16/12/2016 19:27 - Copyleft
Tatiana CarlottiQuem é a favor do abuso de autoridade?
O Senado decidiu adiar a votação do projeto de lei 280/2016, a Lei de Abuso de Autoridade. A proposta seguirá para a CCJ e será votada somente em 2017
Nesta semana, o Senado Federal decidiu adiar a votação do projeto de lei 280/2016, a chamada Lei de Abuso de Autoridade. Evitando polêmicas, parte do Senado recuou e, agora, a proposta seguirá para a Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ), sendo apreciada somente em 2017. (Confira aqui a íntegra do projeto)
Antes da votação, o relator da matéria, senador Roberto Requião (PMDB-PR), foi categórico: “Nenhuma nação subsiste com autoridades que esmagam o pequeno, o pobre, o negro, na base de carteiradas. O que somos, senadores acovardados? Com medo do quê? ”, questionou, ao denunciar a “pressão corporativa” contra a votação da proposta.
Os parlamentares, contrários à apreciação da proposta em caráter de urgência, evocaram a “vontade do povo”, reproduzindo a catilinária dos procuradores da Lava Jato e do juiz Sérgio Moro, que afirmou não ser este, “o melhor momento para aprovar a lei de abuso de autoridade”.
Pomo da discórdia entre Judiciário e Legislativo, o projeto determina, de forma mais clara, a penalização de servidores públicos como policiais, delegados, procuradores e juízes que extrapolem a autoridade dos seus cargos. Um tema que, pela lógica, contaria com a simpatia da população brasileira. Correto?
Duramente criticada pelos procuradores da Lava Jato, a Lei caiu em desgraça entre os apoiadores da República do Paraná que encamparam, turbinados pelos veículos do oligopólio midiático, a narrativa da Força Tarefa que qualificou a proposta de “perseguição”, “intimidação” e “retaliação” à Operação conduzida pelo juiz Sérgio Moro.
As acusações e denúncias em torno do autor do projeto, o senador Renan Calheiros, também não contribuíram. Além de réu, Renan conta com 11 inquéritos na Corte Suprema e acaba de protagonizar uma queda de braços com o ministro Marco Aurélio (STF), permanecendo no comando do Senado após decisão do colegiado dos ministros.
À revelia de suas intenções, porém, é curiosa a ausência de questionamento sobre a reação extemporânea dos procuradores da Lava Jato que, apesar de submetidos às ordens da Procuradoria Geral da República (PGR), ameaçaram debandar da Operação por conta da emenda inserida em outro projeto, o das medidas anticorrupção, aprovado pela Câmara.
Com a influência que têm, enquanto agentes públicos, investigando corrupção, não deveriam ser eles os primeiros a apoiar uma lei contra abuso de autoridade? Sérgio Moro, inclusive, participou do debate sobre a Lei de Abuso de Autoridade no Senado, encaminhando uma “salvaguarda” que foi incluída no texto final do projeto pelo senador Requião.
Ao relatar suas preocupações, o magistrado avaliou que “uma nova lei poderia ser interpretada com efeito prático de tolher investigações” e que o Senado poderia “passar mensagem errada à sociedade brasileira”. Conforme a sugestão de Moro, incorporada, a Lei deixa claro que “não constitui crime de abuso de autoridade atos praticados com base em interpretações jurídicas divergentes”.
Durante a sessão no Senado (confira a íntegra, vale a pena), o juiz de Curitiba ouviu os argumentos de Calheiros e Requião, do ministro Gilmar Mendes (STF) e do juiz federal Silvio Rocha. Todos unânimes em relação a pertinência do projeto. Rocha, inclusive, trouxe sugestões ao projeto de Lei (Confira aqui os apontamentos do juiz).
Responsabilidade de agentes públicos
No artigo “Abuso de autoridade – tópicos para estudo”, Requião traz um panorama de como funciona o regime de responsabilidade de agentes públicos em diversos países, como Estados Unidos, Portugal, França, Alemanha, Espanha.
Sob a premissa de que coibir o abuso de autoridade “é proteger a liberdade, a integridade física e psicológica das pessoas”, Requião esclarece que a proposta não intimida operações, como a Lava Jato. Aponta que a Lei mantém “a competência exclusivamente judicial para a apuração destes delitos [crimes de responsabilidade], no que tange à responsabilização de natureza penal”.
