Dilma Rousseff*
O Brasil caminha para um futuro incerto,
a depender do governo ilegítimo, que tem mostrado sua verdadeira face,
frustrando as esperanças da sociedade. A solução passa por eleições diretas
para presidente, substituindo o governo ilegítimo. Essa é a condição
imprescindível para o País sair da crise e retomar o rumo da democracia, do
crescimento e da geração de empregos.
Passaram-se apenas seis meses desde que
o golpe parlamentar interrompeu o meu mandato, consagrado por 54,5 milhões de
votos. Tramaram um golpe que contou com o apoio de oposicionistas, traidores e
parte da mídia e lançou o País em um período de incertezas e retrocessos.
Violentaram a Constituição de 1988, por
meio de um golpe parlamentar que fragilizou as instituições e precipitou o
Brasil no abismo da crise institucional.
Tudo é possível quando um mandato
presidencial é desrespeitado. O impeachment sem crime de responsabilidade
escancara as portas para o avanço da crise política e institucional.
Daí os conflitos institucionais que se aprofundam
e o choque entre Legislativo e Judiciário. As relações de harmonia e equilíbrio
entre os Poderes, exigidas pela Constituição, estão comprometidas.
Em apenas 90 dias, muito do que alertei
ao longo do processo de impeachment tornou-se real. As contradições se
acentuaram e conturbaram o cenário político, econômico e social. As ações para
estancar a “sangria” da Operação Lava-Jato têm se mostrado ineficazes.
Movimentos sociais, estudantes, professores e cidadãos sofrem com a repressão
às suas manifestações.
Assistimos, estarrecidos, ocupações de
escolas e universidades por jovens em defesa de seu futuro ser coibidas com
violência, enquanto manifestantes que invadem o Congresso, pregando a volta da
ditadura, são tratados com complacência. Os sinais de deterioração dos direitos
sociais estão evidentes.
Reconheço, ainda assim, que nenhum de
meus mais pessimistas prognósticos previa o escândalo gerado pelo episódio do
apartamento de luxo em área histórica de Salvador. E que isso merecesse do
ocupante da Presidência da República mais atenção do que os problemas reais do
nosso povo, como o desemprego crescente ou a paralisação das obras de
integração do São Francisco, para citar apenas dois exemplos.
A democracia tem sido corroída pelo
Estado de Exceção. A interrupção ilegal do mandato de uma presidenta é o mais
destruidor dos elementos desse processo, pois contamina as demais instituições.
Daí a distorção dos fatos por setores da
mídia oligopolista, ou a decisão do Tribunal Federal da 4ª Região que autorizou
medidas excepcionais, como a suspensão da lei e da Constituição em nome do
caráter excepcional da Lava-Jato.
Outro sinal é a perseguição implacável
ao presidente Lula, submetido à “justiça do inimigo”, na qual a regra é
destroçar a vítima.
Nesse cardápio, a PEC 55 destaca-se ao
ensejar, simultaneamente, o avanço do Estado de Exceção e o retorno do
neoliberalismo. Com um só golpe retira a população do Orçamento, reduzindo os
gastos com saúde e educação.
Ao mesmo tempo, pelos próximos 20 anos,
afasta de todos nós o direito de escolher por meio do voto direto para “quem,
como e onde” serão utilizados os recursos do Orçamento. Flagrantemente
inconstitucional, a PEC viabiliza o retorno do neoliberalismo, do Estado
mínimo, feito por poucos e para poucos.
Diretas
Já
A reforma da Previdência proposta pelo
governo ilegítimo exige a idade mínima de 65 anos e 49 anos de tempo de
serviço. Obriga jovens de 16 anos a largarem os estudos para trabalhar, a fim
de ter o direito à aposentadoria integral.
O objetivo é claro. Dar continuidade ao
processo de desmonte do Estado, iniciado por FHC e interrompido nos governos do
PT. Busca-se desmantelar o sistema de proteção social, iniciado com Getúlio
Vargas, atualizado na Constituição de 1988 e aprofundado no meu governo e no de
Lula.
Irão se esforçar para desregulamentar a
economia e reduzir impostos sobre os muito ricos e privatizar as empresas do
Estado. Além de revirar o mercado de trabalho, “flexibilizando” os direitos dos
trabalhadores e tornando a aposentadoria privilégio de poucos.
Tais propostas voltam à ordem do dia,
depois de derrotadas nas últimas quatro eleições presidenciais. Por isso, o
impeachment. O programa neoliberal do PSDB, rejeitado no voto pela população,
necessita que se suspenda a democracia para ser executado.
