsabilidade no
ataque contra Palmira. Fingem que o exército iraquiano estaria atacando Mossul
e que o ISIS trocou Mossul pela Síria, e estaria explicado. Mas a explicação
absolutamente não é essa.
Por quê? Porque os terroristas atacaram
Palmira com poder de fogo e quantidade de soldados sem precedentes, em
proporções que o ISIS nunca teve antes dessa guerra. Atacaram num front muito
extenso, de dezenas de quilômetros, o que pode corresponder a vários exércitos.
O ISIS jamais conseguiria isso se não contasse com apoio de vários Estados, não
de apenas um, mas de vários Estados. Vieram com metralhadoras, canhões,
artilharia diferente.
Não conseguiriam avançar nesse deserto,
sem a ajuda e supervisão da aliança norte-americana que deveria atacar os
terroristas, não ajudá-los, em Raqqa, Mossul e Deir-Ezzor. Mas não aconteceu
assim. Fecharam os olhos para tudo o que o ISIS fizesse – ou mesmo, e é minha
avaliação – a aliança norte-americana empurrou os terroristas na direção de
Palmira.
Mas a questão não é Mossul, e não
cairemos nessa armadilha. A questão é Raqqa e Deir-Ezzor, próximas, a apenas
alguns quilômetros. Não chegariam até aqui sem ajuda de satélites e drones
norte-americanos e sem apoio dos norte-americanos.
·
Qual o estado
atual das forças do ISIS?
A força dos terroristas equivale à ajuda
que obtêm do ocidente e de potências regionais. Na verdade, se os consideramos
isoladamente, não são fortes, porque não contam com estruturas naturais de
inserção social. Sem isso, os terroristas jamais têm força suficiente.
A força deles é o apoio que recebem
(dinheiro, investimentos no petróleo, apoio de forças aéreas da aliança
norte-americana…). Toda a força dos terroristas vem daí. Por isso lhe digo que
a força dos terroristas equivale à força dos seus apoiadores e guias.
·
Ouvimos em Aleppo
que o senhor permitiu que alguns daqueles terroristas deixassem o campo de
batalha, se quisessem. Por que o senhor fez isso? É claro que podem reaparecer
em Idlib, por exemplo, se rearmar e se preparar para outros ataques, voltar
para atacar os que libertam Aleppo.
Assad: É verdade, e acontece assim já há vários anos. Mas é
sempre uma questão de calcular vantagens e inconvenientes. Se os ganhos são
maiores que as perdas, vale a pena fazer. Nesse caso, nossa prioridade é
preservar a região, impedir que seja destruída; proteger civis que vivem lá há
séculos; abrir vias para evacuar os civis por corredores humanitários e guiá-los
para áreas controladas pelo governo sírio; e dar uma chance aos próprios
terroristas para que mudem de ideia, reaproximem-se dos seus conterrâneos,
voltem à vida normal e possam ser anistiados.
Se não aceitam, deixamos que partam com
as armas – apesar de todos os inconvenientes, mas o que nos importa é
afastá-los das áreas históricas. Sendo o caso, podemos dar-lhes combate longe
dos setores construídos, fora da cidade, onde haverá menor número de mortos e
menor destruição de monumentos e áreas construídas. Por isso estamos agindo
desse modo.
·
O senhor os chama
de terroristas, mas os trata como seres humanos. O senhor fala em dar a eles
uma chance “para que voltem à vida normal”.
Assad: Raciocinamos exatamente desse modo. São terroristas
porque lhes puseram armas nas mãos e lhes pagam salários para matar, destruir,
praticar atos de vandalismo. É terrorismo. Em todo o mundo o que eles fazem é
classificado como atos de terrorismo.
Mas ao mesmo tempo, são seres humanos.
Praticam terrorismo, mas poderia não ser assim. São pessoas que se uniram ao
terrorismo por incontáveis razões, por medo, por dinheiro, em alguns casos por
razões ideológicas. Todos os que possam ser reabilitados e voltar à vida
normal, que voltem a ser cidadãos respeitáveis. É nosso dever dar-lhes uma
chance justa. É nosso trabalho de governo.
Não basta dizer “Vamos combater os
terroristas”. A luta contra terroristas é como nos jogos de vídeo. Pode-se
matar o inimigo, mas o próprio jogo gera e regenera milhares de novos inimigos.