E que “somente pelo acórdão de um colegiado de juízes integrantes de um tribunal é que um magistrado ou membro do MP poderia ser condenado por tais delitos”. Afirma, ainda, que, ao contrário do que acontece com os parlamentares, não se trata de “comunicação para prisão ou possibilidade de suspensão em fase processual”.
“É ilusório supor que o projeto de lei possa pôr em risco a atividade de juízes ou de procuradores, que já são dotados de diversas garantias que asseguram a sua independência e segurança profissional”, complementa o texto, ao justificar a necessidade de impedir que servidores públicos permaneçam “em regime de irresponsabilidade, incompatível com a Constituição”.
Requião já havia manifestado desconforto com a possibilidade de adiamento da votação da Lei. Uma “covardia brutal” do Senado, já que o interesse da proposta não é “propriamente a punição de autoridades”, mas “a proteção do fraco perseguido pelo forte” (leia mais).
Pesquisa do Instituto Paraná, realizada em 152 municípios de todas as regiões do país, revela que 69,8% dos entrevistados são favoráveis a uma legislação mais rígida contra o abuso de autoridade.
O Projeto de Lei
O projeto de Lei de Abuso de Autoridade esclarece quais condutas podem ser tipificadas como crime de responsabilidade, estabelecendo a penalidade correspondente a cada uma delas.
A Lei tipifica como crimes de responsabilidade: a invasão de residências sem autorização judicial, tão comum nas periferias do país; a captura, prisão ou detenção que infrinja o Código Penal; o constrangimento de presos com violências ou ameaças; a obtenção de provas por meios ilícitos.
Também são considerados crimes de abuso de autoridade: a promoção de interceptação telefônica ou de dados sem autorização judicial ou fora das condições estabelecidas no mandado judicial; a persecução penal sem justa causa fundamentada; o ocultamento de investigações dos advogados de defesa do investigado; a ofensa à intimidade e à vida privada durante o inquérito policial.
Outro crime, tipificado na lei, é o ato de "coibir, dificultar ou, por qualquer meio, impedir a reunião, a associação ou o agrupamento pacífico de pessoas para fim legítimo".
As penas variam de prestação de serviços à comunidade ao afastamento das funções públicas e multa. Em casos de detenção, a maior parte das penas variam de 6 meses a 2 anos. Os agentes públicos reincidentes em condenações de abuso de autoridade podem perder o cargo.
“Pé na porta”
Independente da queda de braço entre os Poderes, urgem no país medidas civilizatórias que combatam, efetivamente, o abuso de autoridade no país. A barbárie sistemática contra a população mais desfavorecida é tema da reportagem do jornalista Álvaro Magalhães, do R7, que mostra: “Brasil tem 1 mil casos de violência policial por dia”.
Com base nas respostas de 90 mil pessoas entrevistadas pelo IBGE, durante a última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), a reportagem aponta que 370 mil pessoas são vítimas de violência policial por ano, 1 mil casos por dia.
“A maior parte das vítimas é negra (preta ou parda, na classificação do IBGE): somam 220 mil vítimas, ou 60% do total. A violência contra brancos atingiu 144 mil pessoas, ou 39% do total. As outras quase 6 mil vítimas (1,5% do total) que completam o quadro são orientais ou indígenas”, destaca o texto.
Relator na CPI sobre assassinatos de jovens, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) destacou, durante sua defesa da Lei, que nas comunidades “é pé na porta”, a polícia invade casas e aterroriza famílias, sem qualquer mandado policial. Entre as “59 mil pessoas assassinadas por ano no país, metade é jovem e 77% jovens negros, moradores das periferias”, apontou.
Vale destacar, também, o alerta do presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), James Cavallaro, em fevereiro deste ano: “a população carcerária no Brasil cresceu quatro vezes em 20 anos, para cerca de 600 mil pessoas, dos quais cerca de 40% não foram julgados. Há mais presos provisórios que o total de presos no país em 1995”.
CNJ
No artigo “Sabe com que está falando?”, Renan Calheiros traz os dados relativos a 2015, colhidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Tratam-se de 10.308 casos de abuso de poder; 10.047 de abuso de autoridade; 1.137 casos de exercício arbitrário, totalizando 21.492 casos de “excesso de autoridade em todas as instâncias”.
Além disso, os meandros corporativistas dificultam a penalização de crimes cometidos por magistrados e juízes, como mostra a reportagem “Quem julga o juiz?”, de Vinícius Assis, publicada do site Pública, com base na lista de 72 magistrados punidos pelo CNJ desde 2005, quando o órgão começou a atuar.
