O grande
embuste revelado
Christopher Black*
Em 2003, com alguns advogados
americanos, membros da Associação Nacional de Advogados, tive a oportunidade de
viajar à Coreia do Norte, isto é, à República Popular Democrática da Coreia
(RPDC), a fim de ter uma experiência em primeira mão desse país, do seu governo
socialista e do seu povo.
Este artigo intitulado "O grande
embuste revelado" foi publicado ao nosso retorno. O título foi escolhido porque
descobrimos que o mito pejorativo da propaganda ocidental sobre a Coreia do
Norte é um enorme embuste concebido para esconder as realizações dos
norte-coreanos, que conseguiram criar suas próprias
condições de desenvolvimento, o seu próprio sistema socioeconômico
independente, baseado nos princípios do socialismo, livre do domínio das
potências ocidentais.
Durante um dos nossos primeiros jantares
em Pyongyang, o nosso anfitrião, Ri Myong Kuk, um advogado, disse em termos
apaixonados, em nome do governo, que a força de dissuasão nuclear da RPDC é
necessária dadas as ações e ameaças dos EUA e aliados contra o seu país. Isto
que ele disse foi reiterado mais tarde
em uma reunião de alto nível com representantes do governo da RPDC, onde foi
asseverado que se os americanos assinassem um tratado de paz e um acordo de
não-agressão com a RPDC, isso tornaria a ocupação ilegítima e levaria à
reunificação da Coreia. Assim, não haveria mais necessidade de armas nucleares.
Encerrou suas palavras afirmando:
"é importante que os advogados se reúnam para falar sobre isto, porque os
advogados regulam as interações sociais no seio da sociedade e do mundo",
e acrescentou que de boa-fé, "o caminho para a paz requer a abertura do
coração".
Pareceu-nos então, e é agora evidente,
que, em absoluta contradição com o que dizem os meios de comunicação
ocidentais, o povo da RPDC quer paz mais do que qualquer outra coisa. Ele quer
continuar com as suas vidas e ocupações sem a ameaça constante de ser
exterminado pelas armas atômicas dos EUA. Mas, na verdade, por que são
ameaçados de serem exterminados e de quem é a culpa? Não é a sua.
Mostraram-nos documentos dos EUA
apreendidos durante a guerra da Coreia. Trata-se de provas irrefutáveis de que
os EUA tinham planejado atacar a Coreia do Norte em 1950. O ataque foi
realizado pelas forças armadas dos EUA e da Coreia do Sul, ajudadas por
oficiais do exército japonês, que tinham invadido e ocupado a Coreia
anteriormente durante décadas. Os EUA pretenderam então que a defesa e o contra-ataque
eram uma "agressão", os meios de comunicação foram manipulados para
incentivar as Nações Unidas a apoiar uma "operação policial",
eufemismo escolhido para descrever a sua guerra de agressão contra a Coreia do
Norte. Isso resultou em três anos de guerra e 3,5 milhões de vítimas coreanas.
Desde então, os EUA ameaçam de guerra
iminente e aniquilação.
Em 1950, uma vez que a Rússia não estava
presente no Conselho de Segurança, a votação das Nações Unidas a favor da
"operação policial" foi ela própria ilegal. Ao abrigo dos
regulamentos internos, o quórum no Conselho de Segurança exige a presença de
todas as delegações membros. Todos os membros devem estar presentes, caso
contrário não pode se realizar a sessão. Os americanos aproveitaram a ocasião do
boicote dos russos ao Conselho de Segurança, introduzido para defender a
posição da República Popular da China, que deveria ter lugar à mesa do Conselho
de Segurança e não o governo derrotado do Kuomintang. Como os americanos se
recusaram a conceder esse direito, os russos recusaram sentar-se à mesa até que
o governo chinês legítimo o pudesse fazer.
Os americanos aproveitaram esta
oportunidade para fazer uma espécie de golpe de estado nas Nações Unidas.
Tomando o controlo dos seus mecanismos, utilizaram-nos para os seus próprios
interesses. Organizaram-se com os britânicos, os franceses e os chineses do
Kuomintang, para apoiar a guerra na Coreia, na ausência dos russos. Os aliados,
como os americanos tinham pedido, votaram a favor da guerra contra a Coreia,
mas a votação foi inválida e a operação da polícia não foi uma operação de
manutenção da paz, nem justificada pelo capítulo VII da carta das Nações
Unidas, dado que o artigo 51, estipula que as nações têm o direito de se
defender contra qualquer ataque armado – justamente o que tinham de fazer os
norte-coreanos. Mas os EUA nunca se preocuparam muito com a legalidade. E não
se preocuparam em todo o seu projeto, que era conquistar e ocupar a Coreia do
Norte, como um passo para invadir a Manchúria e a Sibéria e a legalidade não ia
impedi-los de prosseguir esse caminho.