O que não se pode fazer é tratá-los como os norte-americanos os tratam: matar
uma vez, duas vezes, três vezes, matar sempre e sempre, e quanto mais
terroristas surjam para serem mortos, melhor! Não. Não somos assim. Nosso
objetivo não é esse, não fizemos essa escolha. Se se pode mudar o próprio jogo,
melhor para todos.
E tem funcionado. Temos tido bons
resultados e um grande número desses terroristas, sim, mudam de perspectiva,
vários retomam à vida de antes, vários unem-se ao exército sírio e passam a
combater os terroristas que permanecem lá. Do nosso ponto de vista, é um
programa bem-sucedido.
·
Senhor
presidente, o senhor acaba de reconhecer que se ganha e se perde. Na sua
avaliação, seu governo fez o suficiente para minimizar as perdas civis durante
essa guerra?
Assad: Fazemos o melhor que podemos. A Síria foi atacada. Essa
guerra não foi decidida por nós. Fazemos o que podemos fazer. Se é suficiente?
Que cada um avalie. De fato, “suficiente” é sempre tudo o que você consiga
fazer em esforço máximo. É a minha capacidade pessoal, a capacidade do governo
sírio, a capacidade da Síria, que é um país pequeno enfrentando a guerra que
lhe fazem dezenas de países, centenas de gigantes da mídia-empresa dominante e
outros meios e forças que se ergueram contra nós.
Não tenho dúvida de que fizemos o melhor
possível em situação dificílima. Afinal de contas, nada jamais será suficiente
nessas circunstâncias e as ações humanas sempre são a resultante de coisas boas
e justas, e de coisas imperfeitas e erradas. As coisas são assim.
·
Os países
ocidentais ‘exigiram’ repetidas vezes que a Rússia e o Irã pressionassem o
senhor para que pusesse fim à violência, como eles dizem. Recentemente, seis
países ocidentais, em mensagem sem precedentes, requereram novamente à Rússia e
ao Irã que pressionassem seu governo, exigindo um cessar-fogo em Aleppo.
Assad: É verdade.
·
O senhor
aceitará? Querem o cessar-fogo no exato momento em que o Exército Árabe Sírio
está avançando.
Assad: Exatamente. Na política, é sempre importante ler as
entrelinhas, não se deixar prender só nas linhas. O que eles ‘exigem’ não tem
importância alguma. A tradução correta daquela declaração é: “Vocês russos, por
favor, detenham o avanço do exército sírio contra os terroristas.” Esse é o
significado daquela declaração: “Vocês cometeram excessos na vitória contra os
terroristas. A derrota deles foi excessiva. Isso não pode ficar assim. Vão lá e
digam aos sírios que ponham fim a esse negócio de derrotar terroristas. Os
terroristas têm de ser preservados. Têm de ser salvos”. Em resumo, aquele apelo
dizia isso. O restante pode esquecer.
Em segundo lugar, a Rússia nunca – nem
hoje, nem durante a guerra, nem antes da guerra, nem em momento algum, nem na
época da União Soviética – a Rússia nunca, em momento algum tentou intervir nas
nossas tomadas de decisão. Até hoje, cada vez que a Rússia teve opiniões ou
conselhos a dar, independentemente de se seriam considerados ou não, sempre
declarou: “O país é de vocês, vocês sabem qual a melhor decisão a tomar.
Expusemos o modo como nós vemos as coisas, mas se vocês veem as coisas de outro
modo, vocês, sírios, sempre conhecerão melhor o país de vocês.” Os russos são
realistas, além de respeitar nossa soberania e eles sempre defendem a soberania
que repousa sobre o Direito Internacional e a Carta das Nações Unidas. Nunca
aconteceu de os russos pressionarem os sírios e jamais pressionarão.
Simplesmente, os russos não trabalham desse modo.
·
Em que condições
está o Exército Árabe Sírio?
Assad: É preciso avaliar em relação a duas coisas:
primeiro, no que tenha a ver com a guerra propriamente dita; segundo, em
relação às dimensões territoriais da Síria. A Síria não é um país de grande
extensão territorial, portanto não pode manter um exército gigante, em termos
quantitativos. O apoio dos nossos aliados é muito importante, especialmente da
Rússia e do Irã. Depois de seis anos, ou quase seis anos, de guerra – a guerra
na Síria já ultrapassou em duração a 1ª Guerra e a 2ª Guerra Mundiais –, é
claro e evidente que o exército sírio já não pode ter as dimensões que tinha
antes dessa guerra.
