06/12/2016 15:11 - Copyleft
Gilberto Maringoni (Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC - UFABC)Governo se dissolve e direita se divide
O traço essencial dos dias que correm é a fragmentação da coalizão que sustenta o governo e o surgimento de tendências de crise sistêmica no país.
A vertigem tomou conta da conjuntura. Num dia, manifestações hegemonizadas pela extrema direita tomam as ruas. Em outro, aliados de primeira hora do golpe ameaçam abrir baterias contra o governo. Caem ministros. O presidente do Senado é afastado. Poderes se digladiam a céu aberto. A crise econômica acentua seu mergulho rumo ao imponderável.
O traço essencial dos dias que correm é a fragmentação da coalizão que sustenta o governo Temer e o surgimento, no horizonte, de tendências preocupantes de crise sistêmica no país. Em outras palavras, crise institucional somada ao aprofundamento da crise econômica e social. A administração federal está paralisada e em vias de dissolução.
O descontentamento do PSDB e de setores do empresariado com a política econômica – evidenciado por dura nota da FIESP contra o aumento de juros -, os embates no Judiciário entre a direita (Gilmar Mendes) e o ícone da extrema-direita (Sérgio Moro), os enfrentamentos entre Legislativo e Judiciário, o motim dos procuradores da Lava-jato contra o Congresso, a mudança de alvo das passeatas conservadoras, a queda de Renan Calheiros e asensação de que o governo é incapaz de levar adiante medidas impopulares, entre outras marcas, completam a cena.
O quadro político apresenta-se fortemente instável, com atores mudando rapidamente de posição, enquanto a economia segue em queda livre, sem marcas de reversão. O colchão social construído nos últimos 13 anos através da elevação real do salário mínimo e políticas sociais focadas pode se esgotar com a aceleração do desemprego. Se a senda for mantida, não é difícil que 2017 se inicie com uma sensação de virtual ingovernabilidade.
Em linguagem direta, se há uma crise na esquerda, a situação entre o conservadorismo também é de confusão e descontrole. A desconstrução do Estado segue em marcha batida através de sucessivas medidas aprovadas no Congresso e no Judiciário, como a PEC 55, a precarização laboral e a entrega de riquezas nacionais, a exemplo do pré-sal.
IMPREVISIBILIDADE
As consequências dessa combinação de crises – iniciada pelo governo Dilma Rousseff tão logo as urnas foram fechadas, em 2014 - são absolutamente imprevisíveis. Diferentemente de situações anteriores – fim da ditadura (anos 1980), hiperinflação (anos 1990) ou fracasso da primeira fase do neoliberalismo (anos 2000) -, não temos um vetor organizador das disputas sociais a nortear uma transição para outra fase da disputa político-institucional. Cada um a seu tempo e respectivamente, PMDB, PSDB e PT cumpriram o papel político de condottieri e reorganizadores do sistema.
No quadro atual, inexiste força política capaz de empreender tal síntese. Se o estelionato eleitoral cometido por Dilma Rousseff gerou descrédito no voto popular e deslegitimou o PT como força condutora dos negócios de Estado, o impeachment parece ter se dado prematuramente, sem que as forças interessadas em sua deflagração tivessem construído uma coalizão sólida e capaz de implementar as tarefas da segunda fase do neoliberalismo.
Vale lembrar que nos primeiros meses de 2016 e com o golpe ainda em gestação, Eduardo Cunha, por interesses particulares, decidiu atropelar as articulações em curso e abrir o processo na Câmara. Dado o rompimento do governo petista com suas bases sociais e com a persistência da retração econômica, a iniciativa de Cunha prosperou como fogo em capim seco.
FORÇAS DÍSPARES
A coalizão golpista era formada por forças e interesses díspares. Estes se juntaram para ganhar ampla maioria na Câmara e no Senado e consumar a retirada de cena de uma gestão incapaz de - mesmo adotando o programa de seu adversário eleitoral - cumprir as tarefas necessárias à reinserção do Brasil numa divisão internacional do trabalho que tende a se modificar, após oito anos da crise da globalização.
A necessidade premente de o Brasil se recolocar no circuito de valorização do capital num cenário internacional de retração – e por isso mais competitivo – leva o país a empreender duas tarefas: A. Aumentar a rentabilidade dos investimentos especulativos - via elevação das taxas de juros - e B. Aumentar a rentabilidade do circuito produtivo - via rebaixamento de custos, aí incluído o barateamento da força de trabalho.