Muitos ocidentais não têm ideia das
destruições infligidas pelos americanos e seus aliados na Coreia. Pyongyang
encontrou-se sob um tapete de bombas, civis fugindo à carnificina foram
metralhados pelos aviões dos EUA em voos rasantes. O New-York Times escreveu na
altura que 17 milhões de toneladas de napalm foram lançadas apenas durante os
20 primeiros meses da guerra na Coreia.
Os EUA deixaram cair uma tonelagem de
bombas maior do que o Japão fizera durante a Segunda Guerra Mundial.
As forças armadas dos EUA assassinaram
não apenas os membros do partido comunista, mas também as suas famílias. Em
Sinchon, vimos evidências que soldados dos EUA obrigaram 500 civis a colocar-se
numa vala, regaram-nos com gasolina e queimaram-nos vivos. Estivemos num abrigo
com paredes ainda enegrecidos com a carne queimada de 900 civis, incluindo
mulheres e crianças que procuravam proteger-se durante um ataque dos EUA.
Soldados americanos foram vistos despejar gasolina em aberturas de ventilação
do abrigo e fazê-los morrer carbonizados.
Esta é a realidade da ocupação dos EUA
para os coreanos. É a realidade que eles ainda temem e não querem mais ver
repetida. Podemos censurá-los?
Apesar de todos estes casos, os coreanos
estão dispostos a abrir seus corações para seus antigos inimigos. O major Kim
Myong Hwan, que na época era o principal negociador em Panmunjom, na linha da
DMZ, revelou que seu sonho era ser escritor, poeta, jornalista, mas contou com
ar sombrio, como ele e seus cinco irmãos estavam fazendo rondas na linha da
zona desmilitarizada, como os soldados, por causa do que aconteceu à sua
família. Ele disse que sua luta não era contra os americanos, mas o seu
governo. Manteve-se o único de sua família perdida em Sinchon; seu avô tinha
sido pendurado num poste e torturado, a avó dele morreu com uma baioneta no
estômago. "Veja, nós temos de fazer o que fazemos. Temos de nos defender.
Nós não nos opomos aos norte-americanos. Somos contra a política dos EUA e os
seus esforços para controlar totalmente o mundo e infligir calamidades aos
povos."
A opinião da nossa delegação foi que
devido à instabilidade que mantêm na Ásia, os EUA conservam uma presença
militar maciça que dificulta as relações entre a China e a Coreia do Sul, a
Coreia do Norte e o Japão. Usam sua presença como moeda de troca contra a China
e a Rússia. Com a constante pressão no Japão para eliminar as bases dos EUA em
Okinawa, as operações militares na Coreia e as manobras de guerra são um
aspecto central dos seus esforços visando dominar a região.
A questão não é saber se a RPDC tem armas
nucleares, como tem o direito, mas se os EUA – que têm instalações nucleares na
península coreana, e que ali instalam atualmente o seu sistema de defesa
antimísseis THADD, um sistema que ameaça a segurança da Rússia e da China –
estão dispostos a trabalhar com a Coreia do Norte num tratado de paz. Encontramos
norte-coreanos ansiosos pela paz e não fazendo questão de manter armas
nucleares se a paz puder ser estabelecida. Mas a posição dos EUA continua mais
arrogante, agressiva, ameaçadora e perigosa do que nunca.
Na época das "mudança de regime",
das "guerras preventivas" e das tentativas dos EUA para desenvolver
armas nucleares miniatura, bem como o seu abandono e a sua manipulação do
direito internacional, não é surpreendente que a Coreia do Norte, jogue a carta
nuclear. Esta escolha foi feita pelos coreanos do Norte desde que os EUA os
ameaçam numa base diária com uma guerra nuclear. A Rússia e a China, dois
países que a lógica dita apoiar os norte-coreanos contra a agressão
norte-americana, se juntarão aos norte-americanos para responsabilizar os
coreanos por se terem armado com a única arma que pode atuar como dissuasor de
um ataque.
A razão para isto não está clara, uma
vez que os russos e os chineses têm armas nucleares e estão equipados para dissuadir
qualquer ataque dos EUA, exatamente como fez a Coreia do Norte. Algumas
declarações dos governos russo e chinês indicam que eles temem não ter controle
da situação, e que as medidas defensivas da Coreia do Norte atraiam um ataque
dos EUA e de serem também atacados.
Essa ansiedade é compreensível. Mas isso
levanta a questão de saber por que não podem apoiar o direito da Coreia do
Norte à autodefesa e exercer pressão sobre os americanos para concluírem um
tratado de paz, um acordo de não-agressão e retirar suas forças armadas e
nucleares da Península coreana. Mas a grande tragédia é a óbvia incapacidade
dos norte-americanos em pensarem por si próprios perante os embustes
incessantes e exigir dos seus líderes que sejam esgotados todos os canais de
diálogo e restabelecida a paz antes de encarar uma agressão na península
coreana.