Mas o que nunca nos faltou foi a
determinação de defender nosso país. É a decisão mais importante. Nosso
exército perdeu muitas vidas, nossos muitos mártires e nossos soldados hoje
inválidos. São muitos, sofremos perdas materiais enormes. Do ponto de vista dos
números, perdemos muito, mas nossa determinação nunca faltou. Hoje, essa
determinação é ainda maior que antes da guerra. Mas, sim, não se pode deixar de
considerar o apoio que recebemos da Rússia, do Irã, que acrescentaram eficácia
e concretude à nossa determinação.
·
O presidente
Obama suspendeu recentemente a proibição de fornecer armas a rebeldes sírios.
Assad: Sim.
·
Como essa decisão
pode traduzir-se em efeitos no terreno? Como o senhor avalia a medida? Será que
reforçará direta ou indiretamente os terroristas?
Assad: Não estamos acreditando que ele só agora tenha posto
fim à suspensão do fornecimento de armas. Acreditamos que o fornecimento já pode
ter sido reiniciado bem antes, e só está anunciando para dar ao gesto algum
tipo, digamos, de legitimidade política. Isso, em primeiro lugar.
Em segundo lugar, um ponto também muito
importante: a data do anúncio e o ataque a Palmira coincidem. Há uma relação
direta entre esses dois eventos, e a questão portanto é: quem, afinal, recebe
essas armas? Em que mãos se encontram? Sabemos a resposta: nas mãos do ISIS e
da Frente al-Nusra, que são grupos que agem coordenadamente.
O anúncio do fim da proibição de enviar
armas a terroristas está, portanto, diretamente associado ao ataque contra
Palmira e à manutenção de outros terroristas dentro da cidade de Aleppo,
porque, depois que foram derrotados em Aleppo, os EUA e o Ocidente têm de
manter as suas forças nesses locais, para isso mantêm seus terroristas por
procuração: porque absolutamente não têm interesse algum em resolver o conflito
na Síria.
Assim sendo, o objetivo crucial do
anúncio é criar ainda mais caos, porque os EUA criam o caos para administrá-lo a
seu modo; e quando estão no comando do caos, procuram usar todos os diferentes
fatores daquele caos para explorar partes diferentes do conflito, sejam
internas ou externas.
·
Senhor
presidente, como o senhor se sente, presidente de um país pequeno, no centro
dessa onda gigantesca de outros países que não têm qualquer interesse em pôr
fim a essa guerra?
Assad: É algo que conhecemos desde sempre, mesmo antes
dessa guerra, mas hoje sentimos mais fortemente, claro, porque os países
pequenos sempre estão mais seguros em tempos de paz no mundo, de equilíbrio
internacional. Sentimos bem isso a que a senhora se refere, depois do desmonte
da URSS, quando só passou a haver a hegemonia dos EUA, e os EUA se dedicavam a
fazer as coisas a seu modo, sempre ditando a política deles ao resto do mundo.
Nessas circunstâncias, os países pequenos são os que mais padecem.
Sentimos também hoje, mas ao mesmo tempo
há hoje mais equilíbrio, porque a Rússia assumiu um papel no processo. Por isso
entendemos que quanto mais forte for a Rússia – e não falo só da Síria, falo de
todos os países pequenos em todo o mundo –, quanto mais a China crescer e
emergir, mais seguros os pequenos nos sentiremos.
A situação em que vivemos hoje é muito
dolorosa, em todos os níveis: no plano humanitário, dos sentimentos, das
perdas, em todos os níveis. Mas no fim das contas, a questão não é perder ou
ganhar algum objeto de baixo valor: trata-se de perder ou ganhar o nosso
próprio país. A Síria enfrenta uma ameaça existencial. Não se trata de um
governo que seja derrotado por outro, um exército que seja derrotado por outro.
Trata-se de um país que, se for derrotado, deixará de existir. As coisas para
nós estão postas nesses termos. Por isso temos pouco tempo para sofrer ou
chorar nossas dores e perdas; os sírios só temos tempo para lutar, para nos
defender e para fazer o que seja preciso fazer que a luta nos imponha.