A junção dos interesses financeiros e produtivos é possível, como se sabe, pelo fato de as fronteiras entre esses dois tipos de capital serem cada vez menos nítidas. Grandes corporações industriais têm parcelas crescentes de sua rentabilidade advindas da esfera especulativa e cada vez mais instituições financeiras têm sociedades com empresas produtivas.
BASE SOCIAL
Para efetivar o golpe, faltava granjear apoio social, coisa pouco difícil no início de 2016. O descontentamento popular advindo da adoção de um brutal ajuste fiscal foi imediato. Lembrando: estávamos havia um ano implantando o “maior contingenciamento já feito”, nas palavras da presidente, que ensejava um tarifaço nos preços administrados, ataques a direitos trabalhistas e a retomada do processo de privatizações
O aumento do desemprego, a queda da renda e a potencialização de sérios escândalos de corrupção ocorridos nas gestões petistas por parte de um judiciário politicamente instrumentalizado e pela mídia corporativa fizeram o resto do serviço. A base parlamentar – alardeada como trunfo na campanha de Dilma, em 2014 – mudou instantaneamente de lado.
EXTREMA DIREITA EM CENA
O quadro de economia à deriva e sensação de ingovernabilidade abriu espaço para a emergência de um setor social de extrema direita, a clamar pela volta do regime militar. Organizado por grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem Pra Rua (VPR, sigla homônima a de uma organização da esquerda armada dos tempos da ditadura), em um período muito particular da vida nacional, esse setor conseguiu hegemonizar um largo contingente de classe média, tradicionalmente identificada com o centro (setores do PT e do PMDB) ou centro-direita do espectro político (PSDB). A promoção de maciços atos de rua - convocados e incentivados pelos grupos de mídia - funcionou como base social do tapetão armado contra Dilma Rousseff.
Institucionalmente, a coalizão golpista abrangeu PMDB, PSDB, DEM, PPS, PSC e outras siglas menores do conservadorismo, além de inúmeras entidades, como FIESP, Febraban, OAB, a mídia corporativa e variados empresários. A Lava-jato serviu para minar o único setor empresarial não-liberal – construção civil e naval -, fortemente dependente do Estado e que apoiava de forma decidida – via financiamento de campanha – o petismo.
UTOPIA DE DIFÍCIL REALIZAÇÃO
Qual a utopia brandida por essa coalizão variada? A de que a retirada do PT resultaria em um governo eficiente, livre da corrupção e que restauraria a confiança do “mercado”, rumo a um ciclo virtuoso na economia.
Apesar do imenso esforço midiático-político para aprovar a PEC 55, as reformas da Previdência e Trabalhista e uma nova rodada de privatizações, não há nenhum sinal de que o crescimento voltará. Nenhuma dessas medidas tem efeito imediato, ainda mais num quadro de juros estratosféricos, crédito caro, câmbio sobrevalorizado e capacidade ociosa crescente na indústria.
Se a política externa do novo governo dos EUA, capitaneado por Donald Trump, seguir as promessas de campanha, a estratégia diplomática de Michel Temer se revelará um tiro n’água. Trump quer trazer de volta corporações inteiras que migraram para a Ásia, travar acordos de livre comércio – em especial o NAFTA e o Acordo Trans-Pacífico – e barrar a entrada de imigrantes de baixa renda. É incerto se tais iniciativas gerarão empregos de qualidade, num tempo em que a automação das fábricas aumenta exponencialmente. Ou seja, as plantas produtivas podem até voltar ao território estadunidense. No entanto, só farão isso se demandarem menos trabalhadores do que faziam no exterior.
Tais diretrizes representam um pesado freio nas pretensões do Itamaraty. O ministro José Serra tinha em mente dar curso a uma política externa tradicional, como a empreendida nos anos 1990, com absoluta prioridade para os mercados europeu e norte-americano. Com o nacionalismo antiglobalizante dando o tom dos dois lados do Atlântico, o Ministério das Relações Exteriores poderá ter de rever suas políticas.
TRINCAS NA COALIZÃO
Voltemos ao início. A semana que passou exibiu trincas no leque da aliança golpista. No terreno político, Temer e seu governo são acossados por denúncias de corrupção, o que lhe retira a aura de combatente contra os supostos malfeitos do petismo. Até aqui, a mídia e a República de Curitiba têm elevado o tom contra o PMDB e requentado denúncias contra o PT e deixado em segundo plano acusações contra o tucanato. As manifestações do domingo (4), em mais de 200 cidades, se não foram tão maciças quanto as de março último, apresentam qualidade nova. Elas miraram personagens centrais da coalizão golpista, Miram Renan Calheiros - recém defenestrado - e Rodrigo Maia, tidos como opositores da Lava-Jato, num discurso francamente anti-Congresso e antipolítica. O Judiciário se politizou e assume ares de força política autônoma no interior do Estado.
