UMA REUNIÃO NA calada da noite, em uma residência oficial, com um investigado que se gaba de comprar juízes, procurador e de manter bom relacionamento com um deputado preso em Curitiba a custa de pagamento mensal pode ser tudo, menos uma conspiração de via única, como querem fazer crer os aliados resilientes de Michel Temer, na véspera chamado de ex-presidente em uma série de atos falhos de jornalistas e colegas cometida ao longo da quinta-feira (18).
Pois uma coisa é a consequência jurídica do áudio (obstrução de Justiça? Prevaricação? Prova de corrupção?), até aqui resultante na abertura de inquérito determinada pelo STF. Outra é a consequência política. Quem, dos aliados que emprestavam a cara e os votos para as reformas temerárias, ousará posar ao lado de um presidente que se encontra na surdina com investigados para ouvir relatos sobre como escapar da Justiça?
A pergunta parece óbvia, mas segue em aberto.
Fato é que, desde a revelação do áudio, o Brasil parece ter voltado algumas décadas na própria História, quando uma multidão tomou as ruas no movimento pelas Diretas Já, um apelo pelo direito de eleger seu próprio presidente, entre 1983 e 1984.
Era um tempo de mobilização que gerou a força política para a emergência de lideranças e a elaboração da Constituição de 1988 – Carta que, nas palavras de deputado Ulysses Guimarães, o “Senhor Diretas”, teria cheiro de amanhã, e não de mofo. A Constituição Cidadã, como ficou conhecida, seria um marco na garantia dos direitos individuais, da liberdade de expressão, da proteção das minorias.
Curioso observar o protagonismo político de três décadas atrás e os de agora (aparentemente, fora do quadro partidário, não temos uma voz à altura de Osmar Santos e Sócrates, e o jogador de futebol mais articulado da atualidade é Felipe Melo, apoiador de Bolsonaro e entusiasta da política de distribuição de porrada em manifestantes).
O que ninguém poderia imaginar é que o Brasil voltaria às ruas em apoio às eleições diretas no mesmo dia em que os netos de Tancredo foram enquadrados pela Justiça.
A emenda Dante de Oliveira, que levaria o país às urnas, foi rejeitada, mas do Colégio Eleitoral emergiu Tancredo Neves (PMDB), apoiado pelas mesmas lideranças das Diretas, em oposição ao situacionista Paulo Maluf (PSD), que anos depois entraria na lista da Interpol.
Tancredo nunca assumiu o poder. Um tumor indevidamente tratado em meio ao processo eleitoral o levou à internação às vésperas da posse. Ele morreu no mês seguinte. Coube a José Sarney, figura ambígua com um pé no antigo regime e alçado a vice por situacionistas antimalufistas, o trabalho de costurar a transição do primeiro governo civil, após 20 anos de ditadura militar, até a primeira eleição geral para presidente – aquela que levou Fernando Collor ao posto, mas essa é outra conversa.
O que ninguém poderia imaginar até pouco tempo atrás é que, mais de 30 anos depois, o Brasil voltaria às ruas com cartazes em apoio às eleições diretas. Por ironia, no mesmo dia os netos de Tancredo, o senador Aécio Neves (PSDB-MG) e sua irmã, Andrea, foram enquadrados pela Justiça.
O primeiro foi afastado do cargo após pedir dinheiro ao dono da JBS e usar como intermediário um primo e operador, preso pela PF. A irmã também está presa, o que gerou foguetório no sindicato de jornalistas de Minas Gerais, há anos determinados em denunciar as perseguições da família aos profissionais de imprensa do estado.
Novamente um vice alçado a chefe do Executivo sem voto popular
Na mesma frente, não há figurão do PMDB, o partido fiador da transição democrática e das bases de apoio a todos os governos desde a reabertura, que não enfrente acusações de corrupção na Justiça, a começar pelo presidente da República – novamente um vice alçado a chefe do Executivo sem voto popular.
Longe dos holofotes, José Sarney, ex-senador maranhense eleito pelo Amapá, é ainda hoje uma espécie de oráculo do partido. Emplacou inclusive um filho no Ministério do Meio Ambiente. Foi ele quem classificou a delação da Odebrecht como tiro de metralhadora ponto cem. Convém ouvi-lo nas horas de aperto.
Morto em abril, o compositor cearense Antonio Carlos Belchior consagrou na voz de Elis Regina sua música mais conhecida. Falava, em plena ditadura, da dor de perceber a própria geração reproduzir os passos dos pais, mesmo tendo feito tudo o que fizeram.
Apesar do novo velho impasse político, porém, já não somos os mesmos – nem os filhos nem os netos dos antigos protagonistas, conforme assegura o noticiário sobre os herdeiros de Tancredo.
A geração que promete colocar na rua a versão 2.0 das “Diretas Já” tem a chance de tirar de debaixo do tapete, e em meio às balas de borracha disparadas nos grandes centros, uma série de acordos determinantes desta espécie de passado contínuo vivido pelo país.
O Brasil das costuras políticas pacíficas jamais acertou as contas com seu passado autoritário, e o resultado são as bases de uma sociedade ainda marcadamente violenta, arrogante, excludente e tomada de fossos entre representantes e representados, sobretudo quando reformas como a Trabalhista e da Previdência são impostas pelos primeiros sem o devido debate com os segundos – e sem a legitimidade das urnas, que se manifestou, em 2014, por outra agenda (abandonada, frise-se, inclusive por Dilma Rousseff).
Aos poucos, a expressão “Diretas Já” volta, assim, ao debate público. “A crise não apenas exige a remoção de Temer do governo como a convocação imediata de eleições para o Executivo”, escreve o ex-secretário de Estado de Direitos Humanos (governo FHC) Paulo Sérgio Pinheiro em artigo na página A3 da Folha de S.Paulo, um dos mais prestigiados espaços de opinião do jornal. “O desmantelamento das conquistas da Constituição de 1988 e da política de Estado dos direitos humanos, promovido de forma acelerada pelo governo, deve ser interrompido”, pediu o jurista.
A releitura do apelo ao voto direto para presidente em pleno 2017, que exige uma emenda à Constituição, é sintomática dos buracos abertos por quem deveria pavimentar a transição do país ao estabelecimento pleno das conquistas políticas.
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