·
Falemos do papel
dos veículos de informação de massa, nesse conflito.
Assad: Muito bem.
·
Todos os lados em
luta nessa guerra foram acusados de ter feito vítimas civis, mas os veículos de
mídia em todo o ocidente mantiveram-se em silêncio quase total sobre as
atrocidades cometidas pelos rebeldes. Que papel têm os veículos e as empresas
da mídia de massa, nesse conflito?
Assad: Em primeiro lugar, as mídias-empresas dominantes, e
seus confrades dentro dos partidos políticos sofrem todos eles já há décadas,
um processo acentuado de corrupção moral. São empresas e profissionais
absolutamente imorais. Não importa a causa da qual falem, evoquem ou usem como
máscara (direitos humanos, civis, crianças…), essas questões são tomadas
exclusivamente pela utilidade que tenham para promover a agenda política das
mídia-empresas, de jornalistas e outros empregados daquelas mídias-empresas,
para influenciar a opinião pública a favor daquela agenda, e, nesta nossa
região, para induzir as massas a apoiarem a intervenção de países estrangeiros,
seja intervenção militar ou política. Quanto a isso, os veículos e
profissionais das mídias-empresas já não têm qualquer credibilidade.
Basta ver o que se passa nos EUA, onde
está em curso uma verdadeira rebelião contra as mídias-empresas e veículos
dominantes, porque mentiram e continuam a mentir aos seus próprios consumidores
leitores e telespectadores. Podemos dizer que a opinião pública ou as
populações no Ocidente absolutamente ignoram o que verdadeiramente se passa
aqui em nossa região, mas sabem, pelo menos, que os veículos e empresas de
mídia e os políticos cooptados por elas mentem aos cidadãos para promover a
agenda pessoal individual deles mesmos e seus interesses exclusivos.
Por isso não acredito que os veículos da
mídia dominante ainda consigam que o público acredite no que vê noticiado. Por
isso também é que aqueles veículos estão tendo de lutar para sobreviver no
Ocidente, por maior que sejam a experiência deles e os meios e o dinheiro com
que sempre contaram. Mas não têm mais qualquer credibilidade. Nenhuma empresa
de mídia sobrevive se tiver credibilidade zero. E as empresas de mídia no
Ocidente não são transparentes. E já ninguém acredita nelas.
Por isso aquelas empresas estão sendo
empurradas para as atitudes mais acovardadas, por exemplo, de censura. Uma rede
como a sua [RT] inspira medo às concorrentes, porque pode expor a verdade e a
notícia verdadeira acaba por desmascarar as manipulações de que são vítimas os
cidadãos. Daí as reações destemperadas que temos visto.
·
Por exemplo, a
agência de notícias Reuters citou “Amaq”, que é o órgão de propaganda dos
terroristas do ISIS, no ‘noticiário’ sobre o cerco de Palmira.
Assad: Isso mesmo.
·
O senhor acredita
que contribuam para dar legitimidade aos terroristas, citando os veículos
deles?
Assad: Mesmo que não citem as agências de notícias dos
grupos terroristas, os veículos ocidentais adotam sempre a retórica dos
terroristas. Mas se a senhora analisar o aspecto técnico do modo como o ISIS se
apresenta e se autopromove desde o início, em seus vídeos, atualidades, nos
noticiários regulares deles em geral e nas suas ‘relações públicas’, as
técnicas são apuradíssimas, são técnicas ocidentais. Vale a pena observar. São
muito sofisticados.
Como se compreenderia que alguém que
seja caçado, sitiado, desprezado em todos os cantos do mundo, atacado por
aviões e bombas, que o mundo inteiro quer expulsar para bem longe de cada vila
à qual o terrorista chegue, como é possível que grupos desse tipo de pessoas
possam ter comunicação tão altamente sofisticada… a menos que contem com o
máximo apoio disponível, das tecnologias mais modernas. O fato crucial, em
minha opinião, nem é que o Ocidente use como fonte a agência de notícias dos
terroristas, mas o fato de que o Ocidente adote o ponto de vista dos
terroristas para observar o mundo; às vezes diretamente, às vezes
indiretamente.