Lembrando que os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais também possuem “o poder de abrir processos criminais contra magistrados, desde que denunciados pelo Ministério Público, após inquérito policial”, a reportagem discrimina as punições do CNJ.
“Com base no capítulo IV da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, depois de julgado pelo CNJ, o magistrado pode ser: advertido, censurado (na prática, uma segunda advertência); removido compulsoriamente (ou seja: transferido de comarca); posto em disponibilidade (é afastado por dois anos, mas continua recebendo salário); aposentado compulsoriamente (se aposenta com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço).
Em suma: a pena máxima dos magistrados condenados pelo CNJ é a aposentadoria compulsória garantidos os vencimentos.
Soma-se a isso, a defasagem da legislação de 1965 sobre o tema, um entulho da ditadura civil-militar. Em sua participação no Senado, ao apresentar suas sugestões ao projeto, o juiz federal Sílvio Rocha destacou sobre a lei de 1965, que, do ponto de vista da segurança jurídica, diferentemente do projeto, “os tipos ali são tipos abertos”, trazendo “uma insegurança jurídica no sentido de uma possível divergência de interpretações”.
“O que o projeto faz é definir de forma minuciosa, detalhada, precisa, quais os comportamentos podem ser caracterizados abusos de autoridade”, afirmou, apontando que sob a perspectiva da magistratura, “é interessante que haja uma atualização para que nós não fiquemos sujeitos a uma legislação que não cumpre o requisito da estrita legalidade”. (Confira aqui, a fala do juiz)
É este o estado da arte, somado à mentalidade colonial de algumas autoridades, espalhadas em todas as regiões do Brasil, nos diversos âmbitos do serviço público. Um breve retrato disso pode ser conferido na lista abaixo (para ler sobre os casos, clique nas datas).
Trata-se de uma pequena e incompleta mostra de várias situações de abuso de autoridade, em vários âmbitos, cujas vítimas merecem Justiça, da mesma forma como todos esperamos que a Justiça seja feita, mas também obedecida, no escopo da Operação Lava Jato.
Confiram:
1.Há dez anos as Mães de Maio clamam por justiça pelo assassinato de 505 civis, a maioria jovens negros e moradores da periferia, durante a retaliação da PM aos ataques do PCC, em maio de 2006. Neste ano, elas lançaram o livro “Mães em Luta – Dez anos dos Crimes de Maio”.
Antes da votação, o relator da matéria, senador Roberto Requião (PMDB-PR), foi categórico: “Nenhuma nação subsiste com autoridades que esmagam o pequeno, o pobre, o negro, na base de carteiradas. O que somos, senadores acovardados? Com medo do quê? ”, questionou, ao denunciar a “pressão corporativa” contra a votação da proposta.
Os parlamentares, contrários à apreciação da proposta em caráter de urgência, evocaram a “vontade do povo”, reproduzindo a catilinária dos procuradores da Lava Jato e do juiz Sérgio Moro, que afirmou não ser este, “o melhor momento para aprovar a lei de abuso de autoridade”.
Pomo da discórdia entre Judiciário e Legislativo, o projeto determina, de forma mais clara, a penalização de servidores públicos como policiais, delegados, procuradores e juízes que extrapolem a autoridade dos seus cargos. Um tema que, pela lógica, contaria com a simpatia da população brasileira. Correto?
Duramente criticada pelos procuradores da Lava Jato, a Lei caiu em desgraça entre os apoiadores da República do Paraná que encamparam, turbinados pelos veículos do oligopólio midiático, a narrativa da Força Tarefa que qualificou a proposta de “perseguição”, “intimidação” e “retaliação” à Operação conduzida pelo juiz Sérgio Moro.
As acusações e denúncias em torno do autor do projeto, o senador Renan Calheiros, também não contribuíram. Além de réu, Renan conta com 11 inquéritos na Corte Suprema e acaba de protagonizar uma queda de braços com o ministro Marco Aurélio (STF), permanecendo no comando do Senado após decisão do colegiado dos ministros.
À revelia de suas intenções, porém, é curiosa a ausência de questionamento sobre a reação extemporânea dos procuradores da Lava Jato que, apesar de submetidos às ordens da Procuradoria Geral da República (PGR), ameaçaram debandar da Operação por conta da emenda inserida em outro projeto, o das medidas anticorrupção, aprovado pela Câmara.