A base essencial da política da Coreia
do Norte é alcançar um pacto de não-agressão e um tratado de paz com os EUA. Os
norte-coreanos afirmaram repetidamente que não querem atacar ninguém, nem ferir
ninguém, não estão em guerra contra ninguém. Mas eles viram o que aconteceu com
a Iugoslávia, o Afeganistão, o Iraque, a Líbia, a Síria e inúmeros outros
países, e não têm intenção de serem os próximos. É óbvio que vão defender-se
vigorosamente contra qualquer invasão dos EUA e que a nação poderia suportar
uma longa e difícil luta.
Em outro lugar da zona desmilitarizada,
conhecemos um coronel que tinha instalado um par de binóculos, através do qual
conseguimos ver para além da linha divisória entre o norte e o sul. Podemos ver
uma parede de cimento construída no lado do Sul, em violação dos acordos de
tréguas. O major Kim Myong Hwan disse que aquela estrutura fixa é uma
"vergonha para os coreanos que são um povo homogéneo. Um alto-falante
transmitia sem interrupção propaganda e música que vinha de alto-falantes do
lado sul. Ele disse que esse barulho irritante dura 22 horas por dia. De
repente, outro momento surreal, os alto-falantes do bunker começaram a entoar a
Abertura Guilherme Tell de Rossini, mais conhecida nos Estados Unidos como o
tema do Lone Ranger .
O coronel pediu-nos para ajudar as
pessoas a entender o que realmente está acontecendo na Coreia do Norte, em vez
de basearem as suas opiniões na desinformação. Disse: "Nós sabemos que,
como nós, as pessoas amantes da paz na América têm crianças, parentes,
famílias". Dissemos-lhe que tínhamos a missão de ir para casa com uma
mensagem de paz e esperamos voltar um dia e andar com ele livremente nestas
belas colinas. Fez uma pausa e disse: "Também creio que é possível".
Assim, enquanto o povo da Coreia do
Norte espera a paz e a segurança os EUA e seu fantoche no sul da península
coreana farão a guerra ocupando-se durante os próximos três meses nos maiores
jogos de guerra até agora organizados, com porta-aviões, submarinos carregados
de armas atómicas e bombardeiros furtivos, aviões e um grande número de tropas,
artilharia e tanques.
A campanha de propaganda atingiu níveis
perigosos nos meios de comunicação, que acusam o Norte de ter assassinado um
parente do líder da Coreia do Norte na Malásia, ainda que não haja provas e que
o Norte não tivesse nenhum motivo para fazê-lo. Os únicos a beneficiar do
assassinato são os EUA e os seus meios de comunicação controlados, que usam
isso para atiçar a histeria contra Coreia do Norte, que agora teria armas
químicas de destruição em massa.
Sim, meus amigos, eles pensam que todos
nós nascemos ontem e que não aprendemos nada sobre a natureza do domínio dos
EUA e da sua propaganda. Será assim tão espantoso que os norte-coreanos temam que
estes 'jogos' de guerra se transformem um dia em realidade e que estes
"jogos" não sejam senão a cobertura para um ataque e para criar ao
mesmo tempo um clima de terror na população, coreana?
Haveria muitas coisas a dizer sobre a
natureza real da RPDC, seus habitantes, seu sistema socioeconômico e sua
cultura. Mas não há espaço para isso agora neste texto. Espero que as pessoas
sejam capazes de dar-se conta da experiência do nosso grupo. Termino com o
último parágrafo do relatório comum que fizemos no retorno da RPDC, e espero
que as pessoas o compreendam bem, reflitam e ajam de forma a apelar à paz.
"Aos povos do mundo tem de ser
divulgada a história completa acerca do que se passou na Coreia e o papel do
nosso governo fomentando desequilíbrios e conflitos. Devem ser tomadas medidas
pelos advogados, grupos comunitários e ativistas pela paz e todos os cidadãos
do planeta, para impedir o governo dos EUA de levar a cabo uma campanha de
propaganda visando apoiar a agressão contra a Coreia do Norte. Os norte-americanos
têm sido alvo de um grande embuste. O que está em jogo é muito importante para
nos permitimos ser enganados novamente. Esta delegação de paz aprendeu na
Coreia do Norte, um elemento importante da verdade essencial nas relações
internacionais. É que só com ampla comunicação e negociação, seguida do
respeito pelas promessas e profundo compromisso com a paz, se pode –
literalmente – poupar o mundo a um sombrio futuro nuclear. A experiência e a
verdade nos libertarão da ameaça de guerra. A nossa viagem à Coreia do Norte,
este relatório e nosso projeto atual são esforços para nos libertarmos".
* Advogado especialista em direito penal
internacional, com escritório em Toronto.
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