·
Donald Trump
assumirá em poucas semanas suas funções de presidente dos EUA. O senhor
mencionou os EUA várias vezes nessa entrevista. O que o senhor espera do novo
governo norte-americano?
Assad: A retórica do candidato durante a campanha foi
positiva no que tenha a ver com atacar o terrorismo, que é hoje nossa
prioridade. Nenhuma outra coisa tem a mesma prioridade, e, portanto, só
comentarei esse aspecto, o resto são questões norte-americanas, digamos,
questões internas que não me dizem respeito.
A questão, portanto, é saber se Trump
terá o desejo ou a capacidade de pôr em prática o que disse. A senhora sabe que
a maioria dos veículos da mídia-empresa dominante e das grandes empresas, os
lobbies, o Congresso, até alguns membros do próprio Partido Republicano
opõem-se a ele. Querem cada vez mais ampla hegemonia, cada vez mais conflitos
com a Rússia, mais ingerência em diferentes países, querem derrubar governos e
o que sempre se viu há muito tempo. O presidente eleito Trump disse coisas que
andaram noutra direção. Se conseguirá manter a mesma postura depois de tomar
posse, mês que vem? Essa é a questão. Não sei.
Se conseguir, creio que o mundo poderá
ser diferente, porque a coisa mais importante no mundo hoje, como já disse, é a
relação entre a Rússia e os EUA. Se ele caminhar na direção de melhor relação
com a Rússia, a maior parte das tensões que hoje dilaceram o mundo será
reduzida. É muito importante para nós na Síria, mas acho que não se pode
adivinhar o que virá. Para começar, o novo presidente não tem história
política, e, portanto, não se tem nenhuma referência para julgá-lo. Em segundo
lugar, ninguém pode saber como irão as coisas no mês que vem, e dali em diante.
·
A situação
humanitária na Síria é catastrófica e Madame Mogherini, chefe da política
externa da União Europeia, nos disse que a União Europeia é a única entidade a
fornecer ajuda humanitária à Síria. É verdade?
Assad: Na verdade, toda a ajuda enviada por países
ocidentais era destinada aos terroristas. A verdade é essa. Estou sendo
perfeitamente claro e transparente. Jamais país algum se preocupou com a vida
dos sírios, se viviam ou morriam. Ainda hoje há várias vilas na Síria que
continuam, até hoje, sitiadas por terroristas. Fizeram as coisas de modo que
nada chegue àquelas pessoas, comida, água, seja o que for, todos os itens
necessários à vida humana. Claro, os terroristas atacam todos os dias, tiros de
morteiro, contra os moradores. E o que, afinal, a União Europeia enviou algum
dia a esses sírios? Se se preocupassem tanto com vidas humanas, quando falam do
aspecto humanitário, que não discriminassem. Todos os sírios são ‘humanos’. Mas
não. É sempre o duplo padrão, a mentira que volta sempre, que recontam sempre,
mentira ignóbil na qual já ninguém acredita. Não, não é verdade. O que a
senhora ouviu é falso, é mentira.
·
Há quem sugira
que, para a Síria, a melhor solução seria dividir o país, um país para os
sunitas, outro para os xiitas, os curdos. É possível?
Assad: Essa é a esperança, o sonho do Ocidente e de vários
países aqui da região, e não é novidade, nem começou com essa guerra. Já antes
da guerra circularam até mapas em que se demarcava essa divisão e essa
desintegração. Mas, se se examina a sociedade síria hoje, está mais unificada
do que antes da guerra. É a realidade. Não digo para dar coragem a quem quer
que seja, nem estou aqui falando ao povo da Síria. Estou falando sobre fatos.
Por causa das lições aprendidas da
guerra, a sociedade síria tornou-se mais realista e pragmática e muitos sírios
compreenderam os perigos do fanatismo e de todos os tipos de extremismo, não só
o extremismo religioso, mas também politico, social, cultural. A Síria está
ainda cercada de perigos. A nossa única possibilidade de sucesso está em nos
aceitarmos uns aos outros, em respeitarmos uns aos outros. É o modo produtivo
de vivermos juntos e ter um país.