O traço essencial dos dias que correm é a fragmentação da coalizão que sustenta o governo Temer e o surgimento, no horizonte, de tendências preocupantes de crise sistêmica no país. Em outras palavras, crise institucional somada ao aprofundamento da crise econômica e social. A administração federal está paralisada e em vias de dissolução.
O descontentamento do PSDB e de setores do empresariado com a política econômica – evidenciado por dura nota da FIESP contra o aumento de juros -, os embates no Judiciário entre a direita (Gilmar Mendes) e o ícone da extrema-direita (Sérgio Moro), os enfrentamentos entre Legislativo e Judiciário, o motim dos procuradores da Lava-jato contra o Congresso, a mudança de alvo das passeatas conservadoras, a queda de Renan Calheiros e asensação de que o governo é incapaz de levar adiante medidas impopulares, entre outras marcas, completam a cena.
O quadro político apresenta-se fortemente instável, com atores mudando rapidamente de posição, enquanto a economia segue em queda livre, sem marcas de reversão. O colchão social construído nos últimos 13 anos através da elevação real do salário mínimo e políticas sociais focadas pode se esgotar com a aceleração do desemprego. Se a senda for mantida, não é difícil que 2017 se inicie com uma sensação de virtual ingovernabilidade.
Em linguagem direta, se há uma crise na esquerda, a situação entre o conservadorismo também é de confusão e descontrole. A desconstrução do Estado segue em marcha batida através de sucessivas medidas aprovadas no Congresso e no Judiciário, como a PEC 55, a precarização laboral e a entrega de riquezas nacionais, a exemplo do pré-sal.
IMPREVISIBILIDADE
As consequências dessa combinação de crises – iniciada pelo governo Dilma Rousseff tão logo as urnas foram fechadas, em 2014 - são absolutamente imprevisíveis. Diferentemente de situações anteriores – fim da ditadura (anos 1980), hiperinflação (anos 1990) ou fracasso da primeira fase do neoliberalismo (anos 2000) -, não temos um vetor organizador das disputas sociais a nortear uma transição para outra fase da disputa político-institucional. Cada um a seu tempo e respectivamente, PMDB, PSDB e PT cumpriram o papel político de condottieri e reorganizadores do sistema.
No quadro atual, inexiste força política capaz de empreender tal síntese. Se o estelionato eleitoral cometido por Dilma Rousseff gerou descrédito no voto popular e deslegitimou o PT como força condutora dos negócios de Estado, o impeachment parece ter se dado prematuramente, sem que as forças interessadas em sua deflagração tivessem construído uma coalizão sólida e capaz de implementar as tarefas da segunda fase do neoliberalismo.
Vale lembrar que nos primeiros meses de 2016 e com o golpe ainda em gestação, Eduardo Cunha, por interesses particulares, decidiu atropelar as articulações em curso e abrir o processo na Câmara. Dado o rompimento do governo petista com suas bases sociais e com a persistência da retração econômica, a iniciativa de Cunha prosperou como fogo em capim seco.
FORÇAS DÍSPARES
A coalizão golpista era formada por forças e interesses díspares. Estes se juntaram para ganhar ampla maioria na Câmara e no Senado e consumar a retirada de cena de uma gestão incapaz de - mesmo adotando o programa de seu adversário eleitoral - cumprir as tarefas necessárias à reinserção do Brasil numa divisão internacional do trabalho que tende a se modificar, após oito anos da crise da globalização.
A necessidade premente de o Brasil se recolocar no circuito de valorização do capital num cenário internacional de retração – e por isso mais competitivo – leva o país a empreender duas tarefas: A. Aumentar a rentabilidade dos investimentos especulativos - via elevação das taxas de juros - e B. Aumentar a rentabilidade do circuito produtivo - via rebaixamento de custos, aí incluído o barateamento da força de trabalho.
A junção dos interesses financeiros e produtivos é possível, como se sabe, pelo fato de as fronteiras entre esses dois tipos de capital serem cada vez menos nítidas. Grandes corporações industriais têm parcelas crescentes de sua rentabilidade advindas da esfera especulativa e cada vez mais instituições financeiras têm sociedades com empresas produtivas.