O neoliberalismo pelo governo Temer,
cujo receituário é brandido pelos meios de comunicação e líderes da oposição
tucana como solução para o País, resultará em mais desigualdade. Tal modelo não
tem como conviver com a plenitude do Estado Democrático de Direito.
Em “A Doutrina do Choque”, Naomi Klein
mostra que os teóricos e políticos adeptos do neoliberalismo advogam o uso das
crises para impor medidas impopulares justamente quando os cidadãos estão
impactados por outros eventos.
Em nosso caso, a crise econômica e o
impeachment foram a oportunidade para a retomada do receituário neoliberal.
Múltiplos agentes políticos e empresariais se associaram para revitalizar um
modelo que dá sinais de esgotamento e profundas contradições em países da Europa
e nos Estados Unidos.
Chama atenção a sofreguidão dos
militantes empresariais encarnados no “pato amarelo”. Defendem que o único
caminho diante do conflito distributivo, acirrado pela crise, é o corte dos
gastos sociais, jogando o ônus da crise econômica exclusivamente nas costas dos
trabalhadores e da classe média.
Afastam a possibilidade de aumento de
impostos num país que tributa, sobretudo, ganhos de salário. Tal debate está
interditado. Aí não importa se a consequência é a queda ainda maior da demanda
e mais crise ao se derrubar o investimento público e o consumo, num quadro de
anomia do investimento privado.
Defendo que ajustes precisavam ser
feitos. Ajustes equilibrados, para melhorar a qualidade dos gastos e reduzir as
despesas. O limite da redução das despesas foi, porém, atingido.
Há necessidade urgente de reformas, não
para retirar direitos, mas, como a tributária, para ampliar a arrecadação e
alterar o caráter regressivo do nosso sistema de impostos. Não podemos
continuar a ser dos poucos países do mundo, em companhia da Estônia, a não
tributar dividendos ou taxar ganhos de capital.
Ainda há quem queira acreditar no
milagre do corte de gastos. Disseminou-se a ideia de que o golpe, travestido de
impeachment, rapidamente reverteria a crise e, a partir daí, bastaria cortar
gastos. Ora, a crise fiscal nunca se deveu a uma ampliação dos gastos. O Brasil
enfrenta um problema fiscal que tem a ver com a desaceleração econômica,
responsável pela queda vertiginosa das receitas.
É necessário reconhecer que desonerações
efetuadas ao longo do meu governo, tanto aquelas sobre a folha de pagamentos
quanto as que incidiram sobre setores produtivos, reduziram as receitas. Os
resultados foram apropriados pelas empresas na forma de aumento da margem de lucro.
Tais desonerações também não produziram,
na maioria dos setores, aumento da capacidade produtiva e, consequentemente, da
arrecadação futura, impondo ônus excessivo à gestão fiscal do Estado. Por isso
é necessária a revisão de tais desonerações.
Mesmo assim, o País vai precisar de
medidas que se contraponham à crise. Durante meu governo foram criminalizadas
todas as medidas fiscais contracíclicas. A PEC 55, pró-cíclica, vai eliminar
agora todo e qualquer espaço para a política fiscal, além de enrijecer a
política monetária.
Lá atrás, as manobras dos golpistas
foram bem-sucedidas. Vetaram, ao longo do meu governo, todas as iniciativas
para se reverter a crise, instituindo a política do “quanto pior melhor” e as
“pautas-bomba”. Pior. Mobilizaram parte da população contra seus próprios
interesses, cerceando a ampliação de oportunidades e de direitos.
Em várias ocasiões, declarei que o golpe
contra meu mandato era um golpe contra a democracia, contra o povo brasileiro e
contra a nossa Nação. Apesar dos meus críticos, promovemos um inédito processo
de redução da desigualdade nos últimos 13 anos.
Foram as políticas de transferência de
renda, de valorização do salário mínimo, de ampliação do acesso a serviços
públicos e do incremento do investimento público que transformaram o Brasil e
nos tiraram do mapa da fome.
Inédito, esse processo não garantiu uma
efetiva transformação estrutural de nossa histórica concentração de riqueza. E
foi insuficiente, pois acabamos impedidos de avançar na redistribuição da riqueza,
na tributação dos mais ricos com impostos progressivos, tema interditado no
País.
A PEC 55 vai impedir que o povo se
beneficie do crescimento pelos próximos 20 anos com base no argumento da
austeridade. Ao estabelecer que os gastos públicos terão crescimento real zero,
a PEC terá efeito contracionista, puxando o crescimento do PIB para baixo.