Com a influência que têm, enquanto agentes públicos, investigando corrupção, não deveriam ser eles os primeiros a apoiar uma lei contra abuso de autoridade? Sérgio Moro, inclusive, participou do debate sobre a Lei de Abuso de Autoridade no Senado, encaminhando uma “salvaguarda” que foi incluída no texto final do projeto pelo senador Requião.
Ao relatar suas preocupações, o magistrado avaliou que “uma nova lei poderia ser interpretada com efeito prático de tolher investigações” e que o Senado poderia “passar mensagem errada à sociedade brasileira”. Conforme a sugestão de Moro, incorporada, a Lei deixa claro que “não constitui crime de abuso de autoridade atos praticados com base em interpretações jurídicas divergentes”.
Durante a sessão no Senado (confira a íntegra, vale a pena), o juiz de Curitiba ouviu os argumentos de Calheiros e Requião, do ministro Gilmar Mendes (STF) e do juiz federal Silvio Rocha. Todos unânimes em relação a pertinência do projeto. Rocha, inclusive, trouxe sugestões ao projeto de Lei (Confira aqui os apontamentos do juiz).
Responsabilidade de agentes públicos
No artigo “Abuso de autoridade – tópicos para estudo”, Requião traz um panorama de como funciona o regime de responsabilidade de agentes públicos em diversos países, como Estados Unidos, Portugal, França, Alemanha, Espanha.
Sob a premissa de que coibir o abuso de autoridade “é proteger a liberdade, a integridade física e psicológica das pessoas”, Requião esclarece que a proposta não intimida operações, como a Lava Jato. Aponta que a Lei mantém “a competência exclusivamente judicial para a apuração destes delitos [crimes de responsabilidade], no que tange à responsabilização de natureza penal”.
E que “somente pelo acórdão de um colegiado de juízes integrantes de um tribunal é que um magistrado ou membro do MP poderia ser condenado por tais delitos”. Afirma, ainda, que, ao contrário do que acontece com os parlamentares, não se trata de “comunicação para prisão ou possibilidade de suspensão em fase processual”.
“É ilusório supor que o projeto de lei possa pôr em risco a atividade de juízes ou de procuradores, que já são dotados de diversas garantias que asseguram a sua independência e segurança profissional”, complementa o texto, ao justificar a necessidade de impedir que servidores públicos permaneçam “em regime de irresponsabilidade, incompatível com a Constituição”.
Requião já havia manifestado desconforto com a possibilidade de adiamento da votação da Lei. Uma “covardia brutal” do Senado, já que o interesse da proposta não é “propriamente a punição de autoridades”, mas “a proteção do fraco perseguido pelo forte” (leia mais).
Pesquisa do Instituto Paraná, realizada em 152 municípios de todas as regiões do país, revela que 69,8% dos entrevistados são favoráveis a uma legislação mais rígida contra o abuso de autoridade.
O Projeto de Lei
O projeto de Lei de Abuso de Autoridade esclarece quais condutas podem ser tipificadas como crime de responsabilidade, estabelecendo a penalidade correspondente a cada uma delas.
A Lei tipifica como crimes de responsabilidade: a invasão de residências sem autorização judicial, tão comum nas periferias do país; a captura, prisão ou detenção que infrinja o Código Penal; o constrangimento de presos com violências ou ameaças; a obtenção de provas por meios ilícitos.
Também são considerados crimes de abuso de autoridade: a promoção de interceptação telefônica ou de dados sem autorização judicial ou fora das condições estabelecidas no mandado judicial; a persecução penal sem justa causa fundamentada; o ocultamento de investigações dos advogados de defesa do investigado; a ofensa à intimidade e à vida privada durante o inquérito policial.
Outro crime, tipificado na lei, é o ato de "coibir, dificultar ou, por qualquer meio, impedir a reunião, a associação ou o agrupamento pacífico de pessoas para fim legítimo".
As penas variam de prestação de serviços à comunidade ao afastamento das funções públicas e multa. Em casos de detenção, a maior parte das penas variam de 6 meses a 2 anos. Os agentes públicos reincidentes em condenações de abuso de autoridade podem perder o cargo.
“Pé na porta”
Independente da queda de braço entre os Poderes, urgem no país medidas civilizatórias que combatam, efetivamente, o abuso de autoridade no país. A barbárie sistemática contra a população mais desfavorecida é tema da reportagem do jornalista Álvaro Magalhães, do R7, que mostra: “Brasil tem 1 mil casos de violência policial por dia”.
Com base nas respostas de 90 mil pessoas entrevistadas pelo IBGE, durante a última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), a reportagem aponta que 370 mil pessoas são vítimas de violência policial por ano, 1 mil casos por dia.
“A maior parte das vítimas é negra (preta ou parda, na classificação do IBGE): somam 220 mil vítimas, ou 60% do total. A violência contra brancos atingiu 144 mil pessoas, ou 39% do total. As outras quase 6 mil vítimas (1,5% do total) que completam o quadro são orientais ou indígenas”, destaca o texto.
Relator na CPI sobre assassinatos de jovens, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) destacou, durante sua defesa da Lei, que nas comunidades “é pé na porta”, a polícia invade casas e aterroriza famílias, sem qualquer mandado policial. Entre as “59 mil pessoas assassinadas por ano no país, metade é jovem e 77% jovens negros, moradores das periferias”, apontou.
Vale destacar, também, o alerta do presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), James Cavallaro, em fevereiro deste ano: “a população carcerária no Brasil cresceu quatro vezes em 20 anos, para cerca de 600 mil pessoas, dos quais cerca de 40% não foram julgados. Há mais presos provisórios que o total de presos no país em 1995”.
CNJ
No artigo “Sabe com que está falando?”, Renan Calheiros traz os dados relativos a 2015, colhidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Tratam-se de 10.308 casos de abuso de poder; 10.047 de abuso de autoridade; 1.137 casos de exercício arbitrário, totalizando 21.492 casos de “excesso de autoridade em todas as instâncias”.
Além disso, os meandros corporativistas dificultam a penalização de crimes cometidos por magistrados e juízes, como mostra a reportagem “Quem julga o juiz?”, de Vinícius Assis, publicada do site Pública, com base na lista de 72 magistrados punidos pelo CNJ desde 2005, quando o órgão começou a atuar.
Lembrando que os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais também possuem “o poder de abrir processos criminais contra magistrados, desde que denunciados pelo Ministério Público, após inquérito policial”, a reportagem discrimina as punições do CNJ.
“Com base no capítulo IV da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, depois de julgado pelo CNJ, o magistrado pode ser: advertido, censurado (na prática, uma segunda advertência); removido compulsoriamente (ou seja: transferido de comarca); posto em disponibilidade (é afastado por dois anos, mas continua recebendo salário); aposentado compulsoriamente (se aposenta com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço).
Em suma: a pena máxima dos magistrados condenados pelo CNJ é a aposentadoria compulsória garantidos os vencimentos.
Soma-se a isso, a defasagem da legislação de 1965 sobre o tema, um entulho da ditadura civil-militar. Em sua participação no Senado, ao apresentar suas sugestões ao projeto, o juiz federal Sílvio Rocha destacou sobre a lei de 1965, que, do ponto de vista da segurança jurídica, diferentemente do projeto, “os tipos ali são tipos abertos”, trazendo “uma insegurança jurídica no sentido de uma possível divergência de interpretações”.
“O que o projeto faz é definir de forma minuciosa, detalhada, precisa, quais os comportamentos podem ser caracterizados abusos de autoridade”, afirmou, apontando que sob a perspectiva da magistratura, “é interessante que haja uma atualização para que nós não fiquemos sujeitos a uma legislação que não cumpre o requisito da estrita legalidade”. (Confira aqui, a fala do juiz)
É este o estado da arte, somado à mentalidade colonial de algumas autoridades, espalhadas em todas as regiões do Brasil, nos diversos âmbitos do serviço público. Um breve retrato disso pode ser conferido na lista abaixo (para ler sobre os casos, clique nas datas).
Trata-se de uma pequena e incompleta mostra de várias situações de abuso de autoridade, em vários âmbitos, cujas vítimas merecem Justiça, da mesma forma como todos esperamos que a Justiça seja feita, mas também obedecida, no escopo da Operação Lava Jato.
Confiram:
1.Há dez anos as Mães de Maio clamam por justiça pelo assassinato de 505 civis, a maioria jovens negros e moradores da periferia, durante a retaliação da PM aos ataques do PCC, em maio de 2006. Neste ano, elas lançaram o livro “Mães em Luta – Dez anos dos Crimes de Maio”.
2.Demóstenes Torres, ex-senador cassado por quebra de decoro parlamentar (acusado de favorecer o bicheiro Carlinhos Cachoeira), está afastado há quatro anos das atividades de procurador do MP de Goiás, mesmo assim, durante esse período, ele recebeu R$ 2,2 milhões em salário e retroativos funcionais do MP. (CongressoEmFoco, 12.2016)
3.Juiz do Espírito Santo, Antônio Leopoldo Teixeira, condenado por vender sentenças, e acusado de mandar matar o juiz Alexandre Martins de Castro Filho (que o teria condenado), foi aposentado compulsoriamente, mantendo uma pensão de R$ 32 mil. (FV, 11.2016)
4.Concessão de reajustes para servidores da Justiça e do Ministério Público em Minas supera o limite percentual de 95% do teto de gastos com pessoal, impactando os cofres públicos. Cerca de 1,4 mil servidores receberam contracheques acima do teto constitucional. (Em.com.br, 11.2016)
5.Promotor eleitoral Francisco Dirceu Barros, de Pernambuco, defendeu alternativas para compensar a perda de auxílio-moradia (R$ 4.377), como a substituição do auxílio-moradia pelo auxílio-saúde, em áudio que circulou nas redes sociais. Questionado, ele afirmou: “Não é uma posição pessoal. É defendida por vários membros do MP de Pernambuco e do Brasil. (Época, 11.2016)
6.Juiz Marcelo Testa Baldochi, denunciado pelo MP do Maranhão, por explorar trabalho escravo, foi absolvido pelo TJ MA. O STJ recebeu a denúncia do MP e a ação segue em andamento. Trata-se do mesmo juiz que deu ordem de prisão a três funcionários da TAM porque ele não conseguiu embarcar em um vôo de Imperatriz (MA) com destino a Ribeirão Preto (SP).(Exame, 12.2016) (Conjur, 14.11.2016)
7.A juíza Olga Regina de Souza Santiago, do TJ BA, condenada pelo CNJ por negociar liminares com o narcotraficante Gustavo Duran Bautista, recebeu a pena de aposentadoria compulsória, recebendo proventos proporcionais ao tempo de serviço. (CNJ, 11.2016)
8.Policiais civis de Mogi das Cruzes e Guararema invadiram a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) do MST, em Guararema, sem mandado de busca e apreensão, disparando contra as pessoas na recepção da unidade. Dois militantes foram presos. (Brasil de Fato, 11.2016)
9.Após ser preso, durante 8 meses, acusado de agredir e manter em cárcere privado uma ex-namorada, o deputado federal Osmar Bertoldi (DEM) retornou à Câmara, como suplente do ministro da Saúde Ricardo Barros (PP) (G1, 11.2016).
10.Os 105 casos de tortura em presídios, denunciados pela Pastoral Carcerária Nacional, entre 2005 e 2016, permanecem impunes. Nenhum agente público foi responsabilizado até agora. (Conjur, 11.2016)
11.Juíza Clarice Maria de Andrade manteve jovem de 15 anos em cela com 30 homens, durante 26 dias, em Abaetetuba (PA). O CNJ aplicou a “pena de disponibilidade”, suspendendo a juíza por dois anos. Ela continua recebendo salário. (G1, 10.2016)
12. juíza Patrícia Acioli, responsável pela prisão de cerca de 60 policiais ligados a milícias e grupos de extermínio, foi assassinada com 21 tiros, na porta de sua residência. Ao todo, 11 policiais militares foram denunciados pelo MP por participação no crime, eles foram condenados em primeira instância. (G1, 10.2016)
13.Juiz Luiz Carlos Boer de Porecatu (PR) foi acusado de agir em parceria com um advogado, ao menos, em 15 sentenças relacionados a processos bancários, agilizando processos. O juiz foi afastado de suas funções. (GP, 10.2016)
14.Promotor Thales Ferri Schoedl foi absolvido, por unanimidade, pelo órgão especial do TJ SP, após matar Diego Mendes Modanez e ferir Felipe Siqueira de Souza, em uma praia em Bertioga, em 2004. Em outubro, o STF confirmou a decisão do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) e manteve a decisão de exonerar o promotor. (UOL, 10.2016)
15.18 jornalistas ouvidos pelo MP SP, em setembro de 2016, denunciaram agressões da PM durante as manifestações de rua, citando balas de borracha, golpes de cassetete na cabeça, jatos de gás pimenta, xingamentos e até disparo a queima-roupa com munição não letal. Mais de 150 jornalistas foram agredidos durante as manifestações. (ABr, 09.2016)
16.Justiça de São Paulo anula julgamento de PMs pelo massacre do Carandiru. Decisão passou por cima do veredicto de 5 júris que condenaram 74 PMs pelo assassinato de 111 pessoas na Casa de Detenção em outubro de 2012. (ElPaís, 09.2016)
17.Vários casos de abusos cometidos pela PM contra manifestantes foram registrados durante os atos Fora Temer em várias regiões do país. Entre eles, a prisão de 18 pessoas, inclusive menores, cinco horas incomunicáveis e impedidos de ter contato com advogados; a suspeita de infiltração de agente do exército visando emboscada dos manifestantes; a perda de visão do olho esquerdo da estudante Deborah Fabri, atingida por um estilhaço de bomba jogada pela PM. (EXAME, 09.2016), (El Pais, 05.09.2016).
18.Vários episódios atestam a truculência da PM que invadiu, agrediu e prendeu vários estudantes secundaristas, menores de idade, durante as ocupações nas escolas públicas entre 2015 e 2016. (ElPaís, 12.2015)
19.Juiz Cícero Rodrigues, acusado de envolvimento e falsificação de registros de imóveis e terrenos hipotecados, em diversos estados do país, foi preso em Teresina (PI) em agosto deste ano. (TD, 08.2016)
20.Fotógrafo Sérgio Andrade da Silva perdeu a visão após ter sido atacado pela PM, durante a cobertura de uma manifestação em São Paulo, em junho 2013. O TJ SP negou o pedido de indenização do fotógrafo. (G1, 08.2016).
21.PM matou um garoto de 10 anos, suspeito de furtar um carro, na Vila Andrade, em São Paulo. (OESP, 06.2016)
22.Desembargador Valmir de Oliveira Silva, ex-corregedor geral do (TJ RJ) ameaçou o juiz João Batista Damasceno: “Vou estourar sua cabeça” (ViOMundo, 02.2016) Em junho de 2015, o TJ RJ abriu um procedimento administrativo disciplinar contra o juiz, após ele ter sacado uma arma durante desentendimento com o desembargador (Conjur, 08.06.2015)
23.Juiz federal Flávio Roberto de Souza foi acusado pelo desvio de mais de R$ 1 milhão do Tribunal de Justiça, em ação penal movida contra o traficante Oliver Ortiz de Zarate Martins. Ele também foi flagrado dirigindo o Porsche do empresário Eike Batista, além de ter levado para casa uma Range Rover, um piano e relógios Rolex e Bulgari do empresário. Souza foi aposentado com salário proporcional ao tempo de serviço. (G1, 11.2015)
24.Juiz Alcemir dos Santos Pimentel foi acusado de retardar processos na Vara única de Santa Teresa, mais de 2,8 mil processos foram paralisados no gabinete do magistrado. O TJ ES deflagrou um procedimento disciplinar contra o juiz. (SD, 10.2016)
25.Juiz José Admilson Gomes Pereira, do TJ PA, foi condenado à aposentadoria compulsória, recebendo salário proporcional ao tempo de contribuição. Acusado de vender sentenças judiciais, ele chegou a revogar a prisão preventiva de um réu denunciado pela suposta prática de homicídio, no mesmo dia em que seu irmão recebeu depósito bancário de cerca de R$ 70 mil. (ODIA, 10.2016)
26.Magistrados e promotores do Paraná entraram com mais de 36 ações contra repórteres da Gazeta do Povo que revelarem salários e vencimentos dos juízes, mostrando que, em 2015, o salário médio por ano de juízes e promotores no Estado superou R$ 500 mil. (OESP,06.2016) Reportagem de O Dia, naquele ano, apontava que o salário do juiz Sérgio Moro havia ultrapassado R$ 77 mil, acima do teto constitucional de R$ 33,7 mil no período. (ODIA, 22.08.2015)
27.Chacinas na Grande SP – Osasco, Barueri, Itapevi e Carapicuíba – deixaram 23 mortos e sete pessoas feridas. Apesar de a Polícia Civil ter concluído pelo indiciamento de oito agentes de segurança, o MP entendeu que apenas três PMs e um guarda deveriam ser responsabilizados por 18 mortes e seis feridos. (G1, 08.2016)
28.Juiz Macário Ramos Júdice Júnior, aposentado compulsoriamente pelo Tribunal Regional Federal da 2ª. Região, retornou às suas funções por decisão do CNJ. Ele estava afastado há dez anos do cargo, acusado de envolvimento com grupos que exploram caça-níqueis e jogo do bicho no Espírito Santo. (Conjur, 01.2016)
29.Juiz Francisco Chagas Barreto Alves, condenado à aposentadoria compulsória em setembro, retornou às atividades por decisão do CNJ. Ele havia sido condenado pelo Pleno do Tribunal depois de investigado pela corregedoria local por suspeita de venda de liminares em plantões judiciais entre 2011 e 2013. (Conjur, 01.2016)
30.O juiz João Carlos de Souza Correa deu voz de prisão a agente de trânsito Luciana Tamburir que o autuou por dirigir sob efeito de álcool, sem carteira de habilitação e em um veículo sem placa, em uma blitz da Lei Seca, no Rio de Janeiro, em 2011. Ela foi condenada a pagar indenização de R$ 5 mil ao juiz. O caso foi julgado no TJ RJ. Em 2015, o CNJ decidiu revisar a decisão do TJ RJ. (ABr, 03.2015 – ZH, 05.11.2014).
31.Funcionários da Fundação Casa, unidade Cedro, foram afastados a pedido da Defensoria Pública, após denúncias de tortura e agressão com cassetetes, cadeiras, cintos e cabos de vassoura contra 15 adolescentes, em junho de 2015. (G1, 07.2015)
32.Juiz Carlos Eduardo Neves Mathias, de Inajá (PE) deu voz de prisão ao advogado Hélcio de Oliveira França, após o advogado tentar acessar autos de um inquérito policial de seu cliente. O juiz foi condenado a pagar multa equivalente a 25 salários mínimos (EXAME, 12.2014)
33.Juiz Jairo Cardoso Soares, magistrado em Lavras do Sul (RS), acusou de estelionato e mandou prender o então gerente do Banco do Brasil, Seno Luiz Klock, após desentendimento em relação a sua situação bancária. O gerente chegou a ser detido e entrou com ação contra o magistrado. O juiz foi condenado a pagar indenização de R$ 80 mil por danos morais (valor sem correção). (EXAME, 12.2014)
34.A Justiça de São Paulo absolveu sumariamente 53 policiais militares acusados de executarem 12 pessoas, membro do PCC, em uma praça de pedágio da rodovia Castelo Branco, em março de 2002. (OESP, 11.2014)
35.A Polícia Civil de Araquari indiciou, por abuso de autoridade, dois policiais militares suspeitos de envolvimento no desaparecimento de Wesley Lopes que, segundo testemunhas, foi abordado de forma truculenta pelos policiais e jogado na viatura. O inquérito policial militar acusou transgressões disciplinares por parte dos policiais e indícios de crime, mas auditoria da PM em Florianópolis, informou que a promotoria não ofereceu denúncia por não constatar elementos suficientes na investigação. (A Notícia, 04.2014)
36.Reportagem sobre as piores prisões brasileiras destaca a violação de direitos humanos no complexo de Pedrinhas (MA); no Presídio Central de Porto Alegre (RS); no complexo do Curado (PE); no presídio Urso Branco (RO); nos Centros de Detenção Provisória de São Paulo (Osasco) e na Cadeia Pública Vidal Pessoa (AM). (BBC, 01.2014)
37.Coronel da PM paulista é denunciado pelo MP SP, por abuso de autoridade durante reintegração de posse da Comunidade Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), em 2012. (UOL, 11.2013) Treze policias da Rota que auxiliavam no patrulhamento durante a reintegração de posse foram indiciados por crimes de estupro, lesão corporal e tortura. (R7, 25.07.2013)
38.Policial civil Rita de Cássia Novak assassinou a tiros um vendedor ambulante, após ele mexer com uma mulher que a acompanhava no centro de Curitiba. A policial estava afastada para tratamento de problemas psicológicos, mesmo assim, ela tinha autorização para andar armada. Ela foi presa em flagrante. (Tribuna, 09.2011)
39.O senador Aécio Neves (PSDB) foi flagrado com carteira de habilitação vencida e se recusou a fazer o teste do bafômetro em blitz da Operação Lei Seca, no Rio de Janeiro (OESP, 04.2011)
40.Em maio de 1988, a CBF bancou passagens aéreas e estadias em hotéis para 60 pessoas, entre elas, presidentes e auditores do Tribunal Especial e Superior Tribunal de Justiça Desportiva, como o juiz Luiz Zveiter (STJD), que assistiram à Copa do Mundo na França (FSP, 05.1998). (Leia também “No ar: O Direito de Destruir”)
Créditos da foto: Divulgação / Rádio Boa Nova
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