BASE SOCIAL
Para efetivar o golpe, faltava granjear apoio social, coisa pouco difícil no início de 2016. O descontentamento popular advindo da adoção de um brutal ajuste fiscal foi imediato. Lembrando: estávamos havia um ano implantando o “maior contingenciamento já feito”, nas palavras da presidente, que ensejava um tarifaço nos preços administrados, ataques a direitos trabalhistas e a retomada do processo de privatizações
O aumento do desemprego, a queda da renda e a potencialização de sérios escândalos de corrupção ocorridos nas gestões petistas por parte de um judiciário politicamente instrumentalizado e pela mídia corporativa fizeram o resto do serviço. A base parlamentar – alardeada como trunfo na campanha de Dilma, em 2014 – mudou instantaneamente de lado.
EXTREMA DIREITA EM CENA
O quadro de economia à deriva e sensação de ingovernabilidade abriu espaço para a emergência de um setor social de extrema direita, a clamar pela volta do regime militar. Organizado por grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem Pra Rua (VPR, sigla homônima a de uma organização da esquerda armada dos tempos da ditadura), em um período muito particular da vida nacional, esse setor conseguiu hegemonizar um largo contingente de classe média, tradicionalmente identificada com o centro (setores do PT e do PMDB) ou centro-direita do espectro político (PSDB). A promoção de maciços atos de rua - convocados e incentivados pelos grupos de mídia - funcionou como base social do tapetão armado contra Dilma Rousseff.
Institucionalmente, a coalizão golpista abrangeu PMDB, PSDB, DEM, PPS, PSC e outras siglas menores do conservadorismo, além de inúmeras entidades, como FIESP, Febraban, OAB, a mídia corporativa e variados empresários. A Lava-jato serviu para minar o único setor empresarial não-liberal – construção civil e naval -, fortemente dependente do Estado e que apoiava de forma decidida – via financiamento de campanha – o petismo.
UTOPIA DE DIFÍCIL REALIZAÇÃO
Qual a utopia brandida por essa coalizão variada? A de que a retirada do PT resultaria em um governo eficiente, livre da corrupção e que restauraria a confiança do “mercado”, rumo a um ciclo virtuoso na economia.
Apesar do imenso esforço midiático-político para aprovar a PEC 55, as reformas da Previdência e Trabalhista e uma nova rodada de privatizações, não há nenhum sinal de que o crescimento voltará. Nenhuma dessas medidas tem efeito imediato, ainda mais num quadro de juros estratosféricos, crédito caro, câmbio sobrevalorizado e capacidade ociosa crescente na indústria.
Se a política externa do novo governo dos EUA, capitaneado por Donald Trump, seguir as promessas de campanha, a estratégia diplomática de Michel Temer se revelará um tiro n’água. Trump quer trazer de volta corporações inteiras que migraram para a Ásia, travar acordos de livre comércio – em especial o NAFTA e o Acordo Trans-Pacífico – e barrar a entrada de imigrantes de baixa renda. É incerto se tais iniciativas gerarão empregos de qualidade, num tempo em que a automação das fábricas aumenta exponencialmente. Ou seja, as plantas produtivas podem até voltar ao território estadunidense. No entanto, só farão isso se demandarem menos trabalhadores do que faziam no exterior.
Tais diretrizes representam um pesado freio nas pretensões do Itamaraty. O ministro José Serra tinha em mente dar curso a uma política externa tradicional, como a empreendida nos anos 1990, com absoluta prioridade para os mercados europeu e norte-americano. Com o nacionalismo antiglobalizante dando o tom dos dois lados do Atlântico, o Ministério das Relações Exteriores poderá ter de rever suas políticas.
TRINCAS NA COALIZÃO
Voltemos ao início. A semana que passou exibiu trincas no leque da aliança golpista. No terreno político, Temer e seu governo são acossados por denúncias de corrupção, o que lhe retira a aura de combatente contra os supostos malfeitos do petismo. Até aqui, a mídia e a República de Curitiba têm elevado o tom contra o PMDB e requentado denúncias contra o PT e deixado em segundo plano acusações contra o tucanato. As manifestações do domingo (4), em mais de 200 cidades, se não foram tão maciças quanto as de março último, apresentam qualidade nova. Elas miraram personagens centrais da coalizão golpista, Miram Renan Calheiros - recém defenestrado - e Rodrigo Maia, tidos como opositores da Lava-Jato, num discurso francamente anti-Congresso e antipolítica. O Judiciário se politizou e assume ares de força política autônoma no interior do Estado.
Créditos da foto: Beto Barata/PR
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