O mais trágico é que resultará na
redução per capita dos gastos sociais federais. Como trata apenas de gastos
primários, a proposta não contém uma só medida voltada às despesas financeiras,
como os juros da dívida pública.
Arbitrando de forma autoritária o
conflito distributivo em torno da alocação do Orçamento, a PEC é contra a
maioria da população. Retira dos cidadãos o direito de, a cada eleição,
escolher o programa de governo expresso no Orçamento e, com isso, os caminhos
para o desenvolvimento. É hoje um dos pilares do Estado de Exceção implantado
no Brasil.
Renascido como fênix depois de quase 13
anos, o neoliberalismo do consórcio Temer-PSDB é coerente com o fato de nossas
grandes empresas produtivas terem se tornado financistas. Que acreditem e
defendam o ideário neoliberal não surpreende.
Mas que se somem na defesa de uma
proposta que diminui o crescimento econômico e promove a retração do mercado
consumidor só se entende diante da elevada rentabilidade obtida com o giro
financeiro. Sem dúvida, um dos maiores desafios ao desenvolvimento no Brasil
tem sido a contaminação dos setores produtivos pelo giro da dívida pública.
A importância que o resultado financeiro
assumiu para o desempenho de nossas grandes empresas, inclusive secundarizando
eventuais limitações de competitividade, explica o desinteresse com que o setor
produtivo tratou a queda dos juros em 2012 e 2013. Serve também para entender o
engajamento desses segmentos a favor do golpe, atraídos, entre outras questões,
pela perspectiva de reformas e medidas fiscais.
A interrupção da normalidade democrática
e o caminhar rumo ao Estado de Exceção são as bases jurídicas para a retomada
do neoliberalismo. Não são as bases para “ordem, progresso e retomada do
crescimento”, como prometeram antes do golpe. É o contrário. Ainda que setores
da mídia mostrem com parcimônia os dados sobre a situação, o aprofundamento da
crise está explícito.
A realidade sempre se impõe. Está cada
vez mais evidente que os golpistas acreditaram no que propagandeavam e
subestimaram os fatores que levaram à crise econômica: o fim do superciclo das
commodities, a desaceleração da China, o fraco crescimento dos países
desenvolvidos, o fim da política de expansão monetária dos Estados Unidos e a
queda de arrecadação.
Minimizaram, sobretudo, as graves e
nefastas consequências econômicas da crise política por eles criada. Tais
fatores não se alteraram com a conclusão do impeachment. A “sangria“ continua e
passa a ataque mortal. A crise agravou-se com a ilegitimidade, os escândalos de
corrupção e as falsas profecias.
Agravou-se tão rápida e profundamente
que a instabilidade gerada no atual governo e entre as instituições permite
antever a possibilidade do golpe dentro do golpe: a eleição indireta para
presidente, que não produzirá estabilidade ou segurança institucional.
Afasta a esperança e se revela mais um
ataque à democracia, incapaz de conduzir à recuperação econômica.
A intolerância e o ressentimento diante
da falta de sintonia entre as expectativas do povo e as entregas do governo
minam a legitimidade da democracia. Para a população, primeiro vem a perda de
poder, pelo desrespeito aos resultados legítimos da eleição.
Depois, a cassação de direitos, por meio
de reformas que promovem retrocessos e exclusão. Quando as teses econômicas
dominantes impedem a priorização de investimentos sociais, os governos deixam
de responder às necessidades dos eleitores.
A política torna-se irrelevante para a
vida dos cidadãos. Daí o risco da antipolítica virulenta, em que argumentos são
substituídos por slogans e sensacionalismo. Por isso, se o golpe destruiu o
presente do Brasil, cabe a nós lutarmos pelo futuro.
A saída não é a marcha da insensatez
golpista, mas a participação popular. Está na convocação imediata de novas
eleições para presidente, como propus anteriormente. Junte-se às diretas, é
hora da reforma política, proposta por mim em 2013.
Não há como sair da crise sem redefinir
o sistema político, carcomido por práticas fisiológicas e corruptas, combalido
pela fragmentação de partidos e pela lógica do imediatismo que não leva em
conta os interesses do País.
Esse é o caminho para conter o
retrocesso e garantir que a vontade do povo prevaleça quando se define o nosso
destino. Reitero: o momento é grave, mas ainda há tempo de salvar a nossa jovem
democracia e promover a retomada da economia. A palavra é legitimidade. Um
banho de legitimidade para lavar a alma do Brasil.
* Presidenta eleita do Brasil
www.cartacapital.com.br 14/01/2017
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