Boas Festas e
um 2017 pleno de Brasil
Luis Nassif
Entrando no restaurante, o sujeito que
não conheço me olha de um modo que não traduzo. Em outros tempos, seria um bom
início de conversa. Puxaríamos assunto, fosse turista ou nativo falaríamos da
velha Poços de Caldas, descobriríamos afinidades musicais, às vezes amigos
comuns e raramente se falaria de política.
Agora, o clima é tenso. Fico imaginando
que, a qualquer momento, o sujeito virá em minha direção de dedo em riste,
deblaterando contra minhas posições políticas, me acusando de
"petralha" e me obrigando a bate-boca em público.
A direita saiu do armário, dirão os
especialistas. Mais que a direita, a intolerância.
Não apenas a direita troglodita, mas
também uma nova direita cheia de maneirismos, travestida de um humanismo de
boutique, defensora das grandes teses de igualdade apenas para o eixo
Rio-Miami, para seus círculos sociais, mas avalizando todos os ataques
políticos aos inimigos e todas as ameaças às políticas sociais que amparam a plebe malcheirosa.
Ao contrário, os verdadeiros humanistas
identificam a si mesmo em cada ser humano, veem no próximo um pedaço da
humanidade. Foi o que levou o grande liberal conservador Sobral Pinto a
defender Luiz Carlos Prestes.
Ao meu lado, a notável defensora dos
direitos humanos me explica o processo simples, e ao mesmo tempo desafiador, de
entender a vulnerabilidade do outro que não é igual a você. Difícil é entender
a vulnerabilidade de um outro com quem você não se identifica, até o ponto de
não existir mais o outro, mas uma única identidade humana. Isto é humanidade.
E me recomenda o poema de John Donne:
“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada
homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é
arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório,
como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer
homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes
por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
Os liberais brasileiros de agora são tão
superficiais quanto os alicerces dos traillers da Flórida, carregando
convicções mutantes a caminho da rodovia que conduza à última moda, com a mesma
superficialidade dos que querem ser “in” nas colunas sociais, nos programas de
entrevista e na Academia. Apresentavam-se como juristas de esquerda, quando era
chic ser de esquerda. Agora, se assumem ultraliberais de direita, porque é a
nova moda. E o sistema enaltece apenas a erudição que se adequa aos modismos.
Os trogloditas que saem pelas ruas
expelindo fogo pelas ventas apenas incomodam. É a direita falsamente
sofisticada que mata, que convalida a PEC 55, o desmonte de programas sociais,
a destruição de cadeias produtivas em nome de um conceito de modernidade, tão
superficial quanto cruel.
Não é a direita dos conservadores
convictos como Sobral Pinto, que passou por cima de diferenças ideológicas e se
pôs a defender as vítimas do arbítrio. Ou dos construtores de Nação, de Campos
a Bulhões, de Dias Leite a Beltrão, de juristas com a convicção de Pedro Aleixo
e Sobral, construtores do país ou defensores das teses civilizatórias. Agora é
uma direita rentista, superficial, com juristas prenhes de maneirismos e
escassos de humanidade.
Lembro-me de Manuel Bonfim descrevendo o
Brasil do início do século 20: os líricos fizeram a Abolição, a elite fez a
Guerra do Paraguai.
O Brasil nunca foi uma sociedade
pacífica, mas havia os rituais preservados, as festas de fim de ano, as canções
infantis, o aconchego familiar. Desta vez, o ódio cultivado diuturnamente pela
mídia, ao longo de anos e anos, regando com fel as ervas daninhas da
intolerância, que, crescendo, conseguiram penetrar até nos círculos mais
íntimos da brasilidade, contaminando redes de amigos, laços familiares,
ambientes sociais em geral.
Tudo isso passa pela minha cabeça
quando, no restaurante, percebo o sujeito me mirando e já me despertando
instintos agressivos. Vou tirar satisfações? Seria conferir a vitória final ao
ódio.
E o Brasil é bem maior. O país que deu
Caymmi, João, Carlinhos e Jobim, Ary, Noel e Custódio, Gilberto Freire e
Bonfim, Sérgio, Caio e Florestan, que
hoje dá Nicolelis, e ontem deu Clodowaldo, que juntou Aziz e Lutz, sem
rio Jordão e sem Gaza, agora do mesmo lado; Paulo Freire e Josué, Milton e
Carlos Chagas, Chico e Luiz Vieira, Zé do Norte e Luiz Gonzaga, Edu, Capiba e
Joubert, Celso Furtado e Ignácio, não pode se render a esse simulacro de país,
dos Marinhos e dos Frias, de Temer e Eliseu, do intocável Padilha, e de um monte de Zebedeus, de Meirelles e
Ilan, de Gilmar e de Barroso, tão iguais e tão diversos, um é prosa, o
outro é verso, um é pedra, o outro,
poroso, o boquirroto e o centrado, o perverso e o bondoso, o escarrado e o
sibilino, o ostensivo e o medroso, um, Gilmar, outro, Barroso, hipotecando o
destino, jogando do mesmo lado.
2016 não é o final, é o início. Há uma
rapaziada cheia de energia, na música, na vida e nas escolas, uma tomada de
consciência alicerçada nos mais autênticos valores nacionais, uma reconstrução
renovada de princípios de solidariedade, de luta contra o arbítrio, ainda que
em um público mais restrito, mas dotado da fortaleza dos cristãos nas
catacumbas lutando contra a barbárie.
Que em 2017 toda essa energia possa
implodir as cidadelas do obscurantismo, da intolerância, o pesado sentimento
antinacional que tomou conta das instituições. Do mesmo que a elite fazendeira
descobriu o Brasil profundo através da Semana de 22 e dos sons de Villa-Lobos,
e a classe média urbana descobriu o Brasil autêntico através dos cantores populares.
Viva
o Brasil!
Mãos
Dadas
Carlos Drummond de Andrade
Não serei o poeta de um mundo caduco
Também não cantarei o mundo futuro
Estou preso à vida e olho meus
companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes
esperanças
Entre eles, considero a enorme realidade
O presente é tão grande, não nos
afastemos
Não nos afastemos muito, vamos de mãos
dadas
Não serei o cantor de uma mulher, de uma
história
Não direi os suspiros ao anoitecer, a
paisagem vista da janela
Não distribuirei entorpecentes ou cartas
de suicida
Não fugirei para as ilhas nem serei
raptado por serafins
O tempo é a minha matéria, o tempo
presente, os homens presentes
A vida presente
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