Então, no que tenha a ver com a
desintegração da Síria, se não se vê sinal de desintegração no seio da
sociedade, entre as várias nuances e fatores constituintes da sociedade síria,
no próprio tecido da sociedade síria, não se cogita de divisão. Não se trata de
riscar uma linha num mapa de papel, quero dizer, ainda que se tratasse de país
em desintegração, no qual as pessoas estivessem divididas. Vejam o caso do
Iraque: ainda é um só país, mas, na realidade foi desintegrado. Não é o caso da
Síria.
Esse assunto na verdade não me preocupa.
Os sírios jamais aceitarão qualquer tipo de divisão. E falo da grande maioria
dos sírios, porque não é ideia nova, assunto que tenha surgido nas últimas
semanas ou meses. Pode-se dizer que é a grande questão que se disputa nessa
guerra. E, depois de seis anos de dificuldades terríveis, posso assegurar que a
maioria dos sírios jamais aceitaria qualquer tipo de ‘desintegração’ do país.
Viveremos sempre como uma Síria una e coesa.
·
Como mãe,
partilho a dor de todas as mães sírias. Falo das crianças na Síria. O que lhes
reserva o futuro?
Assad: É o aspecto mais perigoso de nosso problema, e não
só na Síria, mas em qualquer ponto em que circule essa sombria ideologia
wahhabista, porque muitos dos jovens nascidos e criados sob essa ideologia que
chegaram à maturidade ao longo da última década, um pouco mais, uniram-se a
gangues terroristas, por motivação ideológica, não por falta de família, ou de
comida ou de esperanças. Muitos são filhos de famílias de espírito aberto,
instruídas, famílias de intelectuais. Pode-se imaginar o poder de atração que o
terrorismo tem.
·
O senhor acredita
que o terrorismo arregimenta jovens com tanta facilidade, por causa da
propaganda que o precede?
Assad: Exatamente. É ideologia extremamente perigosa, que
não conhece fronteiras políticas ou nacionais. A Internet ajudou os terroristas
com ferramentas de comunicação baratas, rápidas de muito amplo alcance. O
terrorismo infiltra-se em qualquer família em qualquer ponto do mundo, seja na
Europa, no nosso país, no seu país, onde decidirem infiltrar-se.
·
E é o que
acontece.
Assad: A senhora vive em uma sociedade secular, eu vivo em
uma sociedade secular, mas nada disso impediu que o terrorismo se infiltrasse.
Qual a ideologia com potencial para fazer frente a essa onda? Há uma, só uma.
Dado que o terrorismo construiu-se sobre uma leitura distorcida do Islã, é
preciso recorrer outra vez ao Islã verdadeiro, ao Islã ancestral, sem
distorções, ao Islã da moderação e da paz. Só assim se pode esvaziar a ameaça
terrorista que pesa sobre todo o planeta. É a maneira mais rápida, digamos
assim.
Se quisermos falar de um médio prazo e
de um longo prazo, trata-se de saber em que medida se consegue fazer avançar a
sociedade, o modo como as pessoas analisam, raciocinam e pensam, porque a
ideologia wahhabista terrorista só funciona se se paralisa a reflexão, se se
distorcem as vias do pensamento lógico e moral. Pode-se dizer que se trata de
um algoritmo do espírito. Numa comparação com a informática, para ser mais
claro: se se tem implantados pela educação e, também, pela religião, para os
que creiam, bons sistemas para explorar e analisar o mundo, esses sistemas
resistem à invasão por vírus daninhos.
Trata-se, portanto, de educação, das
mídias, da ‘comunicação’ e da política, porque se se tem uma causa, uma causa
nacional, e as pessoas perdem a esperança, não é difícil empurrar essas pessoas
na direção do extremismo, que é influência ativa na nossa região desde os anos
1970, depois da guerra entre árabes e Israel, e o fracasso da paz em todos os
aspectos (fracasso na reconquista do território palestino, usurpação da terra e
dos direitos dos palestinos), cada vez mais desespero, o que serviu bem aos
propósitos dos extremistas. Aí os wahhabistas encontram solo fértil para
promover a ideologia deles.
·
Senhor
presidente, agradeço muito por sua atenção e pelo seu tempo, e desejo paz e
prosperidade, cada vez mais, ao seu país.
Assad: Muito agradecido pela visita.
·
A situação foi
muito difícil, e faço os melhores votos de que tudo isso chegue logo ao fim.
Muito obrigada.
Assad: Agradeço muito que tenham vindo à Síria. Estou muito
feliz por recebê